Em comovente depoimento, o escritor Camilo Vannuchi, na forma de uma carta, presta merecida homenagem ao grande ator, dramaturgo e encenador brasileiro José Celso Martinez Corrêa, falecido de modo trágico, no dia seis de julho de 2023.
Vannuchi é jornalista, pesquisador, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, professor de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, colunista do portal UOL, escritor com ênfase em direitos humanos, autor da biografia Marisa Letícia Lula da Silva e do livro-reportagem “Vala de Perus, uma biografia”, finalista no Prêmio Jabuti de 2021.
Leia a seguir.
“Caro Zé Celso:
Laroyê! O Bixiga anoitece em compasso de espera. Lua cheia, rua vazia. Há algo em suspensão entre o Saracura e o Itororó, como no exato instante em que as luzes se apagam e um cajado bate três vezes no tablado antes de irromper o primeiro gesto – o primeiro acorde, a primeira fala. Poucos respiram. Ninguém arrisca se mexer na cadeira. Um rangido de molas seria um atrevimento. Um estalo na madeira, um despropósito. Você é capaz de imaginar?
Os jornais, Zé, contam que botaram teu sangue para filtrar. Vê se pode. Que vinho é esse que requer destilação? Frio de rachar em SamPã e você com ventilação mecânica. Ventilação y destilação y medicação y torcida. Invocação. Orixás e Fênix.
Porra, Zé, 53% do corpo queimado? Até ontem, era você quem tocava fogo em tudo. Carbonário, incendiava palco e plateia no sambódromo de Lina, o teatro-avenida premiadíssimo da Rua Jaceguai, e inflamava as estruturas: a arte, a cultura, a tradição, mas também a pólis e a política. Demolia em labaredas o que era velho, cafona, careta, reacionário, e preparava o novo, promovia a liberdade, anunciava a re-evolução.
Foi em 1966 que você encontrou o antigo Oficina em chamas. As investigações sobre o acidente-porra-nenhuma restaram inconclusivas, mas você sempre atribuiu a ação a grupos paramilitares de direita, possivelmente o mesmo comando de caça aos comunistas que depredaria o teatro Galpão e espancaria o elenco da peça Roda Viva dois anos depois. Como Fênix, o Oficina renasceu das cinzas no ano seguinte. E seria novamente refeito nos anos 1990.
Você também foi tantas vezes Fênix, Zé. Renasceu com o teatro redivivo. Foi preso e torturado em 1974 e ressurgiu após quatro anos de exílio em Portugal. Reergueu-se após o assassinato de seu irmão, Luís Antonio, estrangulado e atingido por mais de cem facadas, aos 37 anos, no Rio de Janeiro, às vésperas do Natal de 1987.
Reinventou-se ainda muitas vezes: quando um barão da mídia fez o possível e o impossível para cercar e implodir seu bunker-espetáculo, quando faltou dinheiro para o dia a dia e também para cobrir despesas de saúde, quando uma pandemia global se aliou ao presidente genocida para espalhar o terror na cidade dos homens.
“Resistir para re-existir”, foi você mesmo quem me ensinou, quando nos encontramos no palco da Casa de Portugal para gritar por democracia no auge do golpeachment.
Fênix, ave-teimosia, rogai por nós.
Amigo Zé Celso, faz dez anos que conversei com você pela primeira vez. Em 2013, coube a mim a honrosa tarefa de organizar um livro de retratos do Bob Sousa que seria publicado naquele mesmo ano pela Editora Unesp. Entre os muitos trabalhadores do teatro fotografados por ele, uma das imagens mais extraordinárias era sua, justamente a que fechava o livro – teatro de A a Z, o autor costumava brincar, referindo-se ao fato de que a primeira foto era de Antunes Filho, e a última, de Zé Celso. Um retrato de perfil, magnânimo, no qual se destacava um narigão adunco e proeminente. Combinei com Bob que colheria comentários de pelo menos dez dos retratados e tratei de te procurar.
Fomos nos reencontrar em 2016. Agora, eu era membro da Comissão da Verdade da Prefeitura de São Paulo e, por acaso, topei com Eduardo Suplicy, então secretário municipal de Direitos Humanos, na plateia do Oficina. Partiu dele a iniciativa de nos apresentar: você quis me contar sua história de perseguido, preso, exilado e anistiado; e eu quis pedir o teatro para fazermos ali uma entrega pública do relatório final. Não rolou, nem uma coisa nem a outra. Dois anos depois, fui coautor de um livro sobre o papel da mídia no golpe contra Dilma e, agora sim, tivemos a honra de apresentá-lo no Oficina. Semanas depois, Lula foi preso e articulamos a publicação de uma carta sua para o mais famoso inquilino da Polícia Federal. “Tua prisão e consequente retirada do pleito de 2018 foi o maior de todos os GOLPE$ q o Brazyl sofreu”, você escreveu. “Por isso me recuso a te chamar de EX-PRESIDENTE”.
Dali em diante, tornei-me somente público, um entusiasmado espectador, tanto na nova versão de Rei da Vela, cinquenta anos após a montagem original, quanto em Roda Viva, ambas reencenadas num tempo de guerra, um tempo sem sol.
É possível que eu tenha ajudado a viabilizar a encenação de Roda Viva, mas este é assunto para outra coluna.
Zé, você tem sido um dos caras mais coerentes que eu já conheci. Deliciosamente coerente. Lisergicamente coerente. Vibramos a cada batalha y a cada conquista, a cada vaquinha y a cada liminar. Voltamos a respirar em janeiro, Zé. Dias atrás, você se casou com o Marcelo! Que alegria. Como é bom te ver, aos 85, irrequieto, irreverente, imprescindível.
Volta logo, Zé Celso. Vem ser Fênix outra vez no Bixiga, no tablado, em SamPã.”