ROGÉRIO DONNINI Tit­u­lar da Cadeira 73 – Vicente Rao Advo­ga­do. Livre-docente, Doutor e Mestre em Dire­ito Civ­il pela PUC-SP. Pro­fes­sor do Pro­gra­ma de Mestra­do e Doutora­do da PUC-SP, da Facoltà di Giurispru­den­za del­la Sec­on­da Uni­ver­sità degli Stu­di di Napoli, Itália, e da Esco­la Paulista da Mag­i­s­tratu­ra.

Sumário. 1. Fides, fides bona e bona fides. 2. Honeste vivere, boa-fé e o princípio da moralidade. Boa-fé: do direito privado ao público. 3. A mentira lato sensu e a boa-fé processual. 4. Conclusão.
“Todo o mundo (e todo o tempo) é um palco E todos os homens e mulheres meros atores. Eles têm suas entradas e saídas; E um homem em seu tempo desempenha muitos papéis.” (William Shakespeare – Como queiras, Ato II, Cena 7)

Resumo
A noção de boa-fé surgiu a par­tir da ideia da fides romana, até chegar à bona fides, con­sid­er­a­da um dos fun­da­men­tos da justiça. Essa tran­sição oper­ou-se pela via proces­su­al, por meio das bonae fidei iudi­cia (ações de boa-fé). A neces­si­dade de ações judi­ci­ais de boa-fé sucedeu em razão da neces­si­dade de segu­rança nas relações jurídi­cas, na bus­ca pela ver­dade e, como con­se­quên­cia, na esper­ança con­stante de que com­pro­mis­sos assum­i­dos fos­sem cumpri­dos. Há um vín­cu­lo cristal­i­no entre a boa-fé e um dos pre­ceitos pri­ma­ci­ais da con­vivên­cia humana, con­stante do Digesto, que é viv­er hon­es­ta­mente (hon­este vivere). A cláusu­la ger­al de boa-fé, antes pos­i­ti­va­da ape­nas no CDC e Códi­go Civ­il e con­stante da Con­sti­tu­ição Fed­er­al por inter­mé­dio do princí­pio da moral­i­dade, ago­ra se estende ao NCPC, jun­ta­mente com a imposição de coop­er­ação. Se a lit­igân­cia de má-fé, cen­tra­da em exten­so rol de men­ti­ras lato sen­su, era penal­iza­da de for­ma bran­da, com a nov­el leg­is­lação haverá maior rig­or e esper­ança de que ao menos dimin­u­am os casos de atu­ação do improbus lit­i­ga­tor.
Rias­sun­to La nozione di buona fede è nata dal­l’idea del­la fides romana, fino a rag­giun­gere la bona fides, con­sid­er­a­ta uno dei fon­da­men­ti del­la gius­tizia. Ques­ta tran­sizione è suces­so da mezzi pro­ce­du­rali, attra­ver­so delle bonae fidei iudi­cia (azioni di buona fede). La neces­sità di azioni legali in buona fede è accadu­ta del­la neces­sità di sicurez­za nei rap­por­ti giuridi­ci, nel­la ricer­ca del­la ver­ità e, di con­seguen­za, con la sper­an­za costante che gli impeg­ni siano rispet­tati. Esiste un chiaro legame tra la buona fede e pre­cetti pri­maziali del­la soci­età umana, che fa parte del Digesto: vivere ones­ta­mente (hon­este vivere). La clau­so­la gen­erale di buona fede pri­ma val­u­ta­ta pos­i­ti­va­mente solo al CDC e Codice Civile, con­tenu­ta nel­la Cos­ti­tuzione Fed­erale attra­ver­so il prin­ci­pio del­la moral­ità, si estende ora al NCPC, insieme con l’im­po­sizione di coop­er­azione. Se la lit­i­gan­za di mala fede, cen­tra­ta sul­la lun­ga lista di gran­di bugie lato sen­su, era penal­iz­za­ta in modo blan­do, con la nuo­va legge avrà un mag­giore rig­ore e la sper­an­za per almeno diminuire i casi di attuazione del improbus lit­i­ga­tor.

1 Texto escrito em homenagem ao Professor José Manoel de Arruda Alvim Netto.

1. FIDES, FIDES BONA E BONA FIDES
Na dire­ito romano arcaico2, muito antes do surg­i­men­to da boa-fé (bona fides), havia a fides, advin­da da deusa com o mes­mo nome, mais vel­ha do que Júpiter, com viés clara­mente reli­gioso, con­sis­tente na qual­i­dade de uma pes­soa de aparên­cia e com­por­ta­men­to con­fiáveis, cuja palavra dada era passív­el de con­fi­ança. Assim, a infringên­cia da fides trans­for­ma­va o bom e probo (bonus et probus) em mau e improbo3 (malus et improbus), razão pela qual havia inegáv­el liame entre fides, sub­stan­ti­vo, e o ver­bo lati­no cre­do (crer, acreditar)4, pois sem pos­suir o sujeito um deter­mi­na­do nív­el sócio-jurídi­co não havia crédi­to e, como con­se­quên­cia, fides, tornando‑o inca­paz para a práti­ca de um negócio5.

A noção de fides pode ser divi­di­da em fides-sacra, fides-fato e a fides- éti­ca. Con­tu­do, inter­es­sa-nos a pas­sagem da fides à fides bona e, final­mente, à bona fides, tran­sição essa que se oper­ou pela via proces­su­al, haja vista que o sis­tema jurídi­co romano esta­va fun­da­men­ta­do na atribuição conc­re­ta de ações e não no recon­hec­i­men­to abstra­to de situ­ações sub­je­ti­vas 6. Destarte, emb­o­ra con­tro­ver­tido o rol das bonae fidei iudi­cia, estão entre elas a ven­da, a locação, a sociedade e, pos­te­ri­or­mente, o mandato7.

