Em mais um impor­tante arti­go, pub­li­ca­do orig­i­nal­mente no Espaço Aber­to do jor­nal O Esta­do de S. Paulo, Miguel Reale Jr. anal­isa o vex­ame jurídi­co e éti­co da rep­re­sen­tação, lev­a­da pelo Par­tido Lib­er­al ao Tri­bunal Supe­ri­or Eleitoral, rel­a­ti­va à pre­ten­sa audi­to­ria das urnas eletrôni­cas.

O TSE impôs mul­ta por lit­igân­cia de má-fé ao Par­tido de Jair Bol­sonaro e Walde­mar da Cos­ta Neto.

Leia o tex­to, a seguir.

                                           

AS DERROTAS DO DERROTADO

Miguel Reale Jr.
(Advo­ga­do, Pro­fes­sor Tit­u­lar Sênior da Uni­ver­si­dade de São Paulo, Acadêmi­co Eméri­to da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito)

“A segu­rança das urnas foi ates­ta­da pelo TCU (Tri­bunal de Con­tas da União), pela OAB (Ordem dos Advo­ga­dos do Brasil) e pelas próprias Forças Armadas, que não con­stataram nen­hum indí­cio de fraude. Três mis­sões inter­na­cionais de obser­vação eleitoral tam­bém garan­ti­ram a fidedig­nidade do resul­ta­do.

Procu­ran­do pelo em ovo, o Par­tido Lib­er­al (PL) de Walde­mar Cos­ta Neto, insta­do por Bol­sonaro, con­tra­tou audi­to­ria que sug­eriu anu­lar não a eleição, mas ape­nas parte sub­stan­cial das urnas, dan­do a vitória ao ansioso der­ro­ta­do. Como pre­tex­to, usou a con­statação de as urnas ante­ri­ores a 2.020, cer­ca de 279 mil, não ger­arem arquiv­os de reg­istro com o número do respec­ti­vo códi­go de iden­ti­fi­cação, con­cluin­do, então, não haver pos­si­bil­i­dade de ras­trea­men­to do resul­ta­do das mes­mas.

Essa con­clusão é sabida­mente inverídi­ca, pois como assi­nalou a presidên­cia do TSE, todas as urnas eletrônicas, de todos os mod­e­los, pos­suem reg­istra­do em seu hard­ware um “número inter­no”, também chama­do de “código de identificação da urna” ou “ID Urna”. Esse iden­ti­fi­cador é único para cada equipa­men­to. A cada eleição, a urna é des­ti­na­da a um municí­pio, zona, seção, receben­do um códi­go de car­ga ger­a­do em con­sonân­cia com o número de iden­ti­fi­cação, sendo este códi­go de car­ga o ele­men­to que iden­ti­fi­ca esta urna no proces­so eleitoral e per­mite ras­tre­abil­i­dade dos resul­ta­dos como pro­duzi­dos pelo equipa­men­to.

Há ain­da out­ro ele­men­to de ras­tre­abil­i­dade dos arquiv­os pro­duzi­dos pelas urnas con­sis­tente na assi­natu­ra dig­i­tal. Os resul­ta­dos, com chaves pri­v­a­ti­vas de cada urna uti­liza­da nas eleições de 2022, são assi­na­dos dig­i­tal­mente. Essas assi­nat­uras são acom­pan­hadas dos cer­ti­fi­ca­dos dig­i­tais únicos de cada urna. Por­tan­to, a par­tir da assi­natu­ra dig­i­tal é per­feita­mente pos­sív­el ras­trear de for­ma inequívoca a origem dos arquiv­os pro­duzi­dos pelas urnas.

 Fazen­do tábu­la rasa das for­mas seguras de ras­trea­men­to de cada uma das urnas, como aci­ma men­ciona­do, o PL na sua rep­re­sen­tação ao TSE, pediu a anu­lação dos votos reg­istra­dos nes­tas 279 mil urnas, resul­tan­do em vitória de Bol­sonaro.

