Em impor­tante con­tribuição para o debate acadêmi­co e social, Miri­an Gomes,  Advo­ga­da, Mestre em Dire­ito pela Pon­tif­í­cia Uni­ver­si­dade Católi­ca de São Paulo e Doutoran­da em Dire­ito pela Uni­ver­si­dade Pres­bi­te­ri­ana Macken­zie, auto­ra do livro Dire­ito à Imagem nas Redes Soci­ais (Belo Hor­i­zonte: Juruá, 2019), anal­isa a relação entre amor, vin­gança e justiça, a par­tir de provo­cação niet­zschi­ana

Escrito orig­i­nal­mente para a Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, o estu­do merece a leitu­ra pon­der­a­da e a reflexão sobre seus des­do­bra­men­tos nos âmbitos da dog­máti­ca e da prag­máti­ca do dire­ito.

 

Amor, vingança e justiça

Miri­an Gomes

 

Friedrich Niet­zsche na obra Humano, Demasi­a­do Humano, lança a seguinte per­gun­ta: Por que exal­ta o amor em detri­men­to da justiça e se diz dele coisas mais lin­das, como se ele fos­se de uma essên­cia supe­ri­or a ela?[1]

O ques­tion­a­men­to de Niet­zsche per­corre uma biografia sec­u­lar. De tragé­dias a romances, cer­ta­mente o amor sem­pre foi um sen­ti­men­to capaz de jus­ti­ficar atos extremos, ampara­do, muitas vezes, por uma justiça infla­ma­da pelos cos­tumes da época, rel­e­gan­do à víti­ma à cul­pa por seu próprio fla­ge­lo.

Se amor e justiça estão em pata­mares dis­tin­tos, o degrau da vin­gança se encar­regou de uni-los. A justiça de Tal­ião fei­ta pelas mãos do homem des­on­ra­do, despi­do de seu patri­ar­ca­do, expos­to à humil­hação públi­ca. Uma justiça pouco racional, muito emo­ti­va, instin­ti­va, sus­ten­ta­da num dese­jo de vin­gança.

 Nes­sa obso­le­ta ordem social, por inúmeras vezes, o amor foi lev­a­do ao ban­co dos réus, seja na figu­ra do réu ou do acu­sa­do. Euclides da Cun­ha e seu dese­jo de vin­gança con­tra Dil­er­man­do ficou grava­do nos anais da justiça e no incon­sciente pop­u­lar. Se para uns era víti­ma e nada mais fez do que defend­er seu amor e hon­ra, para out­ros, não pas­sa­va de um homem egoís­ta bus­can­do na vin­gança a alter­na­ti­va per­fei­ta para apaziguar o ego.

A defe­sa de Dil­er­man­do soube explo­rar muito bem a juven­tude do acu­sa­do e sua paixão pela mul­her casa­da – como algo que qual­quer homem estaria sujeito a sen­tir – deno­tan­do, enquan­to homem, ser tão víti­ma quan­to o mari­do:

Quem não teve dess­es peca­dos aos 17 anos? Em segui­da, sus­ten­tou a dout­ri­na que admite o adultério, des­de que o seu respon­sáv­el ten­ha pou­ca idade, clas­si­f­i­can­do de con­venções soci­ais as man­i­fes­tações hipócritas dos que não têm cor­agem de con­fes­sar suas fraque­zas.

Demor­ou-se em diva­gações acer­ca da difer­ença da respon­s­abil­i­dade do ado­les­cente e do adul­to, citan­do vários autores, procu­ran­do demon­strar que não se pode falar em sin­ceri­dade dos atos de um ado­les­cente, porque, o mes­mo nun­ca é imoral nem moral, mas sim­ples­mente amoral.[2]

O triste enre­do da obra, nos ensi­na que quan­do a hon­ra de um mari­do traí­do esta­va no cerne da questão, a justiça de Themis não se mostra­va efi­ciente. Cabia à sua fil­ha Diké a difí­cil tare­fa de medi­ar – de maneira pouco equân­ime – a bal­ança da justiça.

Sem ven­das, de olhos bem aber­tos e com espa­da na mão, a justiça vis­cer­al de Diké agradou ao pun­gente clam­or públi­co, resul­tan­do numa justiça de resul­ta­do san­gren­to, par­cial e ade­qua­da aos cos­tumes de uma sociedade benev­o­lente ao machis­mo, na qual a vida de uma mul­her equipara-se em val­or, à hon­ra de um homem.

Os tem­pos mudaram, o sangue não deixou de escor­rer, mas a justiça vinga­ti­va gan­hou novas for­mas de reper­cussão, emoldu­radas por um tom de ingenuidade, aca­so ou desca­so, uti­lizan­do-se das redes soci­ais para cri­ar cenários vex­atórios, humil­hantes e pitorescos, muitas vezes sob o man­to do anon­i­ma­to.