2 Perío­do que vai da fun­dação de Roma (750 a.C.) até a Lei das XII Tábuas, de 450 a.C. 3 Improbus tem o sig­nifi­ca­do de inca­paz de provar, de ser teste­munha. 4 Con­fi­ança, crença basea­da na qual­i­dade de alguém. 5 Rober­to Fiori, Fides e Bona Fides – Ger­ar­chia sociale e cat­e­gorie giuridiche, in Mod­el­li teori­ci e metodologi­ci nel­la sto­ria del dirit­to pri­va­to n. 3, a cura di Rober­to Fiori, Napoli: Jovane Edi­tore, 2008, p. 240. 6 António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa fé no Dire­ito Civ­il, Coim­bra: Alme­d­i­na, 2001, p. 71. 7 Alain Supi­ot, Homo juridi­cus – Ensaio sobre a função antropológ­i­ca do Dire­ito, tradução de Maria Erman­ti­na de Almei­da Pra­do Galvão, São Paulo: Mar­tins Fontes, 2007, p. 113. Na acepção do Imper­ador Jus­tini­ano, as bonae fidei iudi­cia são: a com­pra, ven­da, locação, con­duçãoo, gestão de negó­cios, manda­to, depósi­to, fidú­cia, sociedade, tutela, comoda­to, pen­hor, juí­zos divisórios, hered­i­tatis peti­tio e ex stip­u­la­tione incer­ta (António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 76).

Com a lai­ciza­ção da fides, sob a égide do ius gen­tium, nor­mas do dire­ito romano aplicáveis aos estrangeiros, sur­gi­ram os primeiros con­tratos con­sen­suais entre estes e os romanos. Se a fides era apli­ca­da no âmbito da Roma arcaica, lim­i­ta­da à esfera da comu­nidade romana, em que o sta­tus dos cidadãos eram notórios e ple­na­mente definidos, quan­do os negó­cios pas­saram a ser inter­na­cionais, em que as partes envolvi­das eram de diver­sas cul­turas e regiões, pas­sou a inex­i­s­tir a certeza do crédi­to e uma fides fic­tí­cia.
A bona fides, assim, surgiu dessa neces­si­dade de segu­rança nas relações jurídi­cas, enal­te­cen­do a fidel­i­dade na ver­dade e em com­pro­mis­sos assum­i­dos, con­sid­er­a­da um dos fun­da­men­tos da Justiça8.
2. HONESTE VIVERE E O PRINCÍPIO DA MORALIDADE. BOA-FÉ: DO DIREITO PRIVADO AO PÚBLICO.
O Cor­pus Iuris Civilis ou Códi­go Jus­tini­a­neu, do Imper­ador Jus­tini­ano, de 526 d.C., está divi­di­do em qua­tro partes: O Digesto ou Diges­ta, tam­bém con­heci­do com o nome grego Pan­dec­tas, que é uma com­pi­lação de frag­men­tos de tex­tos de juriscon­sul­tos clás­si­cos; as Insti­tu­tas ou Insti­tu­ições (Insti­tu­tiones), que eram uti­lizadas como um man­u­al de Dire­ito Romano aos estu­dantes de Dire­ito de Constantinopla9, o Códi­go (Codex), con­sis­tente de uma coleção sis­temáti­ca de leis e decre­tos impe­ri­ais, e as Nov­e­las (Novel­lae Con­sti­tu­itiones), que eram novas leis impe­ri­ais. No Digesto 1.1.10.1, Ulpi­ano enu­mera os pre­ceitos do dire­ito: viv­er hon­es­ta­mente, não lesar a out­rem e dar a cada um o que é seu (Iuris prae­cep­ta sunt haec: hon­este vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere)10.
8 Cícero, Os Deveres, Tomo I, tradução de Luiz Feracine, São Paulo: Edi­to­ra Escala, 2008, p. 49. 9 Insti­tu­tas do Imper­ador Jus­tini­ano, tradução de J. Cretel­la Jr. e Agnes Cretel­la, 2a edição, 2005, São Paulo: Edi­to­ra Revista dos Tri­bunais. 10 A origem dess­es pre­ceitos, pos­to inte­grem o Digesto, é gre­ga, uma vez que, em mea­d­os da Repúbli­ca (510 a.C. até 27 a.C.), a con­quista da Gré­cia por Roma resul­tou na absorção de sua cul­tura, em espe­cial na retóri­ca, didáti­ca, filosofia, oratória e lit­er­atu­ra. Na filosofia desta­cam-se as preleções advin­das com o epi­curis­mo, bem como do esto­icis­mo, que rep­re­sen­tou a comunhão de uma vas­ta gama de pen­sadores por muitos sécu­los. Esta últi­ma cor­rente filosó­fi­ca influ­en­ciou sobre­maneira a cul­tura romana, sobre­tu­do no perío­do clás­si­co. As doutri­nas filosó­fi­cas que mais influ­en­cia­ram o pen­sa­men­to oci­den­tal foram, indu­bitavel­mente, o aris­totelis­mo e o esto­icis­mo. A primeira cor­rente, com a teo­ria da justiça, teve prevalên­cia dire­ta na Antigu­idade e na Idade Média, pois de sua noção de éti­ca apare­cem os sis­temas filosó­fi­cos da escolás­ti­ca e o tomis­mo, além de vários out­ros pen­sa­men­tos filosó­fi­cos dos sécu­los XIX e XX (V. Rogério Don­ni­ni, Respon­s­abil­i­dade civ­il pós-con­trat­u­al, 3a edição, São Paulo: Sarai­va, 2011, p. 41 e s.; Jean-Cassien Bil­li­er e Aglaé Maryi­oli in História da Filosofia do Dire­ito, tradução de Mau­rí­cio de Andrade, Barueri – SP: Manole, 2005, p. 90 e 91; Bertrand Rus­sell in História do Pen­sa­men­to Oci­den­tal, tradução de Lau­ra Alves Aurélio Rebel­lo, Ediouro, Rio de Janeiro, 3a edição, 2003, p. 171; e Arthur Kauf­mann, em sua obra

