Leia, a seguir, o impor­tante arti­go pub­li­ca­do por Rolf Kuntz, jor­nal­ista de O Esta­do de S.Paulo, filó­so­fo da políti­ca e Pro­fes­sor da FFLCH da USP.

 

O Brasil diante da ambição imperial de Trump

Mais do que uma agressão comercial, a decisão de Trump foi um tentativa de interferência nas instituições brasileiras

Rolf Kuntz

13/07/2005

O Esta­do de S. Paulo

Opinião

Pode-se duvi­dar e tomar como pia­da, mas de fato existe na Câmara dos Dep­uta­dos uma Comis­são de Relações Exte­ri­ores e Defe­sa Nacional – sim, Defe­sa Nacional. Muito bem remu­ner­a­dos pelos cidadãos brasileiros, 23 inte­grantes dessa comis­são aprovaram, nes­ta sem­ana, moção de “lou­vor e regoz­i­jo” dirigi­da ao pres­i­dente amer­i­cano Don­ald Trump. Mais tarde, no mes­mo dia, o hom­e­nagea­do assi­nar­ia, na Casa Bran­ca, a imposição de uma tar­i­fa de 50% a pro­du­tos orig­inários do Brasil.

Mais do que uma agressão com­er­cial, a decisão de Trump foi uma ten­ta­ti­va de inter­fer­ên­cia nas insti­tu­ições brasileiras – um ato em defe­sa do ex-pres­i­dente Jair Bol­sonaro, seu mais notório servi­dor na políti­ca do Brasil. A recente visi­ta do pres­i­dente Luiz Iná­cio Lula da Sil­va à ex-pres­i­dente Cristi­na Kirch­n­er, acu­sa­da de cor­rupção e con­de­na­da a prisão domi­cil­iar, foi logo lem­bra­da. Mas ele se lim­i­tou, nes­sa visi­ta, a segu­rar um pequeno car­taz com a inscrição “Cristi­na libre”, sem for­mu­lar ou insin­uar ameaças políti­cas ou econômi­cas.

Ain­da assim, atos desse tipo, cometi­dos pelo gov­er­nante de um país com algum peso glob­al ou region­al, difi­cil­mente são redutíveis a man­i­fes­tações pes­soais. Lula sabe ou dev­e­ria saber dis­so. Seu ato, no entan­to, emb­o­ra dis­cutív­el e talvez crit­icáv­el, é infini­ta­mente menos grave do que o ind­is­farçáv­el abu­so per­pe­tra­do pelo pres­i­dente dos Esta­dos Unidos.

Com ameaças com­er­ci­ais ao Brasil, à Cor­eia do Sul e ao Japão, o pres­i­dente Don­ald Trump, mais uma vez, atro­pela a ordem glob­al e ten­ta sub­sti­tuir o sis­tema de coop­er­ação e regras pelo regime da força. O enfraque­c­i­men­to de insti­tu­ições inter­na­cionais, como a Orga­ni­za­ção Mundi­al do Comér­cio (OMC), vem ocor­ren­do há anos. Esse proces­so resul­ta, em grande parte, de fal­has do gov­er­no amer­i­cano. Omis­sões, mes­mo de indi­ví­du­os ou gov­er­nos bem-inten­ciona­dos, podem ser tão danosas quan­to atos inten­cionais. Mas a ação trump­ista tem rev­e­la­do um claro despre­zo às práti­cas de coex­istên­cia.

As políti­cas de Trump têm sido facil­i­tadas por erros e omis­sões de ante­ces­sores às vezes bem-inten­ciona­dos. Mas é difí­cil atribuir ao atu­al pres­i­dente amer­i­cano algo mais con­stru­ti­vo que suas notórias pre­ten­sões impe­ri­ais. Ele se proclam­ou aves­so a guer­ras, mas nem por isso deixou de seguir, no plano inter­na­cional, as práti­cas com­patíveis com sua ambição de poder. Inter­na­mente, essa ambição tem resul­ta­do em ataques a uni­ver­si­dades, em perseguições a imi­grantes e em vio­lações de nor­mas cul­tuadas quase reli­giosa­mente, como as liber­dades de opinião e de man­i­fes­tação. Alguns juízes têm às vezes con­segui­do frear os abu­sos pres­i­den­ci­ais, mas sem alter­ar de for­ma duradoura os padrões trump­is­tas.