A vul­ner­a­bil­i­dade do ser humano frente às novas tec­nolo­gias é moti­vo de pre­ocu­pação para os oper­adores do Dire­ito, que bus­cam preser­var os dire­itos da per­son­al­i­dade con­tra as con­stantes ameaças de lesão. José Oliveira Ascen­são rat­i­fi­ca este entendi­men­to, afir­man­do que “a sociedade que nos rodeia é uma sociedade tec­no­logi­ca­mente avança­da. O homem, no seio dela, é uma móna­da alta­mente vul­neráv­el: as pos­si­bil­i­dades de intro­mis­são na vida de cada pes­soa são hoje inúmeras e ameaçado­ras”.[3]

No caso da imagem como dire­ito da per­son­al­i­dade, Clau­dio Luiz Bueno de Godoy expli­ca que é “a rep­re­sen­tação iden­ti­fica­ti­va da pes­soa ou este sinal de dis­tinção con­sub­stan­ci­a­do pela imagem que lhe dá a condição de atrib­u­to dire­to da per­son­al­i­dade, ense­jan­do dire­ito, que deve ser con­sid­er­a­do como um dos dire­itos da per­son­al­i­dade”.  Por­tan­to, é exata­mente essa rep­re­sen­tação iden­ti­fica­ti­va que dá à imagem a condição de dire­ito da per­son­al­i­dade. [4]

  Segun­do o min­istro Luis Felipe Salomão, da Quar­ta Tur­ma do Supe­ri­or Tri­bunal de Justiça (STJ), “o dire­ito à imagem assum­iu posição de destaque no âmbito dos dire­itos da per­son­al­i­dade dev­i­do ao extra­ordinário pro­gres­so tec­nológi­co, sobre­tu­do no âmbito das comu­ni­cações, tan­to no desen­volvi­men­to da facil­i­dade de cap­tação da imagem, quan­to na de sua difusão”.[5]

Neste cenário tec­nológi­co onde a imagem gan­ha posição de destaque e pro­tag­on­i­za uma real­i­dade vir­tu­al de grande valia, a vin­gança encon­tra ter­ritório fér­til e tem sido vas­ta­mente uti­liza­da por corações ofen­di­dos.

Como assever­ou Niet­zsche ao tratar da vin­gança: “os home­ns gros­seiros que se sen­tem ofen­di­dos cos­tu­mam colo­car tão alto quan­to pos­sív­el o grau da ofen­sa e con­tar sua causa em ter­mos muito exager­a­dos, nada mais que para ter o dire­ito de sabore­ar o sen­ti­men­to de ódio e de vin­gança uma vez este des­per­ta­do.[6]

Em que pese o dis­tan­ci­a­men­to cronológi­co entre a citação aci­ma e o surg­i­men­to das redes soci­ais, na maio­r­ia dos casos de vin­gança, os home­ns ain­da ocu­pam posição de destaque como autores. Se antes sua dor jus­ti­fi­ca­va a arma em pun­ho, ago­ra são os dedos velozes na tela de um apar­el­ho celu­lar ou no tecla­do do com­puta­dor que dis­param con­tra a imagem da víti­ma, dilaceran­do sua rep­utação.

Enfim, a tec­nolo­gia nos trouxe uma for­ma de “faz­er justiça com as próprias mãos” sem aparente­mente sujá-las,afinal, a hon­ra antes paga com a vida, ago­ra é quita­da com a rep­utação alheia.

Na veloci­dade com que as infor­mações tran­si­tam pela inter­net, a reti­ra­da de uma imagem des­on­rosa, nem sem­pre encer­ra o dano. Min­u­tos, horas, dias, meses, são indifer­entes na rede. Uma postagem pode pul­verizar além das fron­teiras geográ­fi­cas em questão de segun­dos e atin­gir um número incal­culáv­el de pes­soas. Sem o glam­our das tragé­dias shake­spear­i­anas, com per­son­agens que bra­davam sua dor aos qua­tro can­tos, em ver­sos e prosa, a vin­gança nas redes soci­ais não leva sequer leg­en­da, se instau­ra com a imagem da pes­soa ama­da em situ­ações ínti­mas, cap­tadas sob a égide da con­fi­ança e do amor.

