Espe­cial­mente escrito para a Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, no Dia Inter­na­cional para a Elim­i­nação da Dis­crim­i­nação Racial, o arti­go de Matilde Ribeiro, que foi Min­is­tra da Igual­dade Racial, durante o Gov­er­no Lula, e é Pro­fes­so­ra da Uni­ver­si­dade da Inte­gração Inter­na­cional da Luso­fo­nia Afro-Brasileira — Uni­lab, ref­ere a neces­si­dade de realizar a inter­seção entre raça/etnia, gênero e classe social, a par­tir das per­spec­ti­vas integradas da teo­ria, dos sen­ti­men­tos e das sub­je­tivi­dades, no cam­in­ho de luta e nego­ci­ação para garan­tir justiça e dire­itos raci­ais, para ampli­ar e con­quis­tar a cidada­nia.

O dia 21 de mraço foi escol­hi­do para mar­car o ativis­mo e cor­agem do movi­men­to pelo fim da dis­crim­i­nação, em 1966, pela ONU — Res­olução 2142 (XXI) —, três anos após a Declar­ação sobre a Elim­i­nação de Todas as For­mas de Dis­crim­i­nação Racial de sua Assem­bleia Ger­al, e seis anos após o Mas­sacre do bair­ro de Sharpeville, em Johanes­bur­go, África do Sul, em que o regime do apartheid reprim­iu man­i­fes­tação legí­ti­ma do povo con­tra o con­t­role de sua liber­dade e de seu dire­ito de ir e vir.

 

Leia a seguir o impor­tante arti­go.

 

É preciso ser contra todas as formas de discriminação e construir a eqüidade

 

Matilde Ribeiro

 

 

Ao tratar da inter­seção entre raça/etnia, gênero e classe social, é impor­tante avançar­mos nas anális­es teóri­c­as e políti­cas, mas tam­bém não deixar de fora os sen­ti­men­tos e sub­je­tivi­dades. Nesse caso, apre­sen­to a poe­sia que escrevi em 2021 — DONA DE SI E DO MUNDO:

 

Mul­her negra é dona de si,

mas não nasce com esse saber.

O mun­do lhe diz não,

parece que seu des­ti­no é sofreguidão

Sim… mul­her negra é dona de si,

e se não nasceu saben­do,

se a mesquin­hez humana lhe escon­deu esse seg­re­do,

deve ficar aten­ta aos acenos do ven­to,

que a levarão ao lugar de si própria.

 

Ser DONA DE SI E DO MUNDO, é uma con­strução nada fácil, seja indi­vid­ual ou cole­ti­va­mente. Por isso é impor­tante a atenção nos acon­tec­i­men­tos cotid­i­anos – no mês de março são comem­o­radas duas datas que pos­i­ti­vam situ­ações extrema­mente emblemáti­cas para a humanidade, emb­o­ra ela insista não se impor­tar. As situ­ações são as dis­crim­i­nações históri­c­as das mul­heres, dos negros, dos indí­ge­nas e tan­tos out­ros gru­pos. As datas são: 8 de março (Dia Inter­na­cional da Mul­her) e 21 de março (Dia Inter­na­cional Con­tra Todas as For­mas de Dis­crim­i­nação Racial), ambas insti­tuí­das pela ONU – Orga­ni­za­ção das Nações Uni­das! Mas não bas­ta ape­nas comem­o­rar, é necessário dar impul­sos con­cre­tos visan­do à igual­dade e justiça social e racial.

Infe­liz­mente, a rev­elia de for­mu­lações anun­ci­ado­ras de igual­dade e justiça, a sociedade repete suas fac­etas dis­crim­i­natórias, sendo impor­tante reforçar refer­ên­cias para impul­sos democráti­cos no Brasil e no mun­do. Nesse sen­ti­do, desta­ca-se em 21 de março de 1960, o mas­sacre em Joanes­bur­go, na África do Sul. Nes­sa ocasião, 20.000 pes­soas fazi­am um protesto con­tra a “Lei do Passe”, no perío­do do apartheid. Mes­mo tratan­do-se de uma man­i­fes­tação pací­fi­ca, a polí­cia abriu fogo sobre a mul­ti­dão desar­ma­da resul­tan­do em 69 mor­tos e 186 feri­dos. Em respos­ta, como ati­tude con­tra­ditória e denún­cia a este mas­sacre a – ONU – insti­tu­iu 21 de março o Dia Inter­na­cional de Luta con­tra a Dis­crim­i­nação Racial.

