O sociól­o­go Ange­lo Del Vec­chio, pro­fes­sor livre docente aposen­ta­do da Fac­ul­dade de Ciên­cias e Letras de Araraquara,da UNESP, e pres­i­dente do Con­sel­ho Supe­ri­or da Esco­la de Soci­olo­gia e Políti­ca de São Paulo., inda­ga a quem inter­es­saria o fim da ordem con­sti­tu­cional inau­gu­ra­da em 1988, ao fim da ditadu­ra mil­i­tar, e encon­tra respos­ta nas forças de sus­ten­tação do atu­al gov­er­no fed­er­al. Leia o arti­go a seguir.

 

“A quem inter­es­sa a der­ro­ca­da da Car­ta de 1988.

Ange­lo Del Vec­chio

 

” — Ver­di è mor­to! Ver­di è mor­to!” Gri­ta o men­sageiro na primeira cena do filme “Nove­cen­to”, de Bernar­do Bertoluc­ci.

Gri­to semel­hante, mas muito menos épi­co, parece ecoar nas falas e escritas de grande parte dos anal­is­tas, oper­adores políti­cos e obser­vadores da dinâmi­ca do poder em nos­so país, quan­do sen­ten­ci­am: O regime de 1988 acabou!

Con­vi­da­dos a desen­volver seus argu­men­tos, ver­gas­tam o Con­gres­so Nacional, o sis­tema de par­tidos, os sindi­catos, o fun­ciona­men­to dos poderes repub­li­canos, o Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al, e todas as for­mas insti­tu­cionais abri­gadas na Car­ta de 1988.

Não deix­am de ter algu­ma dose de razão, ain­da que ape­nas meia dose.

É cer­to que par­tidos, sindi­catos, par­la­men­to e os poderes judi­ciário e leg­isla­ti­vo têm larga dívi­da com a cidada­nia. De out­ra parte, é cer­to tam­bém que, a despeito da aparente cria­tivi­dade dos que pen­sam e oper­am a políti­ca em per­spec­ti­va democráti­ca, não temos recur­sos de luta tão efe­tivos quan­to estes tão despres­ti­gia­dos insti­tu­tos. Sejam eles os movi­men­tos soci­ais, em suas várias denom­i­nações, os cole­tivos iden­titários, ou out­ras for­mas ino­vado­ras de luta políti­ca. Estes têm efe­ti­vo papel na luta democráti­ca, mas, até o pre­sente, não pare­cem apre­sen­tar potên­cia para suprir as even­tu­ais carên­cias das insti­tu­ições tradi­cionais da democ­ra­cia.

Ade­mais, con­sid­er­ações que seguem essa lin­ha ino­vado­ra e cria­ti­va, em ger­al, dedicam pou­ca atenção aos movi­men­tos estratégi­cos dos atores políti­cos rel­e­vantes. Desleixo cru­cial neste momen­to em que todos se real­in­ham sob o pressão das novas condições que as eleições de 2018 impuser­am ao país.

As forças à esquer­da, ain­da fra­cionadas, lambem as feri­das adquiri­das na batal­ha per­di­da e purgam erros, cujas causas muitas vezes atribuem aos mais próx­i­mos, ou seja, as forças próprias forças de esquer­da. A dire­i­ta apre­sen­ta muito mais ambições difusas, do que um pro­je­to pro­pri­a­mente dito. Suas ban­deiras reco­brem um vas­to cam­po que vai dos con­fins do moral­is­mo que recende ao bolor de 1964, até a con­tem­po­ranei­dade de um neolib­er­al­is­mo em cuja agen­da não cabem as pes­soas reais, mas ape­nas abstrações indi­vid­u­al­is­tas, pre­ten­sa­mente mer­i­tocráti­cas.

Nesse cal­do espes­so e azi­a­go um agente em par­tic­u­lar se move com evi­dente cál­cu­lo estratégi­co, cál­cu­lo esse que tem lhe per­mi­ti­do ameal­har poder e influên­cia cres­centes.

São eles os mil­itares, e mais especi­fi­ca­mente, a cot­terie, o cír­cu­lo profis­sion­al e social que ascen­deu ao poder com a eleição do capitão refor­ma­do Bol­sonaro.

Note-se que se tra­ta de um núcleo de bem prepara­dos profis­sion­ais da caser­na, cuja movi­men­tação lhes per­mi­tiu assumir pos­tos estrate­gi­ca­mente dis­tribuí­dos, de modo a con­tin­gen­cia­rem a ativi­dade de todos os min­istérios e agên­cias públi­cas mais impor­tantes, bem como de condi­cionar os movi­men­tos e ati­tudes do próprio pres­i­dente, que, emb­o­ra mil­i­tar refor­ma­do, sem­pre foi figu­ra de menor expressão nesse meio, e não con­seguiu maior pro­jeção na segun­da vida profis­sion­al, a de par­la­men­tar.

Homem de pou­cas letras e de instin­to políti­co rudi­men­tar, Bol­sonaro encon­tra-se hoje encap­su­la­do, dom­i­na­do, pelos gen­erais que ape­nas teori­ca­mente são seus aux­il­iares, mas que, na ver­dade, se ori­en­tam por uma lóg­i­ca de esta­men­to e estão em fran­co proces­so de cap­tura da estru­tu­ra do Esta­do, como ates­ta a pre­sença de vinte e dois ofi­ci­ais supe­ri­ores em car­gos fed­erais de grande influên­cia.

Com coor­de­nação impres­sio­n­ante, já se con­fig­u­ram como a elite diri­gente do gov­er­no, e, tudo indi­ca, se pro­je­tam como elite diri­gente do novo regime políti­co que virá, caso o vat­icínio dos nos­sos anal­is­tas e oper­adores políti­cos de fato se real­ize.

No entan­to, o que existe hoje a sep­a­rar os dese­jos e planos dos mil­itares encaste­la­dos no gov­er­no da real­i­dade, é pre­cisa­mente a Car­ta de 1988 e as insti­tu­ições democráti­cas que ele pre­screve e abri­ga.

Esse apara­to deve sim ser expos­to à críti­ca que vise ao seu aper­feiçoa­men­to. Para que seja con­sis­tente com os inter­ess­es pop­u­lares e as lutas por dire­itos, essa críti­ca não pode, con­scien­te­mente ou não, levar ao enfraque­c­i­men­to destas insti­tu­ições, pois, além delas está o autori­taris­mo, bem ou mal elab­o­ra­do.

Apos­tas em ino­vações cal­cadas em cál­cu­los táti­cos ligeiros, tais como a ele­vação dos movi­men­tos soci­ais em detri­men­to dos par­tidos e sindi­catos, e a con­vo­cação de uma assem­bleia con­sti­tu­inte com a cor­re­lação de forças atu­al, com efeito, não são recomendáveis.”

 

Na imagem, Il Quar­to Sta­to, de Giuseppe Pel­liz­za da Volpe­do, 1901.