Muito se fala, atual­mente, em dig­nidade humana, mas nem sem­pre ela é respeita­da como deter­mi­na nos­sa leg­is­lação e espe­cial­mente quan­do se fala em tra­bal­hadores brasileiros, uma gama de pes­soas que equiv­o­cada­mente não estão no rol dos ben­efi­ciários da refor­ma tra­bal­hista no que tange à uti­liza­ção da arbi­tragem como meio de solução de con­fli­tos, mes­mo após seu desliga­men­to da empre­sa, o que efe­ti­va­mente o tira do rol de sub­or­di­na­dos da empre­sa.
Quan­do se pre­tende “cuidar” exces­si­va­mente do cidadão, aca­ba a leg­is­lação ofendendo‑o no mais pro­fun­do do seu ser, pois o tra­ta como “menos” do que o out­ro, e isso é veda­do pela própria Car­ta Magna em seu arti­go 5º quan­do garante que “todos são iguais per­ante a lei”, em seu arti­go 7º, XXIX, e em seu Preâm­bu­lo.
Mas, na con­tramão de toda essa pro­teção veio a refor­ma tra­bal­hista que garante aos empre­ga­dos que gan­hem mais de duas vezes o teto da seguri­dade social, a opor­tu­nidade de solu­cionar even­tu­al divergên­cia tra­bal­hista através da arbi­tragem, mas excluin­do os demais tra­bal­hadores.
Ora, se todos são iguais per­ante a lei, por que uns são trata­dos de for­ma difer­en­ci­a­da em relação a out­ros?
Mes­mo à luz do prin­ci­pio con­sti­tu­cional da igual­dade que na Con­sti­tu­ição Fed­er­al de 1988 encon­tra-se rep­re­sen­ta­do em vários arti­gos, mas especi­fi­ca­mente no arti­go 7º, inciso XXXII, que ver­sa sobre a igual­dade tra­bal­hista, e exata­mente nesse pon­to enten­do a incon­sti­tu­cional­i­dade da refor­ma tra­bal­hista no que tange ao uso da arbi­tragem como meio de solução de con­fli­tos somente à uma mino­ria de tra­bal­hadores, excluin­do jus­ta­mente os que mais pre­cisam da celeri­dade no momen­to da rescisão e ver­i­fi­cação de seus reais dire­itos.
O princí­pio da igual­dade apli­ca­do pela con­sti­tu­ição fed­er­al atua em dois níveis dis­tin­tos. Por um lado não só o leg­is­lador em si, mas tam­bém o próprio Poder Exec­u­ti­vo, por vários vieses são impe­di­dos de cri­ar trata­men­tos demasi­ada­mente difer­en­ci­a­dos a pes­soas que se encon­tram em situ­ação sim­i­lar. De out­ro turno, esta­b­elece a autori­dade públi­ca que há de se medir cer­tas diver­si­fi­cações quan­do ao aplicar leis e atos nor­ma­tivos de modo igual­itário, sem esta­b­elec­i­men­to, pro­pri­a­mente dito, de difer­en­ci­ações em razão de con­vicções filosó­fi­cas ou políti­cas, sexo, religião, raça e classe social. Seria à luz do entendi­men­to de Nel­son Nery Junior: “Dar trata­men­to isonômi­co às partes sig­nifi­ca tratar igual­mente os iguais e desigual­mente os desiguais, na exa­ta medi­da de suas desigual­dades”.
Con­tu­do, nos novos tem­pos e o sen­ti­do mais con­tem­porâ­neo do Dire­ito não supor­tam mais os trata­men­tos desiguais, espe­cial­mente frente a grande inte­gração de meios de comu­ni­cação e con­hec­i­men­to instan­tâ­neo de tudo o que acon­tece no mun­do, ou seja, temos o mun­do na pal­ma de nos­sas mãos e em tem­po real, e jus­ta­mente com a pos­si­bil­i­dade dessa gama de infor­mações ao alcance de todos e em qual­quer parte do mun­do, não mais podemos diz­er que o ser humano, em ger­al, seria viti­ma de descon­hec­i­men­to de seus próprios dire­itos tra­bal­his­tas ou con­sumeris­tas e diante dis­so, não há mais o que se falar em hipos­su­fi­ciên­cia dessa gama de pes­soas.