E, por falar em impul­sos de lutas e mudanças conc­re­tas, as comem­o­rações inspi­ram para revisões da história brasileira e das local­i­dades, do pon­to de vista racial. Hoje como morado­ra de Fortaleza/CE, vou grad­ual­mente me envol­ven­do com a história do Esta­do. Ao bus­car aprox­i­mações, deparo-me com a existên­cia de per­son­agens pouco recon­heci­dos: Pre­ta Tia Simoa, que foi per­son­agem fun­da­men­tal para a abolição da escrav­iza­ção de negros, e, Fran­cis­co José do Nasci­men­to o “Dragão do Mar” um práti­co da bar­ra que virou líder dos jan­gadeiros for­t­alezens­es e tam­bém nacional.

É impor­tante obser­var que as histórias de lutas e con­quis­tas ocor­rem há sécu­los. No entan­to, nos­so país é prat­i­cante do epis­temicí­dio (não recon­hec­i­men­to de pes­soas e fatos) moti­va­do pela infe­ri­or­iza­ção prove­niente do racis­mo e do machis­mo, que tor­nam as pes­soas negras, sub­or­di­nadas às bran­cas, moti­vadas pela visão de tri­un­fo dos europeus.

Ao retomar as histórias das abolições – em Redenção/CE (em 1884, como a primeira provín­cia a ofi­cializar o fim da escravidão) e a Lei Áurea (em 1888), ver­i­fi­camos que pas­sa­dos mais de 130 anos depois das abolições, a pop­u­lação negra ain­da se encon­tra dis­tante da con­quista de dire­itos cidadãos e da vivên­cia com equidade.

Ativis­tas e int­elec­tu­ais negras/os e brancas/os com­pro­meti­dos com o enfrenta­men­to às desigual­dades, ali­men­tam ao lon­go da história denun­cias a esse desca­so. Mas só tiver­am suas vozes ecoadas tar­dia­mente, ape­nas a par­tir do final dos anos 1980, quan­do são ini­ci­adas algu­mas exper­iên­cias de cri­ação de órgãos de igual­dade racial. A primeira exper­iên­cia estad­ual foi no Rio de Janeiro, em 1991, com a SEDEPRON — Sec­re­taria Extra­ordinária de Defe­sa e Pro­moção das Pop­u­lações Negras, no Gov­er­no Leonel Brizo­la, ten­do como Secretário, o líder Abdias do Nasci­men­to.

Mes­mo com a vivên­cia de con­tradições políti­cas quan­to ao não recon­hec­i­men­to e val­oriza­ção da existên­cia de negros por parte da sociedade, o Gov­er­no do Esta­do do Ceará tem nos últi­mos tem­pos, desen­volvi­do exper­iên­cias de ações voltadas à igual­dade racial, como a “Cam­pan­ha Ceará sem Racis­mo, Respeite Min­ha História, Respeite Min­ha Diver­si­dade”, a par­tir de 2021 pela Coor­de­nação Espe­cial Políti­cas Públi­cas para a Pro­moção da Igual­dade Racial. E, ini­cia a gestão em 2023, crian­do a DECRIN — Del­e­ga­cia de Repressão aos Crimes por Dis­crim­i­nação Racial, Reli­giosa ou Ori­en­tação Sex­u­al da Polí­cia Civ­il do Ceará (PC-CE) e a SEIR — Sec­re­taria da Igual­dade Racial do Ceará.

Em âmbito Fed­er­al, nas últi­mas décadas, a respostas mais efe­ti­vas, foram a cri­ação – em 1988, da FCP – Fun­dação Cul­tur­al Pal­mares, e, em 2003, a SEPPIR Sec­re­taria Espe­cial de Políti­ca de Pro­moção da Igual­dade Racial. Em 2023, a exper­iên­cia da SEPPIR, que foi trans­for­ma­da no Min­istério da Igual­dade Racial (na ter­ceira gestão do Pres­i­dente Luís Iná­cio LULA da Sil­va). É impor­tante, no entan­to, a com­preen­são de que a cri­ação da Políti­ca de Igual­dade Racial, deve con­sid­er­ar a luta históri­ca desen­volvi­da pelo Movi­men­to Negro e orga­ni­za­ção de mul­heres negras, visan­do à inclusão social, políti­ca e econômi­ca da pop­u­lação negra.  