O segun­do pre­ceito de Ulpi­ano, alterum non laedere ou nem­inem laedere (a ninguém lesar), con­sid­er­a­do ele­men­to neg­a­ti­vo da justiça, advém da filosofia epi­curista, que propa­ga o dire­ito como resul­ta­do de um com­pro­mis­so de util­i­dade, ou seja, com a ideia de não se ofend­er rec­i­p­ro­ca­mente, que tem sua origem no Dire­ito Nat­ur­al. De acor­do com essa cor­rente filosó­fi­ca, a pro­pos­ta era de uma bus­ca da feli­ci­dade, enten­di­da esta como o bem-estar indi­vid­ual e cole­ti­vo. Sendo assim, difer­ente­mente dos esto­icos, que pug­navam como regra de vida a observân­cia à razão, à natureza e à vir­tude, a filosofia epi­curista não guar­da relação com o cál­cu­lo da jus­ta parte que deve cor­re­spon­der a cada um, mas o de não causar pre­juí­zo a out­rem, não lesar (non laedere)11, ver­dadeiro óbice à livre ação ou omis­são que cause danos a out­rem e que exerce o papel não ape­nas na reparação da ofen­sa, mas sobre­tu­do como maneira de pre­venção de lesões.

O ter­ceiro pre­ceito, dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere) traduz a noção do jus­to e do injus­to, ide­al­iza­da espe­cial­mente por Aristóte­les e indi­ca a justiça dis­trib­u­ti­va, que ver­sa sobre a divisão de dig­nidades, das funções e das van­ta­gens soci­ais, não com fun­da­men­to na igual­dade estri­ta, mas na ideia de pro­por­cional­i­dade 12 . É, em suma, como pre­ceitua Ulpi­ano, a von­tade con­stante e per­pé­tua de dar a cada um o que lhe cabe, que se vale dos dois out­ros pre­ceitos (ele­men­to neg­a­ti­vo e moral da justiça: nem­inem laedere e hon­este vivere, respec­ti­va­mente).

O primeiro pre­ceito, que tem espe­cial rele­vo para este estu­do, é o moral (viv­er hon­es­ta­mente), que retra­ta jus­ta­mente a moral esto­ica, que esta­b­elece a hon­esti­dade como um bem supre­mo. Para o esto­icis­mo, a vir­tude está aci­ma de tudo e é impos­ta por todo o uni­ver­so, haja vista que a natureza é dom­i­na­da pela razão e esta reg­u­la a natureza do homem. Des­ta for­ma, o que cor­re­sponde à razão práti­ca e às con­cepções da éti­ca é, simul­tane­a­mente, nat­ur­al. Um homem jus­to, cor­re­to, era aque­le que cumpria com sua obri­gação prove­niente de um con­tra­to. Por­tan­to, agir com cor­reção esta­va vin­cu­la­do ao respeito aos dire­itos do out­ro con­tratante, com a efe­ti­vação daqui­lo que foi prometi­do, pactu­a­do. Essa  ação jus­ta, cor­re­ta, pro­por­cional, resul­tou na denom­i­na­da iusti­tia commutativa13. Con­tu­do, no Dire­ito jus­tia­neu hon­este vivere pas­sou a ter um sig­nifi­ca­do mais amp­lo, que abar­cou a boa-fé (bona fides), a ideia de justiça e tam­bém de leal­dade. Assim, a noção de bona fides (boa-fé) está rela­ciona­da a hon­este vivere14, pois hon­es­tus tem relação com vir­tus (de vir) e com hon­or. Destarte, vir hon­es­tus é tan­to quan­to vir bonus (homem bom), ou seja, aque­le que age de acor­do com a hon­ra civ­il, com a total rep­utação que tem per­ante a lei, que tem por escopo o bem da comunidade15.

Filosofia do Direito, tradução de António Ulisses Cortês, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2004, p. 35). 11 Michel Villey, A formação do pensamento jurídico moderno, tradução de Claudia Berliner, Martins Fontes, 2005, p. 524. A difusão da doutrina epicurista pode ser verificada nas obras de Cícero e Lucrécio, que influenciaram diretamente o contratualismo e o utilitarismo modernos, com Hobbes, Locke e Bentham. No direito contemporâneo existe uma tendência de não se desviar da busca do justo, porém reduzir o justo ao útil, diante de sua mais fácil percepção, na busca do bem-estar. 12 France Farago in A Justiça, tradução de Maria José Pontieri, Manole, 2004, p. 73.

