Pub­li­ca­do orig­i­nal­mente na Revista  Sul21 (clique para ler), o arti­go a seguir dá con­ta de mais uma reunião do pro­gra­ma Recon­stru­in­do o Esta­do de Bem ‑Estar nas Améri­c­as, ocor­ri­da em São Paulo, no mês de agos­to, e da neces­si­dade de aliança entre democ­ra­cia e bem-estar, na ren­o­vação dos planos de ação dos par­tidos democráti­cos de esc­quer­da.

O tema foi obje­to de impor­tante debate entre Tar­so Gen­ro, José Dirceu e Paulo Van­nuchi, no pro­gra­ma Giro das 11 (clique para assi­s­tir), da TV 247, apre­sen­ta­do por Gus­ta­vo Conde, ten­do, ao final, a par­tic­i­pação do jor­nal­ista Flo­restan Fer­nan­des Jr.

 

Zimmerwald em São Paulo: para onde vai a social-democracia?

Tarso Genro(*)

Entre 11 e 13 de agos­to em São Paulo ocor­reu mais uma reunião do  Pro­gra­ma Recon­stru­in­do o esta­do de bem-estar nas Améri­c­as, lança­do pelo PNUD\ONU em 1996 e hoje coor­de­na­do por Jorge Cas­tañe­da, Gas­pard Estra­da e Car­los Omi­na­mi. À época, sob a direção de Rober­to Mangabeira Unger, seus primeiros inte­grantes se reuni­ram “impul­sion­a­dos por uma intu­ição comum”: bus­car saí­das para a afir­mação democráti­ca do Con­ti­nente lati­no. Sua con­tinuidade, hoje, com a pre­sença de novas lid­er­anças democráti­cas das esquer­das jovens recen­te­mente surgi­das, foi adquirindo mais ampli­tude e, ao mes­mo tem­po, mais pre­cisão de propósi­tos nos novos encon­tros. O Pro­gra­ma começara chaman­do à dis­cussão líderes democráti­cos de esquer­da, da cen­tro esquer­da e mes­mo da cen­tro-dire­i­ta da Améri­ca Lati­na, que teri­am a capaci­dade de influ­en­ciar nos seus respec­tivos país­es os des­ti­nos das políti­cas de tran­sição das ditaduras dos anos 70, para assen­tar suas respec­ti­vas nações na estru­tu­ra lib­er­al-democráti­ca em recom­posição, então destruí­da pelos golpes mil­itares que asso­laram uma grande parte da Améri­ca Cen­tral e do Sul. 

 Par­tic­i­pante da primeira reunião que ocor­reu no Chile, acom­pan­hei várias edições do Pro­gra­ma, com Lula, José Dirceu, Mar­co Aurélio Gar­cia, Brizo­la, ao lado de emi­nentes econ­o­mis­tas, como Dante Caputo, quadros “de par­tido” do cam­po democráti­co, como Ricar­do Lagos, Michelle Bachelet, Vicente Fox, López Obrador, Fer­nan­do de La Rua e tan­tas out­ras per­son­al­i­dades, que tomaram cam­in­hos diver­sos, nas suas escol­has e definições políti­cas.  

  Esgo­ta­da a safra dos Pres­i­dentes eleitos na restau­ração democráti­ca, os debates se encam­in­haram para a bus­ca de saí­das con­sen­suais num quadro econômi­co des­o­lador, inter­na­mente na A.L., e exter­na­mente nos núcleos cen­trais do sis­tema-mun­do. Esta­va em cur­so um rear­ran­jo estru­tur­al que vin­ha mudan­do os padrões de acu­mu­lação, reestru­tu­ran­do em pro­fun­di­dade as for­mas de prestação de tra­bal­ho e serviços em todos os setores da econo­mia, com um pesa­do impacto das  novas tec­nolo­gias na vida comum de mil­hões de  pes­soas.  

