Graças ao impor­tante tra­bal­ho da jor­nal­ista, tradu­to­ra e escrito­ra Rosa Freire D’Aguiar, a lin­da hom­e­nagem de Zé Cel­so Mar­tinez Cor­rêa a Cel­so Fur­ta­do foi preser­va­da e pub­li­ca­da, recen­te­mente, no momen­to do pas­sa­men­to de Zé Cel­so.

Pub­li­ca-se, aqui também,como hom­e­nagem aos dois ExCel­sos rep­re­sen­tantes da cul­tura cidadã brasileira, um doc­u­men­to para a história da con­strução da democ­ra­cia.

A morte de Cel­so Fur­ta­do me deixou muito abal­a­do.

Eu esta­va duro e ao mes­mo tem­po pre­ocu­pa­do de não deixar a trincheira do com­puta­dor escreven­do “A Luta”, mas quis muito pegar um avião e ir ao enter­ro, no Rio de Janeiro. Era ami­go dele e da mul­her, Rosa.

Eu acho que o site deve traz­er uma foto dele urgente, rev­e­lando que, enquan­to min­istro da Cul­tura — depois de a sec­re­taria do Esta­do de São Paulo se recusar a colo­car din­heiro nas obras do Teatro Ofic­i­na e de o Maluf ter ofer­e­ci­do con­tin­uar nos dan­do din­heiro — ele entrou em cena e man­dou o Fábio Mag­a­l­hães, um pin­tor de São Paulo, muito bom e muito ami­go, se ofer­e­cer para o min­istério para con­cluir as obras do Ofic­i­na. Veio da parte dele inteira­mente!

Uma vez em Lis­boa, tomei um áci­do “Orange Cal­ifór­nia” e fui me encon­trar com ele, que esta­va lá tam­bém exi­la­do, acho que na Fun­dação Gul­benkian.

Olhos nos olhos. Ele tin­ha belís­si­mos olhos verdes. Era um homem lin­do. Eu esta­va na con­tra luz, e o sol era um lugar ao ar livre. Ilu­mi­na­va todo o ros­to quadra­do, imen­so, cin­e­matográ­fi­co dele.

Uma cara forte, bronzea­da, de jagunço, com a face esculp­i­da em pedra, rosa­da e bege; uma enti­dade que trazia em si A TERRA, O HOMEM E A LUTA, com uma coisa de rép­til, de cobra, de bicho forte coriáceo.

Eu esta­va lisér­gi­co, mas os alu­cinógenos sem­pre me deix­am muito lúci­do e apaixon­a­do. Tive o priv­ilé­gio de estar e falar com ele, ele na ter­ceira dimen­são, a do ter­ceiro olho do teatro, como diz Niet­zsche, numa viagem que evi­den­te­mente o con­ta­giou pela ener­gia laran­ja que nos envolvia, ampli­a­da pelo sol.

Via­jamos muito na cul­tura brasileira e na sua relação doce e dire­ta com a econo­mia.

O áci­do, sem que ele percebesse, porque não sabia que eu esta­va naque­le esta­do, nos uniu.

E, como eu con­hecia muito a obra dele, e ele gosta­va muito de arte, fomos longe.

Foi um dess­es encon­tros que o [George Ivanovitch] Gur­d­ji­eff fala, no cos­mos da vida, deci­sivos, sagra­dos, como um que tive com o João Gilber­to em Nova York, toman­do cogume­lo de peiote do Méx­i­co.

Cel­so Fur­ta­do estru­tur­ou meu pen­sa­men­to anti­colo­nial, me pas­sou uma visão de fer­ro das pos­si­bil­i­dades de vencer­mos o sub­de­sen­volvi­men­to por meio de uma engen­haria para a econo­mia que par­tisse de uma visão cul­tur­al para o ser “trans-humano”, lig­a­da ao mer­ca­do inter­no, ao esti­lo e à cria­tivi­dade de nos­sos quadros, quer diz­er, a mel­hor her­ança que nos­sos pais nos deixaram: Lina [Bo Bar­di], Dar­cy Ribeiro, Oswald [de Andrade], em ter­mos desse assun­to que hoje obse­dia o mun­do.