Ess­es padrões evi­den­cia­ram-se, mais uma vez, nas pressões tar­ifárias con­tra o Brasil e na inter­fer­ên­cia, até ago­ra fra­cas­sa­da, em defe­sa de Jair Bol­sonaro. A ação do pres­i­dente amer­i­cano foi ini­cial­mente admi­ti­da por alguns políti­cos brasileiros. O gov­er­nador de São Paulo, Tar­cí­sio de Fre­itas, culpou Lula pelo tar­i­faço anun­ci­a­do por Trump e se apre­sen­tou usan­do boné ver­mel­ho com o lema trump­ista “Make Amer­i­ca Great Again” (“Faça a Améri­ca Grande de Novo”). Recu­ou, no entan­to, quan­do lhe apon­taram as prováveis per­das cau­sadas à econo­mia paulista pela ação do pres­i­dente amer­i­cano.

Out­ros políti­cos mostraram-se mais com­pro­meti­dos com o Brasil. Em Brasília, os pres­i­dentes da Câmara e do Sena­do, Hugo Mot­ta e Davi Alcolum­bre, respec­ti­va­mente, jun­taram-se ao Exec­u­ti­vo na reação a Don­ald Trump. Diante da agressão políti­ca vin­da de Wash­ing­ton, vários par­la­mentares encostaram as ban­deiras par­tidárias e se opuser­am à ini­cia­ti­va amer­i­cana.

O clã bol­sonar­ista aplaudiu, é claro, a ten­ta­ti­va de inter­fer­ên­cia na políti­ca brasileira e o ataque a insti­tu­ições do País, como o Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al (STF). Na biografia de Jair Bol­sonaro e de seus fil­hos, esse episó­dio foi, no entan­to, ape­nas mais uma agressão aos Poderes da orga­ni­za­ção democráti­ca nacional. A novi­dade par­cial foi o envolvi­men­to – mais do que ind­is­farçáv­el, explíc­i­to – do pres­i­dente Don­ald Trump, dig­no herdeiro dos apoiadores de golpes na Améri­ca Lati­na dos anos 1960 e 1970.

Assim como as ações de Bol­sonaro e sua tur­ma, a políti­ca exter­na do pres­i­dente Don­ald Trump rep­re­sen­ta um atra­so, um retorno de mais de meio sécu­lo a momen­tos som­brios da Améri­ca Lati­na e ao cenário dos golpes apoia­dos por Wash­ing­ton. As dis­posições políti­cas do clã bol­sonar­ista são bem con­heci­das. Mes­mo can­dida­to à Presidên­cia da Repúbli­ca, Jair Bol­sonaro nun­ca se mostrou com­pro­meti­do, de fato, com as práti­cas e insti­tu­ições democráti­cas.

Tam­bém são típi­cas desse pas­sa­do as pre­ten­sões impe­ri­ais de políti­cos como Don­ald Trump, um pres­i­dente clara­mente empen­hado em con­tro­lar os país­es viz­in­hos e as maiores econo­mias da Améri­ca Lati­na. Argenti­na e Brasil são obje­tos evi­dentes dessa ambição, mas o gov­er­no argenti­no parece pouco dis­pos­to a se artic­u­lar com o brasileiro con­tra esse risco. Mes­mo no Brasil, políti­cos mais con­ser­vadores se mostram pouco pre­ocu­pa­dos com as ambições trump­is­tas. Esse é mais um prob­le­ma para Lula e a diplo­ma­cia brasileira.