José Raimundo Gomes da Cruz
da Academia Paulista de Direito – Mestre e Doutor em Direito pela USP
Procurador de Justiça de São Paulo aposentado
O jornal O Estado de S. Paulo de 13/11/2008 trazia notícia oriunda do Iêmen: Menina de 10 anos recebe prêmio por obter divórcio. Acima da fotografia da garota, o texto começava informando: “A jovem iemenita Nujood Ali, de 10 anos, foi escolhida pela revista americana Glamour como uma das ‘mulheres do ano’ por ter conseguido, com a ajuda de uma advogada, ‘um divórcio histórico’. Nujood, que se casou no início do ano com um homem com o triplo de sua idade, sofria constantes abusos sexuais. No entanto, ao contrário da maioria de noivas crianças, Nujood procurou ajuda legal e conseguiu se divorciar, tornando-se um símbolo internacional dos direitos das mulheres.”
Em seguida, a matéria do jornal resumia o ambiente dos fatos: “De acordo com a tradição tribal do Iêmen, jovens a partir de 9 anos podem se casar, embora a Constituição do país não autorize casamentos antes dos 15 anos. No entanto, o antigo costume se impõe à lei com certa frequência.”
A notícia se encerrava com a premiação: “Nujood recebeu o prêmio em Nova York, juntamente com mulheres que tiveram destaque em outros segmentos – como moda, política e entretenimento. Entre as outras premiadas pela revista estão a senadora Hillary Clinton e a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice.”
Nosso atual Código Civil (Lei n. 10.406, de 10/1/2002), prevê a nulidade do negócio jurídico, quando o agente for pessoa absolutamente incapaz (por ex., os menores de dezesseis anos, cf. artigo 3º, inciso I, do mesmo Código). Em matéria de família, a regra do mesmo diploma legal, em seu artigo 1.517, é a capacidade para o casamento também aos dezesseis anos, para o homem e a mulher. A relevância do casamento é tal que dispõe de regras na própria Constituição Federal, em seu artigo 226, que prevê o divórcio como meio de dissolução do casamento civil (§ 6º). O nosso Código Civil dispõe sobre a nulidade do casamento, dando a impressão de que é apenas anulável o casamento “de quem não completou a idade mínima para casar” (artigo 1.550, inciso I).
O mesmo Código Civil, como o anterior, não regula a inexistência do negócio jurídico, nem, mais especificamente, do casamento civil. No entanto, um dos casos de casamento inexistente era aquele realizado entre pessoas do mesmo sexo. Ao tema, dediquei mais de um estudo (“Admissibilidade dos recursos e efetividade do processo civil”. Meu livro Estudos sobre o processo e a Constituição de 1988. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1993. pp. 187 e ss., especialmente pp. 189/194; “Pressupostos processuais, condições da ação e instrumentalidade do processo. Uma vida dedicada ao direito – Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, o editor dos juristas. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1995. pp. 608/612).
Qual a vantagem de indagar-se previamente se o ato jurídico é existente ou inexistente? Porque, neste caso, nem será exigível o processo judicial, com todo o seu rigor formal, para que se façam as meras correções de registro civil ou outras providências semelhantes e sempre caberá a impugnação do ato. A doutrina dava os exemplos do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou o casamento celebrado como mera farsa.
Nos dois estudos citados, lembro que o jurista italiano Enrico T. Liebman, que residiu e trabalhou no Brasil durante a segunda guerra mundial, mencionou passagem das Ordenações Filipinas reconhecendo a categoria do ato processual inexistente: “A sentença, que é por Direito nenhuma, nunca em tempo algum passa em cousa julgada, mas em todo tempo se pode opor contra ela, que é nenhuma e de nenhum efeito, e portanto não é necessário ser dela apelado. E é por Direito a sentença nenhuma, quando é dada sem a parte ser primeiro citada, ou é contra outra sentença já dada, ou foi dada por peita, ou preço, que o Juiz houve, ou por falsa prova, ou se eram muitos Juízes delegados, e alguns deram sentença sem os outros, ou se foi dada por Juiz incompetente em parte ou no todo, ou quando foi dada contra Direito expresso, assim como se o Juiz julgasse diretamente que o menor de 14 anos podia fazer testamento, ou podia ser testemunha, ou outra coisa semelhante, que seja contra nossas Ordenações ou contra Direito expresso.”
Usei o grifo final para a inclusão de outra hipótese evidente: ou se o Juiz considerasse existente o casamento de menina de dez anos, como pressuposto da concessão de divórcio a ela.
Alguém dirá que os absurdos são ainda maiores. Em face da Constituição do país da menina divorciada, de modo algum poderia prevalecer qualquer outra norma jurídica servindo de base a casamentos de criança de nove ou dez anos.
A Constituição brasileira, em seu artigo 227, que nenhuma outra norma jurídica nossa pode contrariar, prevê: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
O nosso Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13/7/1990) pormenoriza cada uma dessas garantias, sabendo-se que, pelo disposto em seu artigo 2º, aos doze anos a criança passa a ser adolescente, com os mesmos direitos, incluindo-se, no Capítulo II, Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade, o aspecto de “brincar, praticar esportes e divertir-se” (artigo 16, inciso IV).
Nosso Código Penal prevê crimes sexuais praticados mediante violência ou grave ameaça (artigos 213, 214 e 219). Pois seu artigo 224 dispõe: “Presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de 14 (catorze) anos”.
Não podemos, no nosso ordenamento jurídico, sequer entender que uma menina de dez anos possa ser considerada casada, pois sem tal estado civil ela não poderia divorciar-se, e que, em algum lugar do nosso tempo, ela receba prêmio pela obtenção do divórcio, com a maior publicidade possível. O artigo 17 do nosso citado Estatuto da Criança e Adolescente estabelece: “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.” Nenhum ato formal ou informal pode revogar tais direitos!