Em com­ple­men­to ao tex­to da Car­ta ao Gov­er­no Democráti­co, os Povos Indí­ge­nas emitem impor­tante Nota rel­a­ti­va à neces­si­dade e à importân­cia da par­tic­i­pação e da exper­iên­cia LGBTQIAPN+, no proces­so de con­strução e de afir­mação dos povos orig­inários, em mais um exem­p­lo impor­tante para a sociedade glob­al.

Leia a seguir.

 

NOTA OFICIAL DA CONFERÊNCIA LIVRE E POPULAR DE INDÍGENAS EM CONTEXTO URBANO

A participação e a experiência LGBTQIAPN+: aprender, acolher, envolver, trocar

 

“A proposição da Con­fer­ên­cia Livre e Pop­u­lar de Indí­ge­nas em Con­tex­to Urbano Marçal de Souza, parte do empen­ho e ide­al­iza­ção de pes­soas indí­ge­nas em con­tex­to urbano e, não, de ape­nas um grupo ou orga­ni­za­ção especí­fi­ca. Esta é uma opor­tu­nidade inédi­ta e históri­ca de artic­u­lação, aprox­i­mação e elab­o­ração de pro­postas sobre dire­itos, de nós para nós, pop­u­lação indí­ge­na que nasceu ou mora na cidade e arredores.

Ao lon­go desse proces­so de con­strução, está mais do que enten­di­da a neces­si­dade de acol­her, apren­der e nos envolver­mos com os saberes, deman­das e especi­fi­ci­dades uns dos out­ros, tro­can­do sabedo­rias baseadas nas memórias dos nos­sos povos e tam­bém con­hec­i­men­tos adquiri­dos em con­ta­to e con­vivên­cia com a sociedade não-indí­ge­na.

No entu­si­as­mo da par­til­ha, temos obser­va­do e cel­e­bra­do a grande e con­sis­tente pre­sença de par­entes que afir­mam e reivin­dicam suas vivên­cias e existên­cias diver­sas e inter­sec­cionais. Existên­cias que, no ger­al, nos propõem a ser­mos cole­ti­va­mente livres das nor­mas inven­tadas pelo inva­sor, que nos apri­sion­am e dom­i­nam, impostas prin­ci­pal­mente nas cidades.

Recor­damos que, antes da invasão, em várias sociedades indí­ge­nas neste ter­ritório e em out­ros, tín­hamos a pre­sença orgâni­ca e ances­tral de pes­soas que viven­ci­avam suas iden­ti­dades de gênero e sex­u­al­i­dades livre­mente, inclu­sive com espir­i­tu­al­i­dade, sabedo­ria e orga­ni­za­ção social ele­vadas e recon­heci­das.

A existên­cia e respeito pela par­tic­i­pação das pes­soas que hoje são denom­i­nadas por LGBTQIAPN+ não é novi­dade nas sociedades indí­ge­nas, essa era uma questão super­a­da e viven­ci­a­da com nat­u­ral­i­dade até a chega­da das car­ave­las, que troux­er­am as ideias de “peca­do” e for­matação de “família tradi­cional”.

É evi­dente que, como resul­ta­do do proces­so de col­o­niza­ção e apaga­men­to de nos­sas lín­guas e cul­turas, restou para muites de nós, hoje, palavras e ter­mos na lín­gua col­o­nizado­ra, que não abar­cam e não imprimem nos­sos cor­pos, pen­sa­men­tos e modo de viv­er.
Entre­tan­to, para o entendi­men­to cole­ti­vo, reivin­di­cações políti­cas e ped­a­gogia nas dis­cussões, muitas vezes pre­cisamos usar os ter­mos atu­ais, como “dis­si­dentes de gênero”, “cis” ou palavras da sigla LGBTQPIAN+, bem como a lin­guagem neu­tra, a fim de localizar e iden­ti­ficar a deman­da e a pes­soa que a colo­ca.
Por­tan­to, é necessária a com­preen­são cole­ti­va para que par­entes não sejam estran­hades por se colo­carem den­tro de qual­quer denom­i­nação dis­si­dente, já que, como dito aci­ma, são as palavras que temos ago­ra para nos faz­er­mos enten­der.

No momen­to políti­co atu­al, a tare­fa que se apre­sen­ta para nós, que somos parte dos movi­men­tos indí­ge­nas em Pin­do­ra­maí, é que a par­tic­i­pação de pes­soas com iden­ti­dades e sex­u­al­i­dades livres e diver­sas, devem encon­trar condições e pro­teção para estarem na artic­u­lação da Con­fer­ên­cia, pois sua pre­sença é nat­u­ral­mente necessária para con­struções políti­cas.

Bus­camos então cam­in­har na con­strução e na práti­ca do acol­hi­men­to para todes, pro­pon­do a gen­erosi­dade e o apreço pela palavra e comu­ni­cação, pois, ger­ação após ger­ação, ances­trais nos mostram que as palavras são espíri­tos que poderosa­mente nos fazem pro­gredir, ou não, em nos­sas exper­iên­cias.

