José Raimun­do Gomes da Cruz Tit­u­lar da Cadeira 48 – Alfre­do de Araújo Lopes da Cos­ta Procu­rador de Justiça de São Paulo aposen­ta­do

No título acima, ainda constava 64 anos, como manchete do jornal O Estado de S. Paulo de 16/8/09, seguida do subtítulo: “Para Ludwig Baumann, militar que desertou do Exército alemão, decisão enterra o último tabu da 2a Guerra”. A matéria vinha assinada por Jamil Chade (p. A19).

Até recen­te­mente, a gente estran­ha­va só terem exis­ti­do casos iso­la­dos de ofi­ci­ais alemães tra­man­do con­tra o Führer, como na chama­da “Oper­ação Valquíria”. Na ver­dade, o dita­dor soube se cer­car de cúm­plices iden­ti­fi­ca­dos com sua lou­cu­ra. A propósi­to da chama­da “Noite das Facas Lon­gas”, ocor­ri­da em 1934, quan­do uma facção dos mem­bros do próprio gov­er­no alemão foi apun­hal­a­da pelo grupo de maior força, lem­brei a frase do insu­peráv­el Voltaire: “Só os home­ns vir­tu­osos têm ami­gos. Céte­gus era o cúm­plice de Catili­na, e Mece­nas, o cortesão de Otávio; mas Cícero era ami­go de Ati­cus” (Dic­tio­n­naire philosophique. Gal­li­mard, 1994. p. 55; cf. tam­bém meu arti­go “Mis­são no Reich – Glória e covar­dia dos diplo­matas lati­no-amer­i­canos na Ale­man­ha de Hitler”. Revista do Insti­tu­to Históri­co e Geográ­fi­co de Minas Gerais. v. 32, p. 189). Quer diz­er que a “audá­cia desen­f­rea­da”, de que Cícero fala­va a propósi­to de Catili­na, cor­reu sol­ta des­de os primór­dios do nazis­mo.

Assim, tor­na-se impor­tante saber que con­sid­eráv­el parte dos sol­da­dos alemães, que mais se iden­ti­fi­cavam com o povo alemão, ten­tou negar seu apoio à insâ­nia total­itária do chefe todo-poderoso.

Entre ess­es inúmeros sol­da­dos, incluía-se Lud­wig Bau­mann, que decid­iu, em 1942, não par­tic­i­par mais “do mas­sacre que Adolf Hitler esta­va pro­moven­do pela Europa. Decid­iu deser­tar. Mas foi pego e acabou con­de­na­do por trair a Ale­man­ha. Há algum tem­po, no entan­to, ele e mil­hares de out­ros ‘traidores’ seri­am, final­mente absolvi­dos do crime de ter aban­don­a­do a luta. Em algu­mas sem­anas, o Bun­destag – o Par­la­men­to alemão – acabaria com o que está sendo chama­do de últi­mo tabu da 2a Guer­ra: a reabil­i­tação dos sol­da­dos alemães que deser­taram e foram jul­ga­dos por traição. No total, 30 mil jovens alemães aban­donaram os cam­pos de guer­ra nos anos 40. Cer­ca de 20 mil deles foram fuzi­la­dos por ordens da Justiça Mil­i­tar nazista, que os acu­sou de favore­cer as tropas ali­adas ou servir como infor­mantes.”

Ten­ho insis­ti­do, des­de reflexão do Padre João Bosco Penido Burnier, em sug­erir a bus­ca de condições de con­vivên­cia humana que prop­iciem a dis­pen­sa do sac­ri­fí­cio dos heróis e dos már­tires (cf. meu arti­go “Adeus aos heróis”. Revista da APMP. v. 29. Tam­bém “O anti-semi­tismo na era Var­gas”. Revista do Insti­tu­to Históri­co e Geográ­fi­co de Minas Gerais. v. 32, p. 199). O Padre Burnier, már­tir do Aragua­ia, perce­beu que, quan­do ora­va para tornar-se már­tir, em sua juven­tude, na ver­dade tam­bém ora­va para que alguém prat­i­cas­se con­tra ele crime hedion­do (Pe. José Coel­ho de Souza, S. J. O sangue pela justiça – Pe. João Bosco Penido Burnier, S. J. São Paulo : Loy­ola, 1978. p. 96. Tam­bém meu arti­go “Padre João Bosco Penido Burnier, már­tir pela justiça”. Sem­pre Encon­tran­do. v. 50).

