“Dê-me um pon­to de apoio, e erguerei o mun­do” Arquimedes

 

O arti­go a seguir, de auto­ria de Luiz Felipe Proost de SouzaEngen­heiro Civ­il, Admin­istrador, Mestre em Sanea­men­to Ambi­en­tal, Pro­fes­sor Uni­ver­sitário, Per­i­to Judi­cial, Mem­bro dos Con­sel­hos Delib­er­a­ti­vo e Con­sul­ti­vo do Insti­tu­to de Engen­haria de São Paulo, con­for­ma inter­es­sante reflexão sobre a relação entre a engen­haria e a justiça, envol­ven­do a expressão da importân­cia da perí­cia judi­cial.

Vale a leitu­ra.

 

 

ENGENHARIA E JUSTIÇA

Luiz Felipe Proost de Souza

 Noutro dia, refletindo sobre a ativi­dade profis­sion­al que há décadas exerço — a denom­i­na­da labu­ta forense -, assim como muitos out­ros cole­gas que a abraçaram des­de épocas pretéri­tas, observei que cri­amos e fir­mamos uma nobre ativi­dade profis­sion­al que, nos dias atu­ais, podemos cat­e­gori­ca­mente afir­mar que é uma espe­cial­iza­ção. Porém, esta ain­da não é recon­heci­da em nos­sos cur­rícu­los de for­mação profis­sion­al em engen­haria, como já existe em out­ras áreas, a engen­haria legal. Se for­mos pesquis­ar sua existên­cia no tem­po, vamos até nos sur­preen­der, pois ela já existe des­de as mais remo­tas épocas, des­de quan­do surgiu a noção de Justiça e de sua Orde­nação.

Uma grande parte das con­tro­vér­sias envolve questões de ordem tec­nológ­i­ca. Por­tan­to, como o ver­sa­do na ciên­cia do dire­ito não é con­hece­dor de todas as artes, neces­si­ta do espe­cial­ista no assun­to. Aí está o princí­pio da sim­biose do dire­ito com a engen­haria, des­de as mais anti­gas Orde­nações Reais e Códi­gos. Esta sim­biose nasceu com o próprio princí­pio de Nação e de Esta­do. Assim, vamos para o Códi­go de Hamurábi, ori­un­do da Mesopotâmia, cir­ca 1.772 a.C., para as Leis Romanas e no âma­go de seu dire­ito, para as Leis Reais, nas anti­gas Orde­nações Lusi­tanas, que inspi­raram os nos­sos Códi­gos.

Nestes todos, surgem  neces­si­dades peri­ci­ais e de avali­ações de bens tangíveis e intangíveis, elab­o­radas por per­i­tos ver­sa­dos nas mais diver­sas téc­ni­cas. No caso de nos­sa arte, a de pro­je­tar, de con­stru­ir, de avaliar, de medir ter­ras, de lidar com o exer­cí­cio agropas­to­ril, entre out­ras ativi­dades. Logo, mod­er­na­mente, inter­vêm  per­i­tos da arquite­tu­ra, da engen­haria e da agrono­mia,  entre out­ras, onde pos­sa haver divergên­cias tec­nológ­i­cas.

Com o adven­to da Rev­olução Indus­tri­al e do Esta­do mod­er­no, hou­ve maior imple­men­tação e acel­er­ação da nobre ativi­dade peri­cial, como con­se­quên­cia de uma nova relação social, do avanço de uma sociedade cap­i­tal­ista e de con­sumo que pres­sio­nou o desen­volvi­men­to da tec­nolo­gia, geran­do con­fli­tos e con­tro­vér­sias nun­ca exper­i­men­ta­dos. É nes­ta fase históri­ca que surge e se desen­volve a engen­haria mod­er­na, como hoje a con­hece­mos. Ao mes­mo tem­po, a ciên­cia do dire­ito tam­bém se adap­ta e evolui para esta nova ordem social, para dirim­ir e paci­ficar tais con­fli­tos. Na atu­al­i­dade, temos um novo mun­do, o vir­tu­al, trazi­do pelo avanço tec­nológi­co, onde surgem novas con­tro­vér­sias, e a ciên­cia do dire­ito procu­ra como resolvê-las, uma vez que não mais esta­mos lim­i­ta­dos a fron­teiras, e sim esta­mos glob­al­iza­dos.