Mas, no caso dele, muito especí­fi­co porque sabia que os esque­mas cov­ers inter­na­cionais vin­dos de Bre­ton Woods não eram metafísi­cos, divi­nos, abso­lu­tos e que a Améri­ca Lati­na podia e pode, por seu ter­ritório, cul­tura, for­mação, sua arte, cri­ar out­ra econo­mia. Por isso era tão queri­do inter­na­cional­mente.

Ele tin­ha muito de João Cabral [de Melo Neto], o mes­mo rig­or de pedra para con­stru­ir out­ra pedra que cer­ta­mente não era a de Pedro. Rocha Viva! As pedras de Euclides e de Nel­son.

Pois não é que este poeta da econo­mia nos ofer­e­ceu por meio do Min­istério da Cul­tura a col­u­na dor­sal, quer diz­er, a estru­tu­ra do Teatro Ofic­i­na, as estru­turas todas de fer­ro?!

Até então está­va­mos na fase do buracão, vin­dos da fase da descon­strução. Seu ato como min­istro da Cul­tura deu o sen­ti­do de erguer a obra, o sinal pos­i­ti­vo con­stru­tivista. Lev­an­tar as novas estru­turas, erguer a col­u­na dor­sal, como ele quis faz­er com o Brasil.

Impe­di­do primeiro pelo golpe de 64, depois pela políti­ca do lib­er­al­is­mo trazi­do pelo golpe.

E ago­ra pela sub­mis­são à cul­tura que vito­ri­ou o Bush: o fetiche do sis­tema econômi­co imutáv­el. O vodu.

Ele já tin­ha prova­do que era pos­sív­el. Ele e a Con­ceição [Tavares] que esta­va sin­ce­ra­mente comovi­da no enter­ro. Como gos­to dela!

Depois ele acha­va que era estran­ho o próprio Esta­do de São Paulo não inve­stir no Teatro Ofic­i­na, e ten­tou faz­er com que isso acon­te­cesse, mas a secretária de Cul­tura era a atriz Bete Mendes, que dizia que, por ser atriz, não podia rep­re­sen­tar os inter­ess­es dos artis­tas, seria como advog­ar em causa própria, ela tin­ha de servir o Esta­do?!

Mas não impor­ta. Ele deu a estru­tu­ra para o nos­so segun­do nasci­men­to, como creio que sua obra nos lega o mes­mo para a estru­tu­ra que poderá lev­an­tar o Brasil, fora da posição de dom­i­na­do.

Sua obra ain­da — como a de Oswald, Lina, Dar­cy, Hélio Oiti­ci­ca, Glauber [Rocha] — tem mui­ta ener­gia a dar para con­quis­tar­mos o Brasil que ele e nós son­hamos.

Cel­so é um Euclides [da Cun­ha] da “econo­mia-arte”, e um inspi­rador des­ta luta para mon­tar “Os Sertões”, mais difí­cil do que, às vezes acho, a Guer­ra de Canudos.

Temos um vídeo de uma visi­ta dele ao teatro, num tem­po que não tín­hamos cimen­to no chão, somente ter­ra enlamea­da.

Ele era sem­pre muito ele­gante. Veio muito bem vesti­do e acom­pan­hado de mul­heres do min­istério, como uma queri­da atriz mineira, Priscila, que tin­ha os saltos muito altos. Rosa, sua mul­her (eram recém-casa­dos), tam­bém esta­va de saltos.

É lin­do o vídeo. Marce­lo [Drum­mond] fil­mou: todos atolan­do-se com os sap­atos chiquér­ri­mos na lama, subindo as estru­turas, mas sem perder o humor.

Priscila, asses­so­ra dele, a atriz, ficou lou­ca e começou a atu­ar. Foi uma tarde históri­ca.

Vou assi­nar, por causa do meu xará, Cel­so ExCel­so José Cel­so Mar­tinez Cor­rêa. Viva Cel­so Fur­ta­do!

PS: Ele dizia uma coisa muito lin­da. Que o can­domblé era uma obra de arte, mais lin­do que a cos­molo­gia e as obras todas de Proust que, para ele, era o máx­i­mo onde um escritor podia ter chega­do. Me man­dou tam­bém para Paris no ano do sécu­lo de Stanislavs­ki, num encon­tro mundi­al no Beaubourg, em 1990. Só ten­ho amor por essa vida que em mim con­tin­ua.

Mer­da!