Há evi­dente relação entre ess­es três pre­ceitos do dire­ito que, bem de ver, guardam vín­cu­lo com a ideia do jus­to, haja vista que viv­er hon­es­ta­mente se coad­una com uma vida que ten­ha por obje­ti­vo não lesar a out­rem e, por fim, dar a cada um o que é seu evi­ta um com­por­ta­men­to desleal, incor­re­to, despro­por­cional. São, na real­i­dade, medi­das de justiça a boa-fé, da qual resul­tam os deveres de con­sid­er­ação, tam­bém denom­i­na­dos deveres anex­os, acessórios, de con­sid­er­ação ou lat­erais (infor­mação, leal­dade e proteção16, a dig­nidade humana17, a solidariedade18, a liber­dade, que no dire­ito pri­va­do con­siste na liber­dade con­trat­u­al, que decorre da autono­mia pri­va­da, além do já men­ciona­do princí­pio nem­inem laedere19, fun­da­men­to da respon­s­abil­i­dade civ­il. Fun­cionam ess­es princí­pios como val­ores que exercem, no caso con­cre­to, a função de medi­da da justiça, uma vez que sem esse val­or pri­ma­cial, que é a justiça, o dire­ito fica despos­suí­do de qual­quer significado20.

13 Hel­mut Coing, Ele­men­tos Fun­da­men­tais da Filosofia do Dire­ito, tradução de Elisete Anto­niuk, Ser­gio Fab­ris Edi­tor, Por­to Ale­gre, 2002, p. 42, 43 e 245. 14 Ulpi­ano, Digesto 1.1.10.1; Insti­tu­tiones 1.1.3. 15 Juan Igle­sias, Dire­ito Romano, tradução da 18a edição espan­ho­la de Clau­dia de Miran­da Ave­na, São Paulo: Edi­to­ra Revista dos Tri­bunais, 2012, p. 156. 16 V. Rogério Don­ni­ni, ob. cit., p. 81 e s. 17 Hel­mut Coing, ob. cit., p. 246. 18 A ideia de sol­i­dariedade tem vín­cu­lo dire­to com a boa-fé obje­ti­va (CC, art. 422, e CDC, art. 4o, III), pois ambos os princí­pios são incom­patíveis com um com­por­ta­men­to indi­vid­u­al­ista, tão cres­cente e mar­cante em nos­sa sociedade atu­al, que este­ja dis­tante da ideia de equi­líbrio, equidade, pro­porção ou cor­reção. Nas relações jurídi­cas a sol­i­dariedade é de cur­ial importân­cia, em razão da natureza humana indi­vid­u­al­ista, que se acen­tua cada vez mais, moti­vo pelo qual é indis­pen­sáv­el sua imposição como val­or e princí­pio con­sti­tu­cional, com a final­i­dade de tute­lar os inter­ess­es da out­ra parte, débil ou prej­u­di­ca­da. Nas relações de Dire­ito Civ­il, o princí­pio da sol­i­dariedade tem apli­cação por inter­mé­dio da função social dos insti­tu­tos de dire­ito pri­va­do, além do dis­pos­to no art. 5o da Lei de Intro­dução às Nor­mas do Dire­ito Brasileiro, ao esta­b­ele­cer que na apli­cação da lei o mag­istra­do deve aten­der à sua final­i­dade social e às exigên­cias do bem comum. Há, tam­bém, dire­ta relação entre um com­por­ta­men­to solidário e a boa-fé obje­ti­va (CC, art. 422, e CDC, art. 4o, III). V. Rogério Don­ni­ni, ob. cit., p. 47. 19 A ninguém lesar. 20 Rogério Don­ni­ni, Respon­s­abil­i­dade civ­il na pós-mod­ernidade – feli­ci­dade, pro­teção, enriquec­i­men­to com causa e tem­po per­di­do, Por­to Ale­gre: Ser­gio Anto­nio Fab­ris Edi­tor, 2015, p. 35.

A boa-fé, entre nós, teve origem no dire­ito privado21 e se difundiu por todo o orde­na­men­to jurídi­co, com dis­pos­i­tivos con­sti­tu­cionais e infra­con­sti­tu­cionais. Emb­o­ra fos­se desnecessário, ao menos hipoteti­ca­mente, tornar expres­so um princí­pio dessa mag­ni­tude, pois não teria sen­ti­do qual­quer uma relação jurídi­ca dis­so­ci­a­da de um com­por­ta­men­to cor­re­to, hon­esto, o efeito práti­co e didáti­co é evi­dente. No dire­ito civ­il e do con­sum­i­dor, a cláusu­la ger­al de boa-fé (CC, arts. 113 e 422 — CDC, art. 4o, III, e 51, § 1o) resul­tou e con­tin­ua a prop­i­ciar um grande número de jul­ga­dos em que se exige um com­por­ta­men­to éti­co.

Há duas espé­cies de boa-fé: a sub­je­ti­va e a obje­ti­va. A primeira diz respeito ao descon­hec­i­men­to ou ignorân­cia de uma pes­soa na lesão ao dire­ito de outrem22, con­forme se con­sta­ta na posse de boa-fé, em que o pos­suidor igno­ra o vício ou o obstácu­lo que impos­si­bili­ta a obtenção da coisa (CC, 1.201). A segun­da, por sua vez, é nor­ma de com­por­ta­men­to, de ati­tude leal, con­du­ta segun­do a ideia de cor­reção, que tem incidên­cia por ocasião de sua apli­cação pelo mag­istra­do, no caso con­cre­to. Tra­ta-se de ver­dadeira con­du­ta que leva em con­sid­er­ação os inter­ess­es da out­ra parte e não sim­ples com­por­ta­men­to com ausên­cia de má-fé.