Nesse sen­ti­do, propo­mos e con­vi­damos os par­entes pre­sentes na con­fer­ên­cia a ofer­e­cer o com­pro­me­ti­men­to cole­ti­vo com a con­strução de uma con­fer­ên­cia ampla, com raízes fortes na ter­ra, onde todes os par­entes, sem dis­tinção, se expressem e con­vi­vam em bus­ca de elab­o­rações cole­ti­vas.

Assim, deix­am­os aqui níti­do que não tol­er­aremos aprox­i­mações e inspi­rações em ideias de exclusão e negação das múlti­plas pos­si­bil­i­dades de exi­s­tir. Seja sobre qual especi­fi­ci­dade ou recorte minoritário for.

Não será aceito den­tro do grupo da Con­fer­ên­cia qual­quer flerte com teo­rias ou ideias que ten­ham como base deter­min­is­mos biológi­cos sobre gênero, ou qual­quer insin­u­ação de que pes­soas que divergem dos gêneros des­ig­na­dos pela sociedade colono-cap­i­tal­ista este­jam equiv­o­cadas.

Não será tol­er­a­do, pois esta não é ape­nas uma divergên­cia. A pre­mis­sa dessa ideia agride, vio­len­ta, desre­spei­ta a existên­cia ances­tral de indí­ge­nas que exis­tem em suas dis­sidên­cias, com suas memórias de sécu­los de existên­cia, muito antes dis­so ser dis­sem­i­na­do na con­tem­po­ranei­dade vir­tu­al.

Todo esse exer­cí­cio de recon­stru­ir nos­sos próprios sen­ti­dos, deman­da grande dis­posição energéti­ca, muito afe­to e gen­erosi­dade para enten­der e ser enten­dide, para comu­nicar e tro­car com respeito, lem­bran­do do que, des­de o iní­cio, foi a pro­pos­ta da artic­u­lação da Con­fer­ên­cia.
Enten­demos que na cidade não é fácil con­cil­iar a sabedo­ria e cir­cu­lar­i­dade indí­ge­na com o peso do cotid­i­ano, seus atrav­es­sa­men­tos e urgên­cias, mas esse exer­cí­cio é um cam­in­ho para ter­mos um ambi­ente difer­ente dos que são pro­pos­tos e con­tro­la­dos pelo col­o­nizador.

É fun­da­men­tal numa con­strução anti-colono-cap­i­tal­ista — decolo­nial  — e que defen­da a retoma­da da iden­ti­dade étni­ca respon­sáv­el e com­pro­meti­da e a retoma­da ter­ri­to­r­i­al, que encar­nemos os espíri­tos ances­trais em nos­sas ati­tudes, pen­sa­men­tos e falas no momen­to de dis­cussão, tan­to para a con­strução, quan­to no exer­cí­cio da Con­fer­ên­cia. Só assim, guiades por aque­lus que estiver­am na resistên­cia antes de nós, poder­e­mos, de fato, ter a har­mo­nia e unidade para seguirmos com a vitória da Con­fed­er­ação Tamuya.

A primeira Con­fer­ên­cia está sendo con­struí­da no tur­bil­hão das emergên­cias políti­cas atu­ais, pro­pos­ta sem que haja hier­ar­quia ou metodolo­gia acadêmi­ca colo­nial pré-esta­b­ele­ci­da.
Sua for­matação não foi impos­ta ou pré-molda­da para ser ofer­e­ci­da, pois a mes­ma está sendo pen­sa­da con­forme avança.
Assim, con­struí­mos e enten­demos a Con­fer­ên­cia diari­a­mente e em cole­ti­vo, com as reuniões, debates e ativi­dades pro­postas.
Por isso, val­orizamos e colo­camos como princí­pio o diál­o­go, a per­cepção sen­sív­el um do out­ro e a gen­erosi­dade nas tro­cas, enten­den­do o tem­po para mat­u­ração e inter­me­di­ação dos con­fli­tos, miran­do a pos­si­bil­i­dade de coex­i­s­tir ao reivin­dicar as nos­sas especi­fi­ci­dades, vis­to que somos muites e de muitos con­tex­tos dis­tin­tos. Pre­cisamos, tam­bém, do com­pro­me­ti­men­to cole­ti­vo, com mui­ta sen­si­bil­i­dade na elab­o­ração da comu­ni­cação, para evi­tar frag­ilizar e deses­ta­bi­lizar a con­strução cole­ti­va, inci­tan­do o grupo ao opos­to sen­ti­do da Con­fer­ên­cia.

Por fim, agrade­ce­mos a todes os par­entes que estão soman­do neste movi­men­to. A cada reunião vemos o quan­to a Con­fer­ên­cia se faz necessária, mes­mo com toda com­plex­i­dade que sua edi­fi­cação traz.”