A cri­ação dess­es órgãos, pos­si­bili­ta a real­iza­ção de muitas ações propos­i­ti­vas foram real­izadas, fazen­do girar o vetor, no sen­ti­do favoráv­el, ao com­bate às dis­crim­i­nações e ao racis­mo, mes­mo que os perío­dos das gestões gov­er­na­men­tais sejam insu­fi­cientes para garan­tir respostas mais abrangentes, diante das maze­las históri­c­as do machis­mo, racis­mo, LGBT­fo­bia entre out­ras tan­tas for­mas de dis­crim­i­nações e exclusões. As bases estru­tu­rais para a existên­cia dess­es órgãos foram a Con­venção Inter­na­cional sobre Elim­i­nação de Todas as For­mas de Dis­crim­i­nação, o Pro­gra­ma Brasil sem Racis­mo, a Declar­ação e Plano de Ação de Dur­ban, e, mais recen­te­mente, a Declar­ação Inter­amer­i­cana Con­tra Todas as For­mas de Dis­crim­i­nação.

Assim, há 20 anos, ini­ciou-se um novo ciclo na admin­is­tração públi­ca brasileira, no que diz respeito às políti­cas de pro­moção da igual­dade racial, e, a relação com os min­istérios, visan­do a garan­tia da trans­ver­sal­i­dade na con­strução das políti­cas públi­cas. Ocor­reu a pro­mul­gação de leis como a da obri­ga­to­riedade do ensi­no da história e cul­tura afro-brasileira no ensi­no públi­co e pri­va­do (10.639/03); o Progra­ma Uni­ver­si­dade para Todos — Prouni (con­cessão de bol­sas a alunos pobres, indí­ge­nas e negros — 11.096/05); as Cotas nas Uni­ver­si­dades Públi­cas (aces­so a alunos pobres, indí­ge­nas e negros — 12.711/12); a PEC das Domés­ti­cas (66/2012) e Lei Com­ple­men­tar 150 referindo-se a con­quista de jor­na­da de tra­bal­ho de 8 horas, licença e salário mater­nidade, aux­ilio doença, aposen­ta­do­ria por invalidez, idade e tem­po de con­tribuição, aux­ilio aci­dente de tra­bal­ho, pen­são por morte entre out­ras. Desta­cam-se, ain­da, as ini­cia­ti­vas com relação ao Con­ti­nente Africano, sendo impul­sion­a­da em várias áreas da políti­ca públi­ca.

Pas­samos por um árduo perío­do de desmonte das políti­cas, com os gov­er­nos dos pres­i­dentes Michel Temer e Jair Bol­sonaro, entre 2016 e 2022. Porém, a com­preen­são de que a políti­ca faz parte de uma real­i­dade dinâmi­ca, fez com que a sociedade brasileira, moti­va­da pelos movi­men­tos soci­ais com caráter pro­gres­sista e democráti­co,  bus­casse ener­gias para lutas e enfrenta­men­tos com os setores con­ser­vadores e de dire­i­ta! Com isso, foi reforça­do o esper­ançar, e a crença na importân­cia do reforço às lutas cotid­i­anas para garan­tia de dire­itos democráti­cos e justiça social, for­t­ale­cen­do a utopia de ampli­ação das con­quis­tas, e, aci­ma de tudo, inves­ti­men­to em mudanças estru­tu­rais.

Ess­es exem­p­los nos fazem com­preen­der a importân­cia de que os gov­er­nos locais e o Fed­er­al sejam proa­t­ivos e respon­sáveis em relação à inclusão sócio racial, porém é extrema­mente necessário o recon­hec­i­men­to de que o Movi­men­to Negro e as orga­ni­za­ções de Mul­heres Negras pro­tag­on­i­zam his­tori­ca­mente a luta antir­racista e fem­i­nista. E, ain­da, a expec­ta­ti­va é de que seja man­ti­do e ampli­a­do o inves­ti­men­to nas metodolo­gias e práti­cas de par­tic­i­pação social e de mon­i­tora­men­to e con­t­role das políti­cas públi­cas, ressaltan­do não haver exe­cução, sem orça­men­to públi­co.

Não há dúvi­da que o cam­in­ho da luta e nego­ci­ação para garan­tia de justiça e dire­itos raci­ais é o que ali­men­ta as mudanças e con­quista de cidada­nia. Atuan­do nesse sen­ti­do, estare­mos fazen­do valer os ensi­na­men­tos de Steve Biko (ativista Sul-Africano, mor­to na luta con­tra o apartheid):

 

ou você luta, ou está mor­to!