Assim como todos sabem seus dire­itos em relação à dis­crim­i­nação racial, com­por­ta­men­tal, reli­giosa, não é e nem pode­ria ser difer­ente rel­a­ti­vo ao con­hec­i­men­to de seus dire­itos tra­bal­his­tas!
Não é crív­el que um aju­dante ger­al, um porteiro ou uma empre­ga­da domés­ti­ca não saibam quais dire­itos lhes são dev­i­dos por essa relação de tra­bal­ho.
Claro, que enquan­to sub­or­di­na­dos aos seus “patrões” ess­es dire­itos podem até ser suprim­i­dos den­tro da letra da lei.
A ideia de um dire­ito do tra­bal­ho decorre da época da sociedade indus­tri­al onde o tra­bal­hador vin­ha de um sis­tema de ”vas­sa­los” para um onde lhe assis­ti­am dire­itos, e com essa pro­teção do dire­ito do tra­bal­ho esse tra­bal­hador tin­ha a seu favor um lim­i­ta­dor para uma con­tin­gente explo­ração. Era naque­le momen­to, sem dúvi­da a parte fra­ca da relação, aque­le que con­seguiu dire­itos “no papel”, mas não na “prat­i­ca” e ness­es casos a tutela fed­er­al se fazia extrema­mente necessária para que os dire­itos fos­se apli­ca­dos efe­ti­va­mente.
O empre­ga­do do Sécu­lo XIX não é o mes­mo do Sécu­lo XXI, prin­ci­pal­mente pelo fato desse segun­do ser muito mais conec­ta­do entre seus pares pela própria inter­net e demais meios de comu­ni­cação e assim, antes de qual­quer noti­cia veic­u­la­da pelos noti­ciários a mes­ma já movi­men­tou a gama de tra­bal­hadores inter­es­sa­dos no assun­to.
Se não fos­se somente esse viés do novo tra­bal­hador, temos que o ser humano do sécu­lo XXI é muito mais agres­si­vo na bus­ca de seus dire­itos em ger­al do que aque­le que nor­te­ou as primeiras regras do dire­ito do tra­bal­ho no sécu­lo XIX.
Con­tu­do, inde­pen­dente desse novo tra­bal­hador, bem mais “ante­na­do” com relação aos seus dire­itos, veio a refor­ma tra­bal­hista através da Lei 13.467/17 que traz ao mun­do jurídi­co um tra­bal­hador mais hipos­su­fi­ciente ain­da!
Mais hipos­su­fi­ciente do que já era trata­do, pois como se sep­a­rassem o “joio do tri­go” escol­her­am somente poucos priv­i­le­gia­dos para cuidarem soz­in­hos de seus dire­itos, poden­do bus­car no sis­tema mul­ti­por­tas que vier­am com as novas polit­i­cas públi­cas, a celeri­dade tão esper­a­da nas questões tra­bal­his­tas, fazen­do nascer o “empre­ga­do mais hipos­su­fi­ciente”.
Mais hipos­su­fi­ciente do que já, pois, mes­mo encer­ra­da a relação de tra­bal­ho e, por­tan­to, o vin­cu­lo que o sub­or­di­na­va ao “patrão”, ain­da sim, esse empre­ga­do fica com os “gril­hões ide­ológi­cos” que o pren­dem ao anti­go patrão até a por ordem da justiça o mes­mo pode livrar-se dele, coisa que é inad­mis­sív­el nes­ta altura da evolução humana e do mun­do.
Assim, ain­da por out­ro recorte, temos que a classe com maior poder econômi­co, ain­da é a que man­da nesse país.
Assim, nos ter­mos do arti­go 507‑A da CLT, os tra­bal­hadores “hiper­su­fi­cientes”, des­de 11 de novem­bro pas­sa­do, podem levar a solução de even­tu­ais con­fli­tos com seus empre­gadores a uma Câmara Arbi­tral, des­de que pactu­a­da cláusu­la com­pro­mis­sória, con­forme o tex­to legal: “Nos con­tratos indi­vid­u­ais de tra­bal­ho cuja remu­ner­ação seja supe­ri­or a duas vezes o lim­ite máx­i­mo esta­b­ele­ci­do para os bene­fí­cios do Regime Ger­al de Pre­v­idên­cia Social, poderá ser pactu­a­da cláusu­la com­pro­mis­sória de arbi­tragem, des­de que por ini­cia­ti­va do empre­ga­do ou medi­ante a sua con­cordân­cia expres­sa, nos ter­mos pre­vis­tos na  Lei no 9.307, de 23 de setem­bro de 1996.”