A boa-fé tem importân­cia inegáv­el, vis­to que, como vimos, sua incidên­cia não se restringe ao dire­ito pri­va­do, mas abar­ca todo o dire­ito. Todavia, por se tratar de um princí­pio polis­sêmi­co, sua incidên­cia está condi­ciona­da à função que é des­ti­na­da, uma vez que pode ser um princí­pio ger­al do dire­ito que, bem de ver, não está pos­i­ti­va­do (p. ex. na inter­pre­tação de uma lei), como cláusu­la ger­al (CC, 113 e 422) ou como con­ceito legal inde­ter­mi­na­do (v.g., boa- fé na usu­capião ordinária)23.

Como dis­se­mos, a boa-fé tran­scende o dire­ito pri­va­do, pois qual­quer situ­ação jurídi­ca impõe um com­por­ta­men­to cor­re­to, hon­esto, equân­ime, pro­por­cional. No dire­ito públi­co, o agir segun­do a bona fides há muito é condição indis­pen­sáv­el em qual­quer democracia24, haja vista que é inad­mis­sív­el 21 Nos­so Códi­go Com­er­cial, de 1850, mais de seis décadas antes do Códi­go Civ­il de 1916, já esta­b­ele­cia, em seu art. 131, revo­ga­do pela Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o seguinte: “Sendo necessário inter­pre­tar as cláusu­las do con­tra­to, a inter­pre­tação, além das regras sobred­i­tas, será reg­u­la­da sobre as seguintes bases: 1. A inteligên­cia sim­ples e ade­qua­da, que for mais con­forme a boa-fé, e ao ver­dadeiro espíri­to e natureza do con­tra­to, dev­erá sem­pre prevale­cer à rig­orosa e restri­ta sig­nifi­cação das palavras”. 22 C. Mas­si­mo Bian­ca, Insti­tu­izioni di Dirit­to Pri­va­to, Milano: Giuf­frè Edi­tore, 2014, p. 244. 23 A apli­cação de um princí­pio, diver­sa­mente das regras jurídi­cas, depende da função a que ele se des­ti­na, em um dado sis­tema V. Nel­son Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery, Códi­go Civ­il Comen­ta­do, 11a edição, São Paulo: Edi­to­ra Revista dos Tri­bunais, 2014, p. 163. 24 Nel­son Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, em sua obra Con­sti­tu­ição Fed­er­al Comen­ta­da e Leg­is­lação Con­sti­tu­cional, São Paulo: Revista dos Tri­bunais, 2a edição, 2009, p. 357, prele­cionam: “A moral­i­dade admin­is­tra­ti­va con­siste no dev­er que o agente políti­co, uma con­vivên­cia entre pes­soas, seja no âmbito pri­va­do ou públi­co, seja na relação entre gov­er­nantes e gov­er­na­dos ou no exer­cí­cio do poder, desprovi­da de um com­por­ta­men­to éti­co, trans­par­ente, de con­fi­ança (fides25, fiducia26). Para tan­to, a exten­são da boa-fé se real­iza por meio do princí­pio da moralidade27. Tan­to é cer­to que a Lei no 9.784/99, que reg­u­la o proces­so admin­is­tra­ti­vo no âmbito da Admin­is­tração Públi­ca, esta­b­elece, no art. 2o, que, entre outros28, a admin­is­tração obe­de­cerá ao princí­pio da moral­i­dade, pre­ven­do, ain­da, no pará­grafo úni­co, inciso IV, desse mes­mo dis­pos­i­ti­vo, a observân­cia à atu­ação em con­formi­dade com os padrões éti­cos de pro­bidade, deco­ro e boa-fé.

No entan­to, nem sem­pre é tare­fa fácil a sua uti­liza­ção ade­qua­da, que pode ter uma função nor­ma­ti­va, inte­gra­ti­va ou interpretativa29. De qual­quer maneira, em qual­quer uma dessas situ­ações a bus­ca é de algo que seja jus­to, cor­re­to, leal, equi­li­bra­do.

3. A MENTIRA LATO SENSU E A BOA-FÉ PROCESSUAL
Vive­mos em uma sociedade em que a men­ti­ra inte­gra as relações inter­pes­soais. Tra­ta-se de uma práti­ca infe­liz­mente bas­tante aceitáv­el, algo cos­tumeiro e para muitos con­sid­er­a­do nat­ur­al. No âmbito da políti­ca tem sido a men­ti­ra uti­liza­da há milênios como meio de manip­u­lação públi­ca. Men­ti­ra, do latim men­daci­um, tem o sig­nifi­ca­do de engo­do, aqui­lo que é real­iza­do com o fito de enga­nar, impos­tu­ra, burla30.

Se é pouco prováv­el encon­trar quem não minta, há uma enorme dis­tân­cia entre a men­ti­ra lev­a­da a efeito com a final­i­dade de não magoar out­rem ou sua uti­liza­ção por corte­sia, sem maiores con­se­quên­cias, ou ain­da falsear a ver­dade para que não haja lesão a si próprio ou a out­ra pes­soa e diz­er uma inver­dade com o escopo de obtenção de lucro inde­v­i­do, práti­ca de atos fraud­u­len­tos, vitória em uma ação judi­cial, entre tan­tas out­ras hipóte­ses.

funcionário ou servidor têm de agir de modo legal, escorreito, honesto, sem aproveitar-se das vantagens de seu cargo ou função para si ou para outrem e sem favorecer ou prejudicar alguém. A atitude do improbo administrativo é punida na forma da CF 37 § 4o e da lei. Os regulamentos internos do poder público relativos à ética e moralidade administrativas complementam o princípio constitucional.” 25 Fé, confiança, em latim. 26 Confiança, em italiano. 27 Art. 37 da Constituição Federal. 28 Princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. 29 Guido Alpa, I principi generali, Tratatto di Diritto Privato, a cura di Giovanni Iudica e Paolo Zatti, 2a edição, Milano: Giuffrè, 2006, p. 17–21, acrescenta a essas funções as seguintes: função constitutiva, função racionalizante, função econômica, função garantista e função ideológica. 30 http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=mentira