Como clas­si­ficar aque­les mil­hares de sol­da­dos alemães que resi­s­ti­ram e acabaram fuzi­la­dos, por desertarem? Heróis e már­tires, sem dúvi­da algu­ma. Diante das rig­orosas e drás­ti­cas penal­i­dades por qual­quer insub­or­di­nação mil­i­tar, mil­hares de sol­da­dos se insur­gi­ram e foram tru­ci­da­dos, em decisões sumárias de cortes mil­itares.

O tex­to de Chade prosseguia, adi­ante: “Bau­mann, hoje com 87 anos, faz parte dos 10 mil sol­da­dos que, quase por mila­gre, escaparam da morte, seja nas trincheiras ou fuzi­la­dos após serem con­de­na­dos. ‘Eu não que­ria matar ninguém. Nun­ca tive qual­quer sim­pa­tia pelo que está­va­mos fazen­do’, afir­mou Bau­mann, em entre­vista por tele­fone ao Esta­do, de sua casa de Bre­men, na Ale­man­ha. Por mais de 60 anos, Bau­mann foi con­sid­er­a­do uma espé­cie de pária na sociedade alemã. Ago­ra, ele está se preparan­do para o grande dia de sua ‘absolvição sim­bóli­ca’.”

A questão dos deser­tores tem sido “tema sen­sív­el na Ale­man­ha por décadas. Setores lig­a­dos ao Exérci­to temi­am que uma reabil­i­tação dess­es sol­da­dos trans­mi­tisse um reca­do erra­do para a tropa atu­al, além de acabar qual­i­f­i­can­do como crim­i­nosos os juízes que dec­re­taram a pena con­tra Bau­mann e out­ros 30 mil home­ns… ‘Esse é o grande tabu da guer­ra’, disse Bau­mann, que hoje lid­era a asso­ci­ação de víti­mas dos tri­bunais mil­itares nazis­tas.”

Cus­ta crer, mas o cor­po­ra­tivis­mo atua mes­mo diante da tragé­dia do povo alemão, ao pon­to de haver resistên­cia à total revisão das graves injustiças cometi­das em nome do nazis­mo. Pelo apego maior à dis­ci­plina, a classe mil­i­tar não percebe que apóia os mas­sacres racis­tas e de out­ras mino­rias, as tor­turas e out­ras covar­dias, cer­ta­mente bem mais indig­nas das pes­soas hon­radas. O famoso “caso Drey­fus” ilus­tra bem tal afir­mação. O capitão do exérci­to francês, em 1894, foi fal­sa­mente acu­sa­do de traição con­sis­tente na ven­da ao inimi­go alemão de seg­re­do mil­i­tar. A toque lit­er­al de caixa, ele foi jul­ga­do por tri­bunal mil­i­tar e con­de­na­do à prisão per­pé­tua na Ilha do Dia­bo, per­to da Guiana france­sa. Claro que o Capitão Drey­fus logo perdeu as insíg­nias de ofi­cial. Claro tam­bém que con­tribuiu para seu infortúnio a sua condição de judeu. Alguns human­istas, ten­do à frente o escritor Émile Zola, empen­haram-se em provar a inocên­cia de Drey­fus, con­tra a grande impren­sa, o cor­po­ra­tivis­mo mil­i­tar, o gov­er­no e a opinião públi­ca (cf. meu livro O con­t­role juris­di­cional do proces­so dis­ci­pli­nar. São Paulo : Mal­heiros, 1996, pp. 358/360; tam­bém meu arti­go “Do caso Drey­fus ao caso Bode­ga: cem anos de absur­dos”. APMP Revista. v. 3).