Fin­do o amor, parece-nos que o con­tra­to de con­fi­den­cial­i­dade e con­fi­ança é sub­ju­ga­do frente à dor do aban­don­a­do. Não existe moral que resista ao dese­jo de vin­gança. Ao con­trário, é jus­ta­mente a imoral­i­dade do ato que men­su­ra a reparação. Quan­to mais lesi­vo o dano, mais repara­da estará a dor. A este even­to, a dout­ri­na deu o nome de “pornografia de vin­gança” que con­siste na con­du­ta de divul­gar, sem con­sen­ti­men­to da out­ra parte, fotos, vídeos, mon­ta­gens, que con­tenham con­teú­do sex­ual­mente ínti­mo. O intu­ito da con­du­ta, car­ac­terís­ti­co do próprio nome, é a vin­gança, seja pelo fim de um rela­ciona­men­to amoroso, seja por qual­quer out­ro moti­vo que torne a práti­ca car­ac­terís­ti­ca de uma revanche.[7]

A vin­gança que durante sécu­los lev­ou mul­heres à morte físi­ca, com o adven­to das novas tec­nolo­gias, têm lev­a­do suas víti­mas à morte social, com a exclusão do con­vívio social, forçadas, pela ver­gonha de ver sua vida ínti­ma lev­a­da ao con­hec­i­men­to públi­co, a se escon­der da sociedade. Por mais antagôni­ca que a frase pos­sa pare­cer, neste caso, a justiça de um indi­ví­duo se real­iza através da vin­gança.

Isso porque, o ofen­di­do em sua dor, bus­ca com­pen­sá-la reti­ran­do da esfera do ofen­sor um bem que ele acred­i­ta ser de tão valia quan­to o que lhe foi arran­ca­do.

Esse sen­ti­men­to de vin­gança que se trav­es­te de justiça, como já dis­se­mos aci­ma, está enraiza­do em nos­sa sociedade há tem­pos e se man­tém atre­la­do ao dese­jo de cas­ti­go e de reparação da dor. E não foi deste dese­jo que nasceu a justiça? Não seria a vin­gança, a justiça em sua for­ma mais vis­cer­al, instin­ti­va, antes desprovi­da de moral?

Diante de tan­tos ques­tion­a­men­tos, parece-nos que elim­i­nar a vin­gança de nos­sa sociedade é tare­fa impos­sív­el, pois encon­tra-se inerte no gene do ser humano e, pode ser des­per­ta através de sen­ti­men­tos de dor, tris­teza ou fúria. Neste momen­to, toda a moral lap­i­da­da é esque­ci­da, e ele retoma à sua origem ani­malesca, ter­reno fér­til para além das telas, onde mil­hares de espec­ta­dores aguardam ansiosos pela exposição das maze­las humanas.”

_______________________________________________________________________________________

NOTAS

[1] Niet­zsche, Friedrich, Humano Demasi­a­do Humano, São Paulo, Lafonte,2019, p. 71

[2] http://www.oabsp.org.br/sobre-oabsp/grandes-causas/as-mortes-de-euclides-da-cunha-e-seu-filho

[3] ASCENSÃO, José de Oliveira. A dig­nidade da pes­soa e o fun­da­men­to dos dire­itos humanos. Revista da Fac­ul­dade de Dire­ito da Uni­ver­si­dade de São Paulo, São Paulo, v. 103, p. 284. jan./dez. 2008.

[4] GODOY, Cláu­dio Luiz Bueno de. A liber­dade de impren­sa e os dire­itos da per­son­al­i­dade. São Paulo: Atlas, 2001. p. 38.

[5] Pro­gres­so tec­nológi­co amplia as ações sobre vio­lação ao dire­ito de imagem. 19 ago. 2016. Disponív­el em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Progresso-tecnol%C3%B3gico-amplia-as‑a%C3%A7%C3%B5es-sobre-viola%C3%A7%C3%A3o-ao-direito-de-imagem>. Aces­so em: 14 abr. 2017.

[6] Niet­zsche, op. cit. Pág. 69

[7] A con­du­ta pas­sou a ser con­sid­er­a­da como crime como adven­to da Lei nº 13.718, que entrou em vig­or em 24 de setem­bro de 2018, e inseriu novos crimes no tex­to do Códi­go Penal. Den­tre eles, foi cri­a­da a figu­ra do crime de divul­gação de cena de estupro ou de cena de sexo ou pornografia. O arti­go 218‑C pre­vê como con­du­tas crim­i­nosas atos de ofer­e­cer, tro­car, disponi­bi­lizar, trans­mi­tir, vender ou expor à ven­da, dis­tribuir, pub­licar ou divul­gar, por qual­quer meio, fotos, vídeo ou mate­r­i­al com con­teú­do rela­ciona­do à prat­i­ca do crime de estupro, ou com cenas de sexo, nudez ou pornografia, que não ten­ham con­sen­ti­men­to da víti­ma. Fonte: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/pornografia-de-vinganca aces­so em 29/06/2020