No Brasil, a men­ti­ra per­mi­ti­da pelo réu na esfera penal teve e con­tin­ua a ter reper­cussão em todas as áreas, no proces­so civ­il, inclu­sive. Tra­ta-se de excrescên­cia jurídi­ca que con­t­a­m­i­na todo o nos­so orde­na­men­to. Emb­o­ra seja fun­da­men­tal a preser­vação do princí­pio nemo tene­tur se dete­gere (ninguém é obri­ga­do a pro­duzir pro­va con­tra si mes­mo), assim como o dire­ito do réu ao silêncio31, garan­tias con­sti­tu­cionais indis­pen­sáveis, a inver­dade tol­er­a­da nes­sa situ­ação causa male­fí­cios a todos, razão pela qual a proibição com mais ênfase no novo CPC de ati­tudes con­trárias à boa-fé, entre elas a men­ti­ra, é de vital importân­cia para a solução das con­tro­vér­sias judi­ci­ais.

No Ocidente32, o tema men­ti­ra tem sus­ci­ta­do duas posições: há os que aceitam, em situ­ações excep­cionais, a inver­dade e aque­les que sim­ples­mente a refu­tam vee­mente­mente, em qual­quer hipótese. Platão inte­gra a primeira cor­rente. Em sua obra A Repúbli­ca, emb­o­ra lou­ve o homem ver­az, sus­ten­ta que a men­ti­ra, em algu­mas situ­ações, seria per­mi­ti­da como, ver­bi gra­tia, se uti­liza­da con­tra os inimi­gos ou em situ­ações que envolvessem pes­soas na iminên­cia de praticar con­du­tas reprováveis, fun­cio­nan­do, des­ta for­ma, como um remé­dio, tor­nan­do-se algo útil, em bene­fí­cio de out­rem ou dos habi­tantes de uma cidade. Sendo assim, a men­ti­ra seria admis­sív­el ape­nas para algu­mas pes­soas e em deter­mi­na­dos momen­tos, como para o gov­er­nante, em bene­fí­cio da polis, o que rep­re­sen­taria uma nobre men­ti­ra. Ape­sar dis­so, a ver­dade é sem­pre enaltecida33. Schopen­hauer segue nes­sa mes­ma direção, ao sus­ten­tar que, quan­do em situ­ações de ameaça de atos vio­len­tos ou nos casos de preser­vação da intim­i­dade, a men­ti­ra seria aceitáv­el, isto é, na hipótese de autode­fe­sa, bem como em causas nobres a inver­dade seria admissível34.

Entre os que rechaçam, sem exceção, a men­ti­ra, está Aristóte­les, que a con­de­na vee­mente­mente, em razão da infringên­cia a um princí­pio éti­co, pois assev­era que “…a fal­si­dade é em si mes­ma vil e culpáv­el; e a ver­dade, nobre e digna de lou­vor.” No entan­to, seri­am aceitáveis, a seu ver, o aumen­to ou a diminuição da ver­dade. No primeiro caso seria o que ele denom­i­na jac­tân­cia e no segun­do iro­nia. Se se tratasse, con­tu­do, de seu emprego, por exem­p­lo, em um negó­cio ou questões que envolvessem a Justiça, por ser um vício de natureza grave, estar-se-ia diante de uma traição ou fraude, atos, assim, inaceitáveis35.

31 CF, art. 5o, inc. LXIII. 32 No judaísmo e no cristianismo a mentira é vedada. Em Êxodo 20:16 e Levítico 19:11, no Antigo Testamento, o recurso ao falso testemunho é proibido, o mesmo sucedendo no Novo Testamento, na Carta aos Efésios 4:25. 33 Platão, A República, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado, São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006, 328 c e 382 d, p. 82 e 83. 34 Arthur Schopenhauer, Sobre o Fundamento da Moral, Tradução de Maria L. Cacciola, São Paulo: Martins Fontes, 2001. Benjamin Constant, Des réactions politiques, texto publicado em F. Boituzat: Un Droit de Mentir? Constant ou Kant. Paris: PUF, 1993, contrariamente ao preconizado por Kant, afirma que a vida em sociedade seria insustentável se dizer a verdade fosse um dever incondicional.

Nos sécu­los IV e V de nos­sa era, San­to Agostin­ho escreveu tex­tos sobre a men­ti­ra: De men­da­cio, no ano 395, ano em que foi con­sagra­do Bis­po de Hipona, e con­tra a men­ti­ra, Con­tra mendacium36, em 420, assim como em Con­fis­sões, ao aduzir que a feli­ci­dade advém da ver­dade, con­de­nan­do efu­siva­mente a men­ti­ra, tam­pouco admitin­do exceções para a sua uti­liza­ção, ao afir­mar:

“É assim, é assim, é assim também a alma humana: cega, lânguida, torpe e indecente, procura ocultar-se e não quer que nada lhe seja oculto. Em castigo, não se pode ocultar à verdade, mas esta se oculta a ela. Apesar de ser tão infeliz, antes quer encontrar a alegria nas coisas verdadeiras do que nas falsas. Será feliz quando, liberta de todas as moléstias, alegrar-se somente na Verdade, origem de tudo o que é verdadeiro.”37