O iní­cio do proces­so para anu­lação das sen­tenças dos tri­bunais mil­itares na Ale­man­ha só ocor­reu em 1998, “com a absolvição de qual­quer pes­soa con­de­na­da por razões políti­cas, mil­itares, racis­tas, reli­giosas e ide­ológ­i­cas”. Mas nem assim os “deser­tores e traidores” foram incluí­dos.

Em 2002, aprovou-se uma lei que “reabil­i­tou os deser­tores que não havi­am sido jul­ga­dos. Mas todos aque­les que foram con­de­na­dos por ‘traição de guer­ra’ con­tin­uaram sendo crim­i­nosos do pon­to de vista jurídi­co. Na práti­ca, con­tu­do, a nova lei não tin­ha efeito, já que prati­ca­mente todos os deser­tores foram qual­i­fi­ca­dos como traidores pelos tri­bunais mil­itares nos anos 40.”

A min­is­tra da Justiça alemã, Brigitte Zypries, há alguns anos, ten­tou explicar “o moti­vo pelo qual ess­es alemães não pode­ri­am ser ‘per­doa­d­os’: os sol­da­dos que traíram não pode­ri­am ser absolvi­dos porque prej­u­dicaram out­ros sol­da­dos alemães”. Percebe-se a frag­ili­dade dessa argu­men­tação, que não pas­sa de fal­ta de von­tade de agir com coerên­cia.

Só nos anos mais recentes, afi­nal, o pro­je­to de lei avançou. Antes dis­so, o par­tido União Democráti­ca Cristã (CDU) da chancel­er Angela Merkel, ain­da resis­tia “à reabil­i­tação dos traidores. Mas, iso­la­do e diante da pressão da opinião públi­ca, o par­tido cedeu e aprovou a lei.”

Não con­vém esque­cer o grande argu­men­to dos his­to­ri­adores em favor da absolvição dos deser­tores: muitas das con­de­nações por traição e mil­hares de fuzil­a­men­tos ocor­reram de for­ma indis­crim­i­na­da.

O temor maior do Exérci­to era a Rote Kapelle (Orques­tra Ver­mel­ha), denom­i­nação atribuí­da pela Gestapo ao grupo de espi­onagem rus­so que atu­a­va na Europa ocu­pa­da pelas forças mil­itares nazis­tas e na Suíça durante a segun­da guer­ra. A orga­ni­za­ção começou a atrair adep­tos, mil­itares ou não, con­tra Hitler. No final do ano de 1943, 150 mem­bros do grupo foram exe­cu­ta­dos “por defend­er o fim ime­di­a­to do con­fli­to”.

Bau­mann recon­hece que muitos deser­tores de fato pas­saram infor­mações fun­da­men­tais para os amer­i­canos e para o Krem­lin. O obje­ti­vo, porém, não era “a morte de nos­sos com­pan­heiros”, mas a con­sci­en­ti­za­ção de que “era pre­ciso acabar com o mas­sacre”.

Sobre o moti­vo de sua deserção, Bau­mann afir­ma que fugiu só para não mor­rer. Ele nun­ca con­cor­dou com o que acon­te­cia no cam­po de batal­ha. Ele se pre­ocu­pa­va com o des­ti­no das famílias dos lugares que eram inva­di­dos pelas tropas alemãs.

Sua fuga acon­te­ceu em Bor­deaux, sul da França, cidade ocu­pa­da pelos nazis­tas em 1942. A idéia dele e dos com­pan­heiros de deserção con­sis­tia em diri­gir-se à parte da França ain­da não ocu­pa­da e de lá para o norte da África. Dali, seguiri­am para os EUA. Mes­mo com a aju­da da Resistên­cia France­sa, foram logo cap­tura­dos pelos nazis­tas:

“Fomos tor­tu­ra­dos e lev­a­dos a jul­ga­men­to. Em 40 min­u­tos, a corte mil­i­tar decre­tou a sen­tença de morte”, afir­mou. E aqui talvez, em parte, a expli­cação da desen­voltura de Schindler, em seu mer­itório tra­bal­ho de sal­var os judeus da sua famosa lista: Bau­mann “só não foi exe­cu­ta­do ime­di­ata­mente porque seu pai tin­ha con­tatos no gov­er­no”. Em democ­ra­cias, esse trá­fi­co de influên­cia, crim­i­nosa­mente, cos­tu­ma teimar em ressur­gir. Que diz­er quan­do o regime é descara­da ditadu­ra total­itária?