Mas a esperteza do pedi­do esbar­rou, já de iní­cio, na solic­i­tação da presidên­cia do TSE de que se adi­tasse a rep­re­sen­tação para se incluir o com­pro­me­ti­men­to tam­bém dos resul­ta­dos decor­rentes do primeiro turno — no qual estas mes­mís­si­mas urnas foram uti­lizadas — colo­can­do-se em análise, por exem­p­lo, a eleição de dep­uta­dos fed­erais que deu ao PL uma ban­ca­da de 99 rep­re­sen­tantes. Ficaria a rep­re­sen­tação depen­dente deste adi­ta­men­to sob pena de inép­cia.

Com des­cul­pa pueril e esfar­ra­pa­da, Walde­mar Cos­ta Neto argu­men­tou ser um grande tumul­to ampli­ar-se o âmbito do pedi­do, trazen­do diver­sos atores ao proces­so na hipótese de anu­lação tam­bém de urnas no primeiro turno. Por essa razão cin­gia o pedi­do ao segun­do turno, lim­i­ta­do à eleição pres­i­den­cial!!!

A petição ini­cial foi inde­feri­da in lim­ine, con­sid­er­a­da inep­ta por lhe fal­tar causa de pedir, ou seja: mín­i­mo fun­da­men­to fáti­co a tornar plausív­el o exame do pleit­ea­do, pois las­trea­da a ini­cial em argu­men­tos fal­sos, que con­trari­am a ver­dade obje­ti­va. Por este moti­vo tam­bém se reputou a ação revesti­da de lit­igân­cia de má-fé, vis­to a base do pedi­do estar assen­ta­da em exposição con­struí­da com man­i­festo desacor­do face à real­i­dade.

O Códi­go de Proces­so Civ­il impõe a todos que par­tic­i­pam do proces­so agir segun­do a boa-fé obje­ti­va, ou seja, com cor­reção, leal­dade, hon­esti­dade. Do con­trário, a justiça se pres­ta a final­i­dade espúria. A pro­bidade proces­su­al, como obri­ga­to­riedade de atu­ação dota­da de leal­dade e retidão, impõe o dev­er de veraci­dade no proces­so, corolário do dev­i­do proces­so legal inscrito no art. 5º da Con­sti­tu­ição.

Com efeito, frus­tra-se o fim de apli­cação jus­ta do dire­ito, à qual se des­ti­na o proces­so, quan­do se fal­ta à ver­dade, seja na omis­são de fato rel­e­vante, seja na infor­mação não ver­dadeira que ten­ta ludib­ri­ar o Juí­zo. Não é admis­sív­el con­ced­er prestação juris­di­cional em face de fato não ver­az­mente expos­to.

Grave é a afronta ao dev­er de com­por­ta­men­to con­forme a boa-fé, em espe­cial pelo desre­speito à ver­dade se efe­ti­va­do para se assumir posição proces­su­al que legit­ime a pre­ten­são deduzi­da, que de out­ro modo seria inviáv­el. Mere­ci­da, por­tan­to, a mul­ta apli­ca­da no val­or de 2% (pode­ria ser entre 1 a 10%) do val­or da causa, cal­cu­la­do este segun­do o val­or das urnas que se pre­tendia dev­er ser sub­sti­tuí­das.

Mas há mais: não se visa­va, em sã con­sciên­cia, a alcançar o resul­ta­do pedi­do na ação, pois a úni­ca intenção era ali­men­tar, com a instau­ração do proces­so, a base de fanáti­cos do bol­sonar­is­mo reunidos em frente a quar­téis ou depredan­do estradas, para insu­flar o tumul­to na esper­ança de inédi­to ter­ceiro turno, envol­ven­do até mes­mo mil­itares com os quais Bol­sonaro se reuniu após a rejeição lim­i­nar da aven­tu­ra proces­su­al, que frus­trou sua expec­ta­ti­va de con­vul­sion­ar a nação.

Se Bol­sonaro ten­tou se mostrar dota­do de valen­tia no exer­cí­cio da presidên­cia, o “imbrocháv­el”, todavia, rev­el­ou triste fraque­za na der­ro­ta.”