Marly A. Cardone professora-assistente-doutora (ap.) da FDUSP e livre-docente de Direito do Trabalho e da Seguridade Social na UFRJ. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior.
O modo de produção, tanto industrial, como de serviços, mudou nas últimas décadas.
O avanço da tecnologia e da globalização, fenômenos conhecidos por todos os que atuam na área social, na qual os juristas estão inseridos, é notório.
Se assim é, todas as empresas devem ir se adaptando a uma nova realidade ou não terão condição de se manter no mercado de produção de bens e serviços.
As pessoas que prestam serviços às referidas empresas também devem se adequar ao seu novo modo de produzir, pois o como, o onde e o quanto dessa prestação mudaram com o implemento de novas tecnologias.
Se os trabalhadores, com seus sindicatos, não reconhecerem isto menos mão de obra poderá ser aproveitada e mais pessoas viverão na informalidade, neste caso, sim, precariamente.
Com o direito positivo, seja de que ramo for, acontece que, antes de ser ele posto, é precedido de uma experiencia que o convoca a se realizar, ou seja, ele fica latente.
Lembra o jusfilósofo RECASENS SICHES:
“Sucede que el Derecho norma y garantiza determinadas configuraciones de muchas relaciones y estructuras sociales. Pero esto no significa que siempre y por entero sea el Derecho quien haya instituido esas realidades sociales y quien les haya dado por completo la figura que tienen. Nótese, ante todo, que el Derecho no tiene poderes mágicos para crear realidades sociales. Hasta certo punto, puede modificar en parte — mayor o menor – unas realidades sociales, darles una nueva configuración; y puede también, sobre la base de hechos sociales preexistentes, determinar nuevas realidades, incluso producirlas en alguna medida – nada más que limitada. Puede asimismo reformar para el futuro algunas realidades sociales, a condición de que para esa reforma tome como punto de partida la precedente situación efectiva de essas realidades.-La realidade social suministra una serie de hechos, ingredientes, que ejercen influencia o tienen intervención en la génesis, en el desarrollo y en la realiazación del Derecho”.
Numa visão de outro ângulo, CESARINO JUNIOR afirma haver modernamente uma socialização de todos os ramos do Direito, o que significa que a nomogênese é sempre uma atualização ou adaptação do Direito à realidade social, especialmente no ramo que ele denomina ‘Direito Social’ e outros preferem chamar de Direito do Trabalho.
Se estas noções de filosofia, sociologia ou teoria geral do Direito são lembradas é para ressaltar que o Direito não cria os fatos sociais, eles são anteriores ao Direito positivo.
No caso brasileiro, no que se refere à chamada reforma trabalhista, há muito se recomendava, pelos meios de comunicação e por parte do setor acadêmico, uma modernização do Direito do Trabalho, para atender às mudanças na forma de produção industrial e de serviços.
A Consolidação das Leis do Trabalho, promulgada em 1943, que, inegavelmente, sempre foi sendo atualizada, com inclusão até de apêndice, digamos, de direitos novos (13o salário, férias de 30 dias, entre outros) tinha, contudo, certos pontos nevrálgicos engessados, impedindo a flexibilização que o modo moderno de produção exige na contratação de trabalhadores. Ademais, alguns itens da Constituição de 1988 ainda não tinham sido objeto de regulação pela lei ordinária.
1In Introducción al estudio del derecho, Ed. Porrúa S.A., México, 1970, pg.73. 2In Direito Social, LTR/EDUSP, VOL. I, 2 a ed., pgs.. 28 e 29
O projeto de lei do Governo, que se transformou na lei 13.467, de 13 de julho de 2017, em vigor desde novembro daquele ano, foi discutido em várias instancias e órgãos, a despeito das críticas de alguns setores sindicais, de que isto não existiu e que ele fora aprovado açodadamente.
Respondendo a essas manifestações informa MARCO AURELIO AGUIAR BARRETO, advogado e professor em Brasília:
“Contudo, segundo o relatório apresentado pelo Exmo Sr. Deputado Federal Rogerio Marinho, Relator do Projeto der lei no 6.787, de 2016, perante a Comissão Especial, foram ouvidos os diversos setores e partes envolvidas, entre eles, membros da Magistratura do Trabalho (TST e TRTs), do Ministério Público do Trabalho, de Centrais Sindicais, de Confederações Patronais, dentre outros importantes segmentos, em audiência públicas (sic) realizadas em.….”, seguem 18 datas dessas reuniões.
Ainda que essas reuniões tenham sido meramente formais, como advertem alguns, a verdade é que nos meios acadêmicos e outros setores o tema vinha sendo objeto de discussões há tempos (cf. Nota no 4, adiante).
Superado este aspecto, quanto ao mérito, não há dúvida de que alguns direitos dos trabalhadores foram diminuídos, encolhidos. Entre outros, o de reclamar contra qualquer empresa de um grupo que tivesse os mesmos sócios, dado que um novo conceito de ‘grupo econômico’, mais estreito, foi acrescentado pelo § 3o do art. 2o. da CLT. Outro exemplo, é a desconsideração do ‘premio’ como integrante do conceito de remuneração, para reflexo em todos os direitos trabalhistas e previdêncários.
Estes casos não são de flexibilização, como se verifica, mas de real supressão de direitos, como outros. Pode-se discutir a justiça ou não dessa eliminação, objeto, já, de tantos outros estudos4, mas nosso propósito neste texto é grifar outro aspecto da reforma, lançar um olhar diferente.