A lei, em momen­to algum, vin­cu­la val­or a nív­el supe­ri­or, que esse sim, pode­ria “em tese” ser o difer­en­cial para essa pos­si­bil­i­dade.
Diante dessas con­statações só podemos enx­er­gar a incon­sti­tu­cional­i­dade da dis­crim­i­nação apon­ta­da, difer­en­cian­do tra­bal­hadores, que são uma cat­e­go­ria úni­ca e, por­tan­to, assim deve ter dire­itos e deveres exata­mente iguais.
Mes­mo que a refor­ma pre­visse o binômio teto salar­i­al x esco­lar­i­dade, ain­da assim, seria uma dis­crim­i­nação e tal pos­tu­ra já não cabe em tem­pos mod­er­nos.
Vamos pegar a tit­u­lo de exem­p­lo, a cat­e­go­ria de empre­ga­dos mais sofri­da e explo­ra­da na área urbana das cidades – a empre­ga­da domés­ti­ca.
Por ocasião da PEC das Domés­ti­cas é indis­cutív­el que as referi­das obreiras não só sabi­am dos seus dire­itos, mas como tam­bém, os exi­gi­ram com grande poder per­sua­si­vo, chegan­do a intim­i­dar sobre­maneira as “patroas”, rompen­do, assim, e de for­ma indis­cutív­el sua “sub­or­di­nação feu­dal”.
Assim, não há o que se falar em hipos­su­fi­ciên­cia para qual­quer tra­bal­hador, des­de que já este­ja desli­ga­do desse vín­cu­lo tra­bal­hista.
Com certeza a arbi­tragem ou mes­mo a medi­ação não se prestam a rescindir con­tratos de tra­bal­ho, mes­mo porque com a refor­ma tal medi­da ocorre dire­ta­mente entre empre­ga­do e empre­sa, com lib­er­ação, inclu­sive, do FGTS e do Seguro Desem­prego.
Dessa for­ma, restaria a medi­ação e arbi­tragem, tão somente para resolver even­tu­ais pendên­cias e dire­itos que pode­ri­am ou não já ter sido pagos, mas que por dire­ito, as partes podem rev­er para encer­rar defin­i­ti­va­mente a relação havi­da sem nen­hu­ma mácu­la.
De out­ro turno, se pegar­mos o empre­ga­do que pela refor­ma tra­bal­hista pode­ria se enquadrar na faixa salar­i­al apta a con­tratar arbi­tragem, este poderá ser con­sid­er­a­do tão hipos­su­fi­ciente quan­to qual­quer out­ro enquan­to estiv­er sob o “jugo” do empre­gador, ou seja, se pedir a instau­ração de pro­ced­i­men­to arbi­tral par dis­cu­tir seja lá o que for, corre o risco de ser demi­ti­do.
Por qual­quer que seja o recorte em relação à refor­ma tra­bal­hista no sen­ti­do de solução por via arbi­tral, estare­mos ven­do a exclusão de pelo menos 80% da pop­u­lação tra­bal­hado­ra desse país, e assim, mais uma vez, as mod­ernidades vem tão somente à classe de maior poder econômi­co, e mes­mo esse empre­ga­do que se enquadra no per­fil do ben­efi­ciário da refor­ma, ain­da assim nun­ca estará em pé de igual­dade com a empre­sa con­tratante.
Por mais que seja ele­va­do o salário ou a esco­lar­i­dade o empre­ga­do enquan­to sub­or­di­na­do é hipos­su­fi­ciente.
Man­i­festo que se tra­ta de uma “hiper­su­fi­ciên­cia” ilusória, cri­a­da pela Nova CLT com a final­i­dade úni­ca de ced­er ao cap­i­tal ain­da mais autono­mia para esta­b­ele­cer acor­dos lab­o­rais cada vez mais favoráveis aos seus inter­ess­es.