San­to Tomás de Aquino, em Suma Teológ­i­ca, per­fil­ha esse mes­mo entendi­men­to e não ape­nas refu­ta a men­ti­ra, mas vai além diante da inda­gação de Pôn­cio Pilatos: “Que é a ver­dade? (Quid est veritas?)38. Responde que é “a ade­quação do int­elec­to à coisa (ver­i­tas est adae­qua­tio intel­lec­tus et rei)”39. Kant, da mes­ma for­ma, não acei­ta a men­ti­ra, em qual­quer hipótese, na medi­da em que defende uma obe­diên­cia incondi­cional à verdade40.
Se é inegáv­el que a men­ti­ra inte­gra as relações inter­pes­soais, a inver­dade que altere o resul­ta­do do jul­ga­men­to ou invi­a­bi­lize a sua solução em tem­po razoáv­el, lança­da em um proces­so, causará danos, seja ela per­pe­tra­da pelas partes, procu­radores, mag­istra­do ou assis­tentes e fun­cionários do Juí­zo. Sendo assim, a men­ti­ra ofende frontal­mente a ideia de coop­er­ação e boa-fé, exigi­das ago­ra proces­sual­mente, nos ter­mos dos arts. 5o, 6o (coop­er­ação), 322 § 2o (boa- fé na inter­pre­tação do pedi­do) e 489, VI, § 3o (boa-fé na inter­pre­tação da decisão judi­cial), todos do NCPC, pos­to no Códi­go de Proces­so Civ­il de 1973 já hou­vesse uma deter­mi­nação de leal­dade e boa-fé no art. 14, inc. II. Con­tu­do, não se trata­va de uma cláusu­la ger­al, nos moldes do referi­do art. 5o da nov­el lei proces­su­al, que esta­b­elece, como con­sec­tário, a vedação ao abu­so de dire­ito proces­su­al, nos moldes do art. 187 do Códi­go Civ­il, car­ac­ter­i­za­do por aque­le que vai além dos lim­ites de seu dire­ito, passív­el de respon­s­abi­liza­ção por danos cau­sa­dos como lit­i­gante de má-fé (NCPC, 79/81)41.

35 Aristóteles, Ética a Nicômaco, tradução de Pietro Nassetti,São Paulo: Editora Martin Claret, 2002, 1127a, 5 a 30 e 1127b, 5 a 30, p. 98 a 100. 36 Gareth B. Matthews, Santo Agostinho – A vida e as ideias de um filósofo adiante de seu tempo, tradução de Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007, p. 196. 37 Santo Agostinho, Confissões, tradução de J. Oliveira Santos e Ambrósio de Pina, São Paulo, Editora Universitária São Francisco, 2011, p. 256. 38 Evangelho de São João, 18, 38. 39 Tomás de Aquino, Suma Teológica, Tradução de Aimom-Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001, I, 16, 2, C. No mesmo sentido, Dante Alighieri classifica o agente que pratica a mentira, ou mais precisamente o agir com malícia, de forma fraudulenta ou com força, causando danos a outros, no plano do inferno (Dante Alighieri, A Divina Comédia, tradução de José Pedro Xavier Pinheiro, São Paulo: eBooksBrasil.com, 2003, Inferno, Canto XI, verso 24, p. 98: “Todo mal, que no céu cólera acende, Injustiça há por fim, que o dano alheio, /Usando fraude ou violência, tende.” No original: “D’ogne malizia ch’odio in cielo acquista, ingiuria è ‘l fine, ed ogne fin cotale o con forza o con frode altrui contrista.” 40 Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos, tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin-Claret, 2008.

Emb­o­ra a boa-fé rep­re­sente não ape­nas um com­por­ta­men­to con­trário à men­ti­ra, mas ver­dadeira opção pela cor­reção, coop­er­ação, leal­dade, sol­i­dariedade, equi­líbrio, transparên­cia, con­fi­ança, é inegáv­el que no proces­so a inver­dade lev­a­da a efeito por quais­quer dos inter­ve­nientes na relação jurídi­ca causa um efeito deletério não ape­nas para a parte lesa­da, mas um dano social, vis­to que os efeitos podem ser de grande ampli­tude.
Em ver­dade, não teria sen­ti­do ape­nas o dire­ito mate­r­i­al reg­u­lar expres­sa­mente a boa-fé obje­ti­va, sem a mes­ma exigên­cia no dire­ito proces­su­al, emb­o­ra o agir segun­do esse princí­pio seja ínsi­to a qual­quer orde­na­men­to, mes­mo no caso de inex­istên­cia de uma nor­ma expres­sa. No entan­to, o efeito didáti­co é fun­da­men­tal para um apri­mora­men­to da prestação juris­di­cional.

A coop­er­ação, uma das funções do dire­ito, ao lado de uma ordem de paz, liber­dade, segu­rança social e integração42, no proces­so tem liame dire­to com a boa-fé, vale diz­er, um com­por­ta­men­to solidário43, o agir em colab­o­ração, com leal­dade, que impõe ati­tudes jus­tas, tais como o fornec­i­men­to de infor­mações e a não atu­ação com má-fé44.
A boa-fé obje­ti­va proces­su­al não diverge da de dire­ito mate­r­i­al, pois é uma cláusu­la ger­al e caberá ao mag­istra­do averiguar sua vio­lação que, nor­mal­mente, se ver­i­fi­ca com a men­ti­ra, no sen­ti­do mais amp­lo, como cri­ar difi­cul­dades desnecessárias à out­ra parte, entrav­es ao cumpri­men­to de uma decisão judi­cial, a não apre­sen­tação de doc­u­men­to indis­pen­sáv­el ao deslinde da causa, entre out­ras hipóteses45.