Como já dito, a flexibilização que a reforma traz é indispensável, porque a produção de bens e serviços do capitalismo moderno também é flexível . Se as normas trabalhistas não se adaptarem a esta realidade menos empregos serão gerados, mais brasileiros tentarão ganhar sua sobrevivência na informalidade.
Isto não elimina, todavia, a situação de vulnerabilidade daquele que só tem sua força de trabalho (o hipossuficiente, que não é um débil mental, como, equivocadamente, tem sido dito, recentemente, e repetido (CESARINO JR, idem,ibidem) diante daquele que deseja contrata-lo ou mante-lo ao seu serviço.
A vulnerabilidade do trabalhador , que é similar à do consumidor diante do fornecedor de bens e serviços, tanto que o Código do Consumidor (art. 4o, inciso I) usa o mesmo termo para designar a situação, é inegável, todos podem percebe-la, pois todos são consumidores . A vulnerabilidade do trabalhador não despareceu, pelo menos entre nós, e sempre que houver escassez de empregos ela piora.
Para ‘proteger’ o vulnerável ́, além dos art. 8o e 9o da CLT, não se olvide o art. 422 do Código Civil, que determina a obrigação dos contratantes, tanto na conclusão dos contratos, como na sua execução, a se comportarem com probidade e boa-fé.
Dispositivo civilizatório, que tenta destacar na vida das relações negociais a necessária disposição do alterum non laedere, que vem do direito romano (Ulpiano).
O cotidiano da advocacia trabalhista demonstra que isto, muitíssimas vezes, não acontece. A célebre frase de ‘querer tirar vantagem’, vigora. Se o empregado sabe que terá direito a 20 horas extras, cujo pagamento pleiteará em Juízo, seu advogado solicita muitas vezes mais. Aumenta o valor da causa para acrescer o montante de um eventual acordo.
3 In Reforma Trabalhista: a nova regra da supressão da gratificação de função, artigo na revista ARQUIVOS do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Jr, vol. 41, 2017, pgs.59 a 91. 4 As revistas ARQUIVOS DO IBDSCJ, edições de 2015, 2016 e 2017 trataram respectivamente, entre outros, dos temas: ‘Novas Tecnologias e o Direito do Trabalho’, ‘Reflexões sobre a modernização do Direito do Trabalho’ e ‘Aspectos da Reforma Trabalhista’, acessíveis em www.instiutocesarinojunior.org.br
A “paquera” em busca de clientes, que, despudoradamente se faz, pelo menos em São Paulo, em locais de grande movimentação de público, é um acinte à nobreza da advocacia. Desagradável dizer estas verdades, mas a realidade não pode ser ignorada.
Como o empregado não vai ao Poder Judiciário enquanto vigente a relação de emprego, pois seria dispensado se isto acontecesse, a reforma cria a possibilidade de uma quitação anual, mediante documento firmado perante o sindicato dos empregados (art. 507‑B). É uma salvaguarda para o empregador, que não fica com um eventual passivo trabalhista pendente sobre sua empresa.
Este dispositivo quer trancar de vez a possiblidade do trabalhador, findo o vínculo, pleitear direitos inexistentes.
Mas há de existir uma contrapartida: os trabalhadores devem poder pleitear, enquanto existente a relação de emprego, o que entendem devido. Isto poderá ser feito pela comissão de representantes que toda empresa com mais de duzentos empregados deve criar, segundo o novo art. 510‑A, um caminho para a resolução interna dos conflitos.
Contudo, é preciso que os empregadores, mostrando sua boa-fé, aceitem uma cláusula na negociação coletiva, de não dispensarem empregados que ingressem em Juízo durante a relação de emprego ou façam um pleito por intermédio da comissão de representantes.
Por seu turno, o empregador, com a desculpa de que a legislação trabalhista é muito complicada, prefere aplica-la sem uma orientação segura de advogado ou de seu sindicato. De boa ou má-fé, a viola com frequência. Eis aqui um aspecto importante para a atuação mais eficiente dos sindicatos de empresas, na orientação jurídica delas.
Os sindicatos de empregados existem também para equilibrar as partes nas relações de trabalho.
Em cada negociação ‘individual’ com o patrão, ampliada em várias hipóteses, o sindicato deverá ser consultado pelo empregado. Ele, o sindicato, por seu departamento jurídico, deve ser ágil para atender associados sem custos, ou, os não associados, com um custo moderadíssimo.
Os sindicatos devem se reestruturar, se agrupando até fisicamente, dividindo espaços, economizando recursos para contratarem advogados experientes e também médicos e engenheiros do trabalho, para atender ás necessidades dos pertencentes à sua categoria profissional.
É preciso se reinventar, como todas as pessoas físicas fazem nas suas vidas , quando golpeadas por uma contingencia, que é um fato que elas não podem evitar.
Mesmo os ônus decorrentes de pagamento de custas processuais, se o empregado sucumbe na sua pretensão judicial, incluída a hipótese de honorários periciais (arts.790‑B) podem ser suportados pelo sindicato em relação aos seus associados.
A advocacia sindical deverá ser ampliada, é uma largo espaço de atuação mais eficiente dos sindicatos, por meio dos seus advogados.
O futuro da advocacia trabalhista será mais sindical, vale dizer, exercida por intermédio dos sindicatos
Assim, salta aos olhos que há um contorno ético na reforma, que é preciso ressaltar. Diríamos, como o sarcástico escritor Stanislaw Ponte Preta declarou há décadas:
“Ou restaura-se a moralidade ou loucupletemo-nos todos”.