 A divisão que ocor­reu den­tro do pro­je­to foi nat­ur­al, já que começaram a apare­cer, depois do venci­men­to dos regimes mil­itares, alter­na­ti­vas neolib­erais “sedu­toras”, que além de prom­e­ter  uma tran­sição “pro­te­gi­da” pelo cap­i­tal finan­ceiro, para os Esta­dos que se com­por­tassem bem para pagar os seus com­pro­mis­sos com as respec­ti­vas dívi­das públi­cas que tin­ham adquiri­do no perío­do das ditaduras. A hege­mo­nia dos pactos de dom­i­nação em alta, em torno do “úni­co cam­in­ho”, que pare­cia for­t­ale­ci­do dog­mati­ca­mente nas “class­es altas” absorveu uma boa parte da dire­i­ta democráti­ca que par­tic­i­pa­va dos debates, já que a esquer­da teve imen­sas difi­cul­dades para prover alter­na­ti­vas novas: venceu, numa parte dos primeiros debate­dores, o espíri­to do Con­sen­so de Wash­ing­ton, através da ilusão neolib­er­al.  

 Em alguns país­es se repe­ti­ram gov­er­nos reformis­tas tími­dos e no cam­po da esquer­da mais “real­ista”, por fal­ta de maio­r­ias estáveis para gov­ernar e pela incom­preen­são de que, dali para diante, as refor­mas seri­am difer­entes daque­las do Sécu­lo pas­sa­do, para darem con­ta do atra­so e do sub­de­sen­volvi­men­to. O reformis­mo democráti­co de cen­tro- esquer­da que gov­ernou diver­sos país­es, ain­da que ten­ha obti­do escas­sos resul­ta­dos soci­ais – sig­ni­fica­tivos evi­den­te­mente em com­para­ção aos gov­er­nos “lib­erais” ante­ri­ores – deixaram uma pro­va impor­tante de apreço à democ­ra­cia e respeito mín­i­mo às insti­tu­ições da Repúbli­ca.

Ago­ra é hora de instau­rar uma conexão de princí­pios entre as novas esquer­das que se orga­ni­zaram nos últi­mos 15 anos, prin­ci­pal­mente para que pos­samos fundir as vel­has e deci­si­vas deman­das soci­ais com as novas deman­das cul­tur­ais, de novos mod­os de vida, de com­bate sem tréguas ao racis­mo e a todas as for­mas de dis­crim­i­nação, repro­duzi­das de for­ma inces­sante pelo con­ser­vadoris­mo rea­cionário de tradição escrav­ista. Essa é uma neces­si­dade históri­ca de uma nova e forte unidade pop­u­lar e democráti­ca já colo­ca­da para este Sécu­lo  

  Vários dos par­tic­i­pantes daque­les encon­tros se trans­for­maram em Pres­i­dentes, por dis­tin­tos cam­in­hos políti­cos – no cam­po da democ­ra­cia lber­al — ou se tornaram Min­istros, Pres­i­dentes de Par­tidos e quadros de Esta­do, em várias funções de respon­s­abil­i­dade estatal. De lá para cá, todavia – nos dias de hoje – as questões ficaram ain­da mais com­plexas, colo­can­do-nos out­ras real­i­dades para serem desven­dadas, tais como o novo sis­tema de alianças para gov­ernar, com­patíveis para for­mar maio­r­ias políti­cas, de um lado, e – de out­ro – a sur­pre­sa do surg­i­men­to de uma “nova esquer­da”, jovem, gen­erosa e bril­hante – emb­o­ra frag­men­tária pelos seus pleitos iden­titários mal resolvi­dos, que apare­cem tan­to como desli­gadas das exper­iên­cias rev­olu­cionária ou reformis­tas-democráti­cas na Améri­ca, como tam­bém sem base pop­u­lar com a capaci­dade de resistên­cia análo­ga a dos vel­hos tem­pos. 

