Alteridade
Mauricio Paroni (*)
Em 1994, o dramaturgo Renato Gabrielli propôs um trabalho provocador sobre a decepção dos malvados mortos quando souberem existir de verdade tudo o que estava na bíblia sobre o Além; consequentemente, estariam eternamente destinados às penas do inferno. O diretor artístico do teatro, catedrático da Universidade Católica de Milão e eminente quadro da Democracia Cristã, não permitiu que fossemos adiante. Trabalhamos, então, no Asno de Ouro, a partir de Apuleio. Mas a irreverência foi avante em outras plagas: em Mântua, no tema Ubu Cornudo, reescrito por Renato.
Num dos brevíssimos encontros que tive nos anos com Zé Celso, falamos disso. Privilégio. Da sua a conversação macia, sorridente, informada mas sobretudo formada, não se saía sem que uma sua opinião firme e radical, fundamentada, surpreendesse e transformasse o pensamento. Conversava com qualquer um que admitisse um diálogo civilizado. Rimos da importância que a patafísica ubuesca dava às entradas e saídas de cena pelo funcionamento dos alçapões — dispositivos cenográficos que uniam o palco ao inferno, como era chamado o lado inferior da cenografia medieval, descendente do Hades greco-romano. Foi num rápido encontro depois de Os Sertões, de Euclides da Cunha, sobre o então terroso palco do Oficina.

Onde agora vela-se e dança-se seu funeral. Silencioso diante do corpo, remetido ao surrealismo do famoso carro de mudanças ante a morte desejado por André Breton; e daqui para a poesia da viagem dantesca, um temor sentido não me permite imagina-lo em paraísos, purgatórios, muito menos em infernos. Mas, sim, no Vestíbulo dos poetas.
Quero sonhar que, em algum lugar e tempo deste Universo cada vez mais expandido e sideral, exista de verdade o além túmulo completado pelo platonismo alocado no Vestíbulo dos grandes poetas. Desejo real, visão e pressentimento. Zé Celso em delícia no Hades, dado Exu que é… pudesse eu fazer a maravilhosa viagem poética… Zé Celso no vestíbulo, divertindo Virgílio, Sêneca, Safo e outras genialidades.
Também temo o que pode ser do futuro deste palco se a ident-idade de um Silvio Sen-hor não colaborar.
Difícil escolher o círculo. Que isso seja impossível neste mundo: não sei se o desejo ou não, Freud explica, mas é um pressentimento de que Silvio Sen-hor tenha lugar reservado em círculos inferiores, onde estão seus antigos asseclas lombardos. Com sua gentalha: descendentes que o capataz ínfero admira e inspira a transformar a área do Oficina num shopping — templo de horrores religiosos. De que tenha a colaboração de juristas em degredo terreno.
Quem deve estar cá ou la? Os círculos do Inferno são sobrepostos. Dante tipifica as ofensas cometidas em vida. Antes de entrar, perdeu-se, em estado onírico, perto da cidade de Jerusalém, sob o abismo surgido com a queda de Lúcifer na Terra.
E assim vai o pressentimento…
Em qual círculo desse abismo especular o destino de pecadores como Silvio Sen-hor ? Onde está localizada a gentalha que ele liderou nas suas contínuas ofensas ao Teat®o?
Limbo? Luxúria? Aquelas meninas humilhadas ao vivo em auditório… Gula ? pão-durismo? Agiotagem? Aqueles jogos… Iracundos e ácidos? Aqueles programas exploradores do crime… Heresias ? Aquelas seitas fundamentalistas falsamente cristãs… Violência? Basicamente tudo o que veiculou em sua emissora… Assassinatos, saques, tiranias, suicídios, rasas ostentações de riqueza, blasfêmias, sodomia hipocritamente condenada, usura moral e material, usura, baús fraudulentos e indignos de confiança, prostituição cultural, seduções pedófilas, puxa-saquismo politiqueiro, adulações, simonía, falsa magia, falsa previsão, adivinhos, barganha barata, hipocrisia, furtos, falso aconselhamento, inseminação de discórdia, falsificações, traições a gente crédula…E ainda os piores lugares, a temer, mas não perdemos as eleições: Caina, Antenora, Tolomea, Giudecca.
E assim vai… aqui diante prostrado, Zé Celso estará entre os poetas. Deste vestíbulo eliseo… grandes do teatro e do cinema, dos terreiros, dos templos, dos antigos, dos orixás, Exú, Oxalá, Ogum, Oxóssi, Oxum, Oxumaré, Xangô, Iansã, Iemanjá, Nanã, Omolú, Logunedé, Obá, Ossain, Yewá e Ibeji; das divindades indígenas como Yara, Tupan; diante de Homero, Electra, Hector, Enéias, Julius Caesar, Lucretia, Saladin, Aristóteles, Sócrates, Platão, Demócrito, Diógenes,Tales, Empédocles, Heráclito, Zenão, Orfeu, Cícero, Sêneca, Euclides, o da Cunha também, Ptolomeu, Hipócrates, Avicena, Terêncio, Cecílio Estácio, Plauto, Elza, Cartola,Tim Maia, Eurípides, Antígona, Tirésias, Averróis. E infinitas outras almas. Outras. Outras. Outras.
E assim vai o pressentimento…