O ex-mil­i­tar con­seguiu ser lev­a­do para um presí­dio, onde ficou até 1944. Igno­ran­do que seu fuzil­a­men­to tin­ha sido adi­a­do, Bau­mann ten­tou nova­mente a fuga: “A ideia era pro­mover um motim ger­al, com sol­da­dos espan­hóis comu­nistas que havi­am sido cap­tura­dos e estavam na mes­ma prisão. Mas o plano fra­cas­sou. Todos os espan­hóis foram mor­tos. Bau­man, mais uma vez, sobre­viveu. A punição que ele rece­beu pela ten­ta­ti­va foi ser envi­a­do para com­bat­er no front soviéti­co. A mis­são era con­sid­er­a­da uma sen­tença de morte. Sua úni­ca escol­ha foi se ferir de for­ma tão grave que o Exérci­to alemão não teria nen­hu­ma out­ra alter­na­ti­va a não ser enviá-lo de vol­ta para casa, à espera do dia da exe­cução. Mas a guer­ra ter­mi­nou antes e ele sobre­viveu nova­mente.”

Durante o ter­ror da Rev­olução France­sa de 1789, o abade Siéyès, autor do céle­bre livrin­ho “Q’uest-ce-que le tiers état?” (Que é o ter­ceiro esta­do?), ao con­trário dos grandes pen­sadores e líderes do movi­men­to, não foi con­de­na­do à guil­hoti­na. Inda­ga­do sobre sua atu­ação, naque­les anos de san­gren­to jacobin­is­mo, ele lim­i­tou-se a respon­der: “sobre­vivi”. Talvez Bau­mann ten­ha tido maior difi­cul­dade para repe­tir tal façan­ha.

Ele sobre­viveu tan­to, que pode saudar a que­bra do últi­mo tabu da segun­da guer­ra: “Muitos ami­gos meus e vários com­pan­heiros de com­bate mor­reram com o estig­ma de ter traí­do a nação alemã. Mas a Ale­man­ha está admitin­do seus erros e per­mitin­do que mais um tabu da pior parte de nos­sa história seja que­bra­do”.

Todos os episó­dios e decisões dos piores momen­tos da humanidade exigem a reflexão de todos nós, para que nen­hum deles se repi­ta.

Todos nós deve­mos ver, jul­gar e agir (cf. “Ação católi­ca”. Anto­nio José de Almei­da. Dicionário do Con­cílio Vat­i­cano II. São Paulo : Paulus/Paulinas, 2015, p. 3; Agenor Brighen­ti. “Méto­do Ver-Jul­gar-Agir”, Dicionário, cit., pp. 608/615). Em 30/6/15, o Estadão pub­li­cou matéria sob o títu­lo: “Dom Odi­lo defende veto a Fou­cault na PUC e nega cen­sura”. No tex­to de Isabel­la Pal­hares, que se seguia, incluía-se o seguinte tre­cho: “Fou­cault é con­heci­do por suas críti­cas às insti­tu­ições soci­ais, entre elas a Igre­ja Católi­ca”. Com tan­tos artis­tas, líderes e pen­sadores cristãos, cabe o jul­ga­men­to cor­re­to e jus­to: cát­e­dras de insti­tu­ição uni­ver­sitária católi­ca de modo algum podem hom­e­nagear adver­sários da nos­sa religião ou mes­mo de qual­quer out­ra.

Voltan­do à absolvição dos herói­cos deser­tores alemães da segun­da guer­ra mundi­al, ain­da bem que, o jul­ga­men­to, mes­mo tar­dio, reabil­i­tou todos eles da absur­da fama de traidores.