A engen­haria, aux­il­ian­do a justiça, par­tic­i­pan­do do faz­er Justiça, con­sti­tui a engen­haria legal a serviço do Esta­do, uma vez que a função do Esta­do é a de garan­tir ao cidadão a segu­rança e a Justiça.  Há pouco tem­po, porém, ain­da não era evi­den­ci­a­da nos meios acadêmi­cos.

O porquê da neces­si­dade de uma dis­ci­plina cur­ric­u­lar? Porque o engen­heiro deve ter ciên­cia per­fei­ta dos lim­ites de suas respon­s­abil­i­dades civis e crim­i­nais que envolvem a Justiça do Esta­do e não só da éti­ca, que cabe aos con­sel­hos profis­sion­ais jul­gar.

A gênese das perí­cias judi­ci­ais em nos­sos Códi­gos nos remete às remo­tas Orde­nações Afon­si­nas, Manueli­nas e Fil­ip­inas. A par­tir do ano de 1446 já se pre­via, por exem­p­lo, a perí­cia avali­atória fei­ta por per­i­tos ver­sa­dos na téc­ni­ca de avaliar. Em  primeira instân­cia, atu­avam  três pro­fun­dos con­hece­dores da téc­ni­ca avali­atória; em  caso de divergên­cias, lev­a­va-se para uma segun­da instân­cia com  três novos per­i­tos, ago­ra não só con­hece­dores da téc­ni­ca, mas tam­bém con­hece­dores das Leis.  Por últi­mo, caso ain­da per­sis­tisse a con­tro­vér­sia, o caso seguia para uma ter­ceira instân­cia com três novos per­i­tos, sendo que estes seri­am tão somente con­hece­dores das Leis.

 Aí temos uma fusão da téc­ni­ca com o dire­ito para se faz­er Justiça, cam­in­han­do de mãos dadas como em  ver­dadeira sim­biose, servin­do ao cidadão. Sem um dos ele­men­tos, com o  out­ro não se faria a cor­re­ta Justiça. Logo, um com­ple­tan­do o out­ro. Como faríamos valer o dire­ito do cidadão sem as medi­das téc­ni­cas pre­cisas? Como se faria a Justiça sem a apli­cação das Leis de for­ma jus­ta? No mun­do ide­al, o que alme­jamos é que tudo seja  jus­to e per­feito, como o  Cri­ador o fez.

Obser­va­mos que este princí­pio das anti­gas Orde­nações não mudou muito nos dias atu­ais, pois temos na primeira instân­cia três profis­sion­ais con­hece­dores das tec­nolo­gias, que são o per­i­to ofi­cial e dois assis­tentes, cuja sen­tença é dada por um con­hece­dor das Leis, o juiz, apoia­do por dois advo­ga­dos, e todos apoia­dos pelos téc­ni­cos.

No caso de uma apelação para a segun­da instân­cia, temos três desem­bar­gadores, apoia­dos pelos advo­ga­dos das partes, pelos téc­ni­cos com pos­si­bil­i­dade de nomeação de um segun­do per­i­to ofi­cial e de dois novos assis­tentes.

Por fim, ain­da temos uma ter­ceira instân­cia, con­forme o nív­el da matéria, atuan­do  três min­istros, dos advo­ga­dos das partes, todos estes con­hece­dores das Leis.

Para elab­o­rar uma perí­cia em que se bus­ca o nexo causal, que é o proces­so inves­ti­gatório do efeito, de sua causa e de sua origem para se apu­rar as respon­s­abil­i­dades, exige-se muito de um con­hec­i­men­to e de uma exper­iên­cia do proces­so inves­ti­gatório e legal, ali­a­dos ao con­hec­i­men­