Os con­tratos de tra­bal­ho são, gen­uina­mente, con­tratos de adesão, com cláusu­las total­mente pré-esta­b­ele­ci­das e preparadas para agradar a políti­ca da empre­sa e, logo, com os inter­ess­es do empresário. E isso não se mod­i­fi­ca quan­do o con­trata­do é grad­u­a­do e rece­berá remu­ner­ação supe­ri­or a duas vezes o teto dos bene­fí­cios do INSS.
Então, da maneira que se encon­tra temos dois vieses a con­sid­er­ar;
A intenção de impedir o aces­so à justiça de quem tem um gan­ho supe­ri­or ao teto do INSS como pre­vê a refor­ma;
Tirar da grande maio­r­ia dos tra­bal­hadores o dire­ito de bus­car de for­ma célere even­tu­ais dire­itos, sem o medo de ser penal­iza­do por bus­ca-los.
Nesse segun­do viés, con­sid­er­amos que os empre­ga­dos que devem se socor­rer da Justiça do Tra­bal­ho para bus­car dire­itos, temem não con­seguirem seus inten­tos e à luz da Justiça do Tra­bal­ho serão ao final con­de­na­dos às cus­tas proces­suais e hon­orários de sucum­bên­cia, e isso sim, cer­ceia todo o dire­ito !
Enfim, tudo con­tin­ua favore­cen­do a poucos, pois per­mi­tir só uma gama de tra­bal­hadores de se uti­lizarem do sis­tema mul­ti por­tas pro­pos­to pela Res­olução 124/2010 que emb­o­ra este­ja inti­ma­mente lig­a­da à Justiça Comum, mas prop­i­cia fer­ra­men­tas próprias para levar às partes a uma con­ver­sa fran­ca com grandes pos­si­bil­i­dades de suces­so nas deman­das.
Incon­testáv­el que o leg­is­lador obs­ta o dire­ito de aces­so à justiça comum a quem tem gan­ho supe­ri­or a duas vezes o maior bene­fí­cio da seguri­dade social e obs­ta o dire­ito de aces­so a arbi­tragem ao tra­bal­hador que gan­ha menos do que o pre­vis­to na refor­ma.
Assim, para que se busque a igual­dade tão pre­ga­da na CF/88, é impe­rioso que seja dado dire­ito de escol­ha do meio de solução de con­fli­tos a toda gama de tra­bal­hadores brasileiros.
Cer­to é que exis­tem cor­rentes que enten­dem que após a rescisão o ex-empre­ga­do estaria “livre” para se socor­rer de qual­quer meio de solução de con­fli­tos, inclu­sive a arbi­tragem, mas não é isso que diz o arti­go 507‑A da CLT.
Então, fazen­do a exegese do tex­to legal, percebe-se facil­mente que nos casos não pre­vis­tos no referi­do arti­go não caberá arbi­tragem por nen­hu­ma óti­ca, pois à luz da Lei 9307/1996, não se per­mite arbi­tragem nas relações indi­vid­u­ais de tra­bal­ho.
Por­tan­to, hou­ve, sem dúvi­da, a afronta à dig­nidade humana pela exclusão da grande maio­r­ia dos tra­bal­hadores brasileiros em se socor­rer da arbi­tragem mes­mo após a rescisão con­trat­u­al, onde não mais existe nen­hum tipo de sub­or­di­nação.

Mar­cia Raich­er foi pro­fes­so­ra tit­u­lar nas dis­ci­plinas Dire­ito Empre­sar­i­al, Dire­ito Trib­utário e Medi­ação e Arbi­tragem entre out­ras, em várias Uni­ver­si­dades; foi Con­sel­heira Rela­to­ra Pres­i­dente da 1ª Câmara de Jul­ga­men­tos do V Tri­bunal de Éti­ca e Dis­ci­plina da OAB/SP, e Juíza Instru­to­ra no mes­mo Tri­bunal até 2013; Juíza Instru­to­ra no XXIII TED; Pres­i­dente Exec­u­ti­va da Câmara Arbi­tral Lati­no Amer­i­cana e Pres­i­dente do Insti­tu­to CALA, sendo Árbi­tra e Dire­to­ra pedagóg­i­ca, palestran­do em diver­sos órgãos, inclu­sive no TRT2; Medi­ado­ra Judi­cial no CEJUSC-Barueri e CEJUSC-Asso­ci­ação Com­er­cial de São Paulo (PACE).