Em mais uma impor­tante reportagem, o jor­nal­ista Jamil Chade, espe­cial­ista na análise das relações inter­na­cionais e de sua conexão com os dire­itos humanos, demon­stra as difi­cul­dades na con­strução de uma políti­ca inter­na­cional de dire­itos humanos, diante das con­tradições na visão de difer­entes setores de gov­er­no a propósi­to de ação em cur­so na Corte Inter­amer­i­cana de Dire­itos Humanos, a propósi­to da vio­lação de povos e ter­ritórios quilom­bo­las em Alcân­tara, no Esta­do do Maran­hão.

 

 

Leia o orig­i­nal da reportagem, na Folha/UOL, e a repro­dução do tex­to a seguir:

Num reflexo da difer­ença de visões entre as pas­tas da Defe­sa, da Advo­ca­cia-Ger­al da União, de Dire­itos Humanos e da Igual­dade Racial, o posi­ciona­men­to do gov­er­no brasileiro diante da Corte Inter­amer­i­cana de Dire­itos Humanos rev­ela con­tradições na cúpu­la do poder. O Brasil está sendo jul­ga­do pela vio­lação de dire­itos humanos de 152 comu­nidades remanes­centes de quilom­bos, em Alcân­tara, no Maran­hão, no con­tex­to da insta­lação do Cen­tro de Lança­men­to de Alcân­tara, na déca­da de 1980.

Mas, num gesto inédi­to, o Esta­do brasileiro usou a audiên­cia da Corte real­iza­da na sem­ana pas­sa­da e recon­heceu sua respon­s­abil­i­dade diante das comu­nidades quilom­bo­las de Alcân­tara que tiver­am seus dire­itos humanos vio­la­dos. Um pedi­do for­mal de des­cul­pas foi apre­sen­ta­do durante as audiên­cias, ato aplau­di­do por enti­dades da sociedade civ­il, defen­sores de dire­itos humanos e sur­preen­deu até mes­mo a Corte.

A con­strução desse pedi­do de des­cul­pas, porém, foi per­me­a­da por divergên­cias entre difer­entes áreas do gov­er­no de Luiz Iná­cio Lula da Sil­va. A pro­pos­ta de recon­hec­i­men­to da respon­s­abil­i­dade indi­ca a forte influên­cia dos min­istérios que lidam com dire­itos humanos e igual­dade racial na artic­u­lação da posição. Para muitos den­tro do gov­er­no e mes­mo no Ita­ma­raty, existe uma chance ele­va­da de que o Esta­do brasileiro seja con­de­na­do pela Corte.

O pedi­do de des­cul­pas, por­tan­to, sig­nifi­caria tan­to um recon­hec­i­men­to da existên­cia da vio­lação quan­to uma mudança de pos­tu­ra com o obje­ti­vo de dar pas­sos con­cre­tos para trans­for­mar a ação do Esta­do diante das pop­u­lações mais vul­neráveis.

Quan­do à ideia do pedi­do de des­cul­pas, o Min­istério da Defe­sa avaliou o tema como del­i­ca­do, pois toca no inter­esse nacional de for­t­ale­cer o pro­gra­ma espa­cial e ain­da os planos de expan­são do Cen­tro de Lança­men­to de Alcân­tara. O dis­cur­so de que o Brasil defende a reparação às comu­nidades e recon­hece as vio­lações, por­tan­to, não aten­de­ri­am aos inter­ess­es dos mil­itares. Com uma pos­tu­ra tradi­cional­mente mais con­ser­vado­ra, a AGU tam­bém resis­tiu à ideia.

Do lado dos Min­istérios dos Dire­itos Humanos e da Igual­dade Racial, o entendi­men­to cam­in­ha para uma pos­tu­ra mais respon­si­va aos dire­itos humanos per­ante a Corte. Uma dis­cussão, assim, que teria sido fru­to de meses para o con­venci­men­to dos demais seg­men­tos do Esta­do. E o debate chegou até a Casa Civ­il, onde foi arbi­tra­do em prol de um recon­hec­i­men­to par­cial de respon­s­abil­i­dade.

Ape­sar da nego­ci­ação que envolveu a AGU e o Palá­cio do Planal­to, o gov­er­no não con­seguiu escon­der as con­tradições. Durante a audiên­cia, ficou claro que exis­tia uma dis­pu­ta de nar­ra­ti­vas den­tro do próprio Esta­do brasileiro. Se de um lado o país pediu des­cul­pas, aceitou uma respon­s­abil­i­dade par­cial e até anun­ciou algu­mas medi­das, de out­ro lado os advo­ga­dos do Esta­do ten­taram excluir a com­petên­cia da Corte Inter­amer­i­cana.

A mudança rad­i­cal do pedi­do de des­cul­pas foi, para a sur­pre­sa dos juízes, segui­da por argu­men­tos da existên­cia de exceções. A meta era a de evi­tar o jul­ga­men­to pelo méri­to. Em out­ras palavras: o Brasil recon­hecia as vio­lações e, ao mes­mo tem­po, ten­ta­va impedir que o tri­bunal jul­gasse seus atos. Para isso, dois argu­men­tos foram usa­dos: o primeiro era de que o Brasil aderiu à Corte Inter­amer­i­cana ape­nas depois das obras do Cen­tro de Lança­men­tos. Ou seja, um debate sobre a incidên­cia tem­po­ral da com­petên­cia da Corte. O segun­do argu­men­to era de que não se pode­ria aplicar a con­venção da OIT que lida com os dire­itos das comu­nidades, já que na época da con­strução do CLA, tal mecan­is­mo ain­da não esta­va em vig­or.

A inquir­ição das teste­munhas pelo Esta­do em tom de ques­tion­a­men­to dos dire­itos em dis­cussão, não indi­ca­va que have­ria um pedi­do de retratação na sus­ten­tação oral. A insistên­cia em tais argu­men­tos indi­ca o prevalec­i­men­to de posições mais con­ser­vado­ras do gov­er­no, defen­di­das pela Defe­sa e AGU. Os juízes insi­s­ti­ram em apon­tar para a inco­erên­cia entre o pedi­do de des­cul­pas e a ten­ta­ti­va do esta­do de impedir que o tri­bunal tivesse o poder para jul­gá-lo.

Na Defe­sa, a expec­ta­ti­va é de que o Brasil ain­da pode sair vence­dor no jul­ga­men­to, algo ques­tion­a­do por diplo­matas e espe­cial­is­tas em dire­itos humanos. A ala mil­i­tar, porém, ain­da acred­i­ta que pode ter mais espaço para influ­en­ciar a posição do esta­do nas próx­i­mas eta­pas do proces­so. Enquan­to isso, mem­bros da sociedade civ­il que acom­pan­ham o proces­so con­fir­mam que o caso aca­ba sendo rev­e­lador das pro­fun­das difer­enças que exis­tem entre difer­entes alas do esta­do brasileiro sobre como lidar com as vio­lações de dire­itos humanos e sobera­nia nacional.