  O Pro­fes­sor Vicente Navar­ro, um dos grandes estu­diosos do per­cur­so social-democ­ra­ta e da evolução das dis­putas em torno do Esta­do e Bem-Estar mostrou, ao lon­go do seu per­cur­so int­elec­tu­al, que as alter­na­ti­vas dos Esta­dos Unidos na era Rea­gan – por exem­p­lo- não se con­fig­u­raram como uma dis­pu­ta entre “key­ne­sian­is­mo social” X “estraté­gias neolib­erais”, mas sim uma dis­pu­ta entre um “key­ne­sian­is­mo mil­i­tar” X “key­ne­sian­is­mo social” (base históri­ca da con­cepção social democ­ra­ta do sécu­lo pas­sa­do), ambas políti­cas fun­dadas na inter­venção do Esta­do na econo­mia. Mas as políti­cas de Rea­gan “tin­ham ido mais além do key­ne­siano clás­si­co”, pois as  suas políti­cas béli­cas de gen­darme­ria mundi­al for­t­ale­ce­r­am pesada­mente a inter­venção estatal, prin­ci­pal­mente na indús­tria mil­i­tar, proce­den­do uma forte inter­venção do Esta­do na econo­mia, afa­s­tan­do-se de um gov­er­no lib­er­al em sen­ti­do clás­si­co para faz­er um gov­er­no “inter­ven­cionista”, mod­ern­izan­do (pela mão dire­i­ta) o key­ne­sian­is­mo e aumen­tan­do as ten­sões das guer­ras impe­ri­ais. 

  Geoff Eley no seu clás­si­co “For­jan­do a Democ­ra­cia” mostra que antes de 1914 a base mil­i­tante da social-democ­ra­cia na Europa tin­ha aprox­i­mada­mente dois mil­hões de mil­i­tantes, sendo que somente na Ale­man­ha tin­ha um mil­hão de adep­tos, pre­dom­i­nan­te­mente entre os pobres, desem­pre­ga­dos, operários, estu­dantes e na int­elec­tu­al­i­dade. Com o iní­cio do falec­i­men­to da II Inter­na­cional, ini­ci­a­da na Con­fer­ên­cia de Zim­mer­wald em setem­bro de 1915 – em função das divergên­cias de  princí­pio sobre a ati­tude da socialdemoc­ra­cia sobre a Guer­ra Mundi­al Inter impe­ri­al­ista – a vitória da Rev­olução na Rús­sia em 1917 e  a trans­for­mação do Par­tido Operário Social-Democ­ra­ta Rus­so em Par­tido Comu­nista, a socialdemoc­ra­cia e os movi­men­tos comu­nistas ini­ci­am os seus cam­in­hos, sep­a­ra­dos na história. 

  Nos tem­pos pre­sentes ‑mar­ca­dos pelas der­ro­tas e suces­sos rel­a­tivos de ambas as exper­iên­cias- surge um novo desafio civ­i­liza­tório: num tem­po de blo­queio, tan­to da democ­ra­cia como de uma rev­olução, com a per­da da força moral e políti­ca da social democ­ra­cia diante do avanço neolib­er­al e do desas­tre da exper­iên­cia buro­cráti­ca soviéti­ca, jun­to com a emergên­cia dos novos polos de poder geopolíti­co do  mun­do e o avanço do fas­cis­mo.  

  Como fundir – num amp­lo movi­men­to em torno do dese­jo do bem-estar, da paz e da regen­er­ação da políti­ca como instru­men­to de luta pela igual­dade e pela dig­nidade humana – o Esta­do Social com liber­dades políti­cas, segu­rança con­ti­nen­tal com sobera­nia pop­u­lar, Repúbli­ca com liber­dades políti­cas irrevogáveis? A respos­ta é a tare­fa de “casa” que este Pro­je­to PNUD\ONU se asso­cia com out­ros pon­tos de apoio, públi­cos e pri­va­dos, que exis­tem em todo mun­do, que não dis­so­ci­am a democ­ra­cia do pro­gres­so social e que jamais aceitarão o fas­cis­mo e a guer­ra como solução para os prob­le­mas da Humanidade. 

  São utópi­cos, dirão alguns. Bem, poder­e­mos respon­der: ‘nem mais nem menos do que bus­car um paraí­so comu­nista ou uma social-democ­ra­cia per­fei­ta, que pre­tendia inau­gu­rar uma época de paz e sol­i­dariedade humana, basea­da prin­ci­pal­mente no “bom sen­so” nego­cial das elites políti­cas das class­es priv­i­le­giadas’. ”  

 (*) Tar­so Gen­ro, estadista, jurista e escritor,  foi Gov­er­nador do Rio Grande do Sul, Prefeito de Por­to Ale­gre, Min­istro da Justiça, Min­istro da Edu­cação e Min­istro das Relações Insti­tu­cionais do Brasil.