A DC Comics, em 1940, já na primeira revista em quadrin­hos de seu herói Bat­man, apre­sen­tou aos leitores seu arquir­rival Jok­er,  psi­co­pa­ta, crim­i­noso que ri con­stan­te­mente de si e de seus feitos e víti­mas, cri­a­do por Jer­ry Robin­son, Bill Fin­ger e Bob Kane, inspi­ra­do na per­son­agem Gwyn­plaine, inter­pre­ta­da por Con­rad Vei­dt, no filme O Homem que Ri, de 1928, dirigi­do por Paul Leni, que, por sua vez, con­sti­tuía uma adap­tação do livro de Vic­tor HugoL’Homme qui rit, de 1869.

O anti-herói, dota­do de humor sar­cás­ti­co, per­maneceu com seu per­fil doen­tio até 1950, quan­do as nor­mas autoritárias e a cen­sura levou‑o a assumir o papel de um crim­i­noso entre brin­cal­hão e par­vo, somente voltan­do a ado­tar as car­ac­terís­ti­cas orig­i­nais de per­son­al­i­dade a par­tir da déca­da de 1970.

No filme de 2019, dirigi­do por Todd Phillips, que escreveu o roteiro com Scott Sil­ver, há uma ten­ta­ti­va de expli­cação do per­fil psíquico doen­tio do Coringa, inter­pre­ta­do de modo magis­tral por Joaquin Phoenix.

No breve arti­go a seguir, Adri­ana F.S. Oliveira, pesquisado­ra do Cen­tro Inter­na­cional de Dire­itos Humanos de São Paulo, vin­cu­la­do à Cadeira San Tia­go Dan­tas, da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito,  usa o enre­do do filme de 2019, para falar sobre o grave prob­le­ma da vio­lên­cia domés­ti­ca e suas con­se­quên­cias para as cri­anças, que con­stituem suas maiores víti­mas.

Veja o arti­go a seguir.

O Per­son­agem Coringa e a Vio­lên­cia Domés­ti­ca

Adri­ana F S Oliveira

A vio­lên­cia con­tra a mul­her é um fato em todas as sociedades, o que inde­pende de classe social e local­iza­ção geográ­fi­ca, inclu­sive esse fenô­meno tran­si­tou no tem­po fun­da­men­ta­do no patri­ar­cal­is­mo e rece­beu várias mule­tas que bus­cam jus­ti­ficar a con­tinuidade dessa cha­ga social, senão mais fisi­ca­mente porque essa for­ma gan­hou vis­i­bil­i­dade e penal­iza­ções céleres, de maneira a valer-se do poder sim­bóli­co de quem o detém.
A esfera domés­ti­ca que dev­e­ria pro­te­ger, por vezes con­strange, ame­dronta e fere. O lar dev­e­ria ser o local em que o ser humano se sen­tisse seguro, todavia, é onde abu­sos e crimes ocor­rem no silên­cio da moral famil­iar. A imagem fem­i­ni­na lig­a­da à casa e ao cuida­do com os afaz­eres domés­ti­cos per­siste no cole­ti­vo e a vio­lên­cia per­pe­tra­da con­tra a mul­her recebe erronea­mente o nome de vio­lên­cia domés­ti­ca.
Aber­ta a cha­ga que emoldu­ra-se ao teci­do social, o cin­e­ma atu­al trouxe expli­cações para o tor­men­to de um anti­go e con­heci­do per­son­agem dos quadrin­hos. Ence­na­do pelo ator de Por­to Rico, Joaquin Phoenix, Coringa ri repeti­da­mente por transtornos neu­rológi­cos cau­sa­dos na infân­cia envolvi­da em cic­los de vio­lên­cia con­tra sua mãe ado­ti­va e con­tra ele próprio, prat­i­ca­dos por namora­dos da mes­ma. O per­son­agem viveu uma infân­cia abu­si­va e de aban­donos esque­ci­dos em sua vida adul­ta e ator­men­ta­da de pou­cas e super­fi­ci­ais relações soci­ais. Num desca­so do serviço públi­co de saúde de sua cidade, vê-se sem condições finan­ceiras de man­ter a med­icação para seus transtornos.
Levan­do-se em con­ta que a tra­ma pas­sa-se imag­i­nar­i­a­mente na déca­da de 1980, obser­va-se no cenário mundi­al o mes­mo desca­so a que são rel­e­ga­dos diver­sos seres humanos que tran­si­tam invisíveis para os rep­re­sen­tantes políti­cos, as insti­tu­ições e out­ros indi­ví­du­os. Nesse pon­to paira no ar a sen­sação de cer­car a lou­cu­ra den­tro dos man­icômios, o crime nos encar­ce­ra­men­tos, os doentes nos hos­pi­tais e os eco­nomi­ca­mente hipos­su­fi­cientes nas per­ife­rias. Estar fora dessas situ­ações é moti­vo de agradec­i­men­to ao divi­no, sinal de suces­so e num golpe, foi sorte mes­mo!
A lou­cu­ra do per­son­agem exau­re as con­se­quên­cias da vio­lên­cia prat­i­ca­da no lar, entre­tan­to, o filme inti­t­u­la­do orig­i­nal­mente como Jok­er, pro­duzi­do em 2019, trouxe à baila nova­mente um assun­to a ser debati­do: as políti­cas públi­cas estão dis­cutin­do o enfrenta­men­to da vio­lên­cia con­tra a mul­her, entre­tan­to, as fil­has e fil­hos dessas mul­heres tam­bém são víti­mas dire­tas ou indi­re­tas desse con­tex­to e essas políti­cas não tratam esse entre­laça­men­to com pro­fun­di­dade, espe­cial­mente em país­es em desen­volvi­men­to como o Brasil.
São com­plex­i­dades que ao serem desven­dadas assemel­ham-se às cebo­las. Muitas camadas para alcançar o mio­lo ger­ador do todo. Pois então, na medi­da em que as con­quis­tas fem­i­ni­nas avançaram, toda a gama de con­fli­tos car­rega­dos por ess­es sujeitos foram surgin­do e
o momen­to pede que essas políti­cas diri­jam os olhares para as cri­anças e ado­les­centes em situ­ação de vio­lên­cia domés­ti­ca.
Se ness­es casos, não é pos­sív­el con­fi­ar na família para pro­te­ger e cuidar dos seus, a esco­la é a insti­tu­ição fre­quen­ta­da por ess­es jovens. Daí a importân­cia dos pro­fes­sores e gestores estarem aten­tos para sinais de que esse estu­dante está con­viven­do em situ­ação de vio­lên­cia e todo o diss­a­bor que esse fenô­meno pode causar, cai no descon­hec­i­men­to, pois ess­es reflex­os podem se man­i­fes­tar no perío­do de toda a existên­cia.
O per­son­agem Coringa levan­tou vários véus soci­ais que neces­si­tam de debates e soluções. Aqui coube provo­car reflexões sobre as con­se­quên­cias da vio­lên­cia intrafa­mil­iar, inter­pes­soal e insti­tu­cional.