41 Nel­son Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Comen­tários ao Códi­go de Proces­so Civ­il – Novo CPC – Lei 13.105/2015, São Paulo: Revista dos Tri­bunais, 2015, p. 206 e 207. 42 Nor­bert Horn, Intro­dução à ciên­cia do dire­ito e à filosofia jurídi­ca, tradução de Elisete Anto­niuk, Por­to Ale­gre: Ser­gio Anto­nio Fab­ris Edi­tor, 2005, p. 61. 43 De Solidário (do latim sol­i­dar­iu) provém da palavra sol­i­dariedade, que pos­sui o sig­nifi­ca­do de dev­er recípro­co entre as pes­soas, que se obrigam uma pelas out­ras e cada uma delas por todas as out­ras pes­soas. Tra­ta-se de aspec­to éti­co que liga uma pes­soa às respon­s­abil­i­dades e inter­ess­es soci­ais, um ver­dadeiro com­por­ta­men­to cen­tra­do na éti­ca, com o fim de ben­e­fi­ciar as demais pes­soas em uma dada sociedade. V. Rogério Don­ni­ni, ob. cit., p. 174. 44 Nel­son Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, ob. cit. , p. 206.

Sendo assim, atos con­trários à boa-fé e coop­er­ação, prat­i­ca­dos com dolo, de maneira mal­dosa, resul­tam na lit­igân­cia de má-fé, ver­dadeiro dano proces­su­al, com a con­se­quente fix­ação de penas pecu­niárias que já fazi­am parte de nos­so Estatu­to Proces­su­al de 1973 e que ago­ra, nos arti­gos 79/81, se tornaram mais graves e com punições em val­ores mais elevados46, mas ain­da insu­fi­cientes para coibir essa práti­ca.
O lit­i­gante de má-fé (improbus lit­i­ga­tor) vale-se de ações ou omis­sões com o fito de enga­nar, descon­stru­ir a ver­dade, ao deduzir: pre­ten­são ou defe­sa con­tra tex­to expres­so de lei ou fato incon­tro­ver­so; mod­i­ficar a ver­dade dos fatos; uti­lizar do proces­so para a obtenção de obje­ti­vo ile­gal; provo­car resistên­cia sem qual­quer jus­ti­fica­ti­va ao anda­men­to nor­mal do proces­so; agir de modo temerário em qual­quer inci­dente ou ato do proces­so; provo­car inci­dente man­i­fes­ta­mente infun­da­do ou quan­do inter­puser recur­so com intenção man­i­fes­ta­mente pro­te­latória (art. 80 do NCPC). Prat­i­ca, em todas essas hipóte­ses, uma men­ti­ra lato sen­su, haja vista que há engo­do, burla, embuste, ati­tudes inad­mis­síveis e man­i­fes­ta­mente con­trárias ao Dire­ito e ao ide­al de Justiça, fim col­i­ma­do do proces­so.

4. CONCLUSÃO
Emb­o­ra a origem da bona fides seja proces­su­al, a boa-fé obje­ti­va do nos­so dire­ito mate­r­i­al irra­diou ao dire­ito proces­su­al, com uma dimen­são éti­co-jurídi­ca impor­tan­tís­si­ma, uma vez que não tin­ha sen­so algum deixar de exi­gir dos inter­ve­nientes do proces­so, com mais veemên­cia e rig­or, um com­por­ta­men­to cen­tra­do na leal­dade, hon­esti­dade, retidão, pro­bidade, além da vedação clara ao com­por­ta­men­to abu­si­vo proces­su­al.
Com isso, pugna-se pela ver­dade e se con­de­na o que denom­i­na­dos men­ti­ra lato sen­su, con­sis­tente, entre out­ras, nas hipóte­ses de lit­igân­cia de má-fé que, em 45 Tere­sa Arru­da Alvim Wambier et al, Primeiros Comen­tários ao novo Códi­go de Proces­so Civ­il – arti­go por arti­go, São Paulo: Revista dos Tri­bunais, 2015, 3a tiragem, p. 62. 46 O art. 18 do CPC de 1973 pre­vê uma mul­ta para o lit­i­gante de má-fé que não exce­da 1% do val­or da causa, além de ind­eniza­ção por dano cau­sa­do à parte, mais hon­orários e despe­sas. O NCPC (art. 81) esten­deu o pata­mar desse per­centu­al, ao fixar que a mul­ta deve ser supe­ri­or a 1% e infe­ri­or a 10% do val­or cor­rigi­do da causa, além da ind­eniza­ção. Acres­cen­ta tam­bém que se o val­or da causa for irrisório ou ines­timáv­el, a mul­ta poderá ser fix­a­da em até 10 salários-mín­i­mos (§ 2o). boa hora, são ape­nadas de maneira mais gravosa, mas ain­da insu­fi­ciente, àquele que procu­ra dire­cionar o proces­so ao engano, à inver­dade e, como con­se­quên­cia lóg­i­ca, a uma decisão injus­ta, cau­san­do um dano social, con­trário, por­tan­to, à dig­nidade humana, aos fins soci­ais e às exigên­cias do bem comum.

Se a Ter­ra é o pal­co e somos nós os atores, na notáv­el visão shake­spear­i­ana, os inter­ve­nientes do proces­so, emb­o­ra pos­sam desem­pen­har vários papéis, têm o dev­er de diz­er a ver­dade, sob as penas ago­ra rig­orosas da lei.

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Artigo publicado na Revista de Processo (RePro) n. 251, janeiro de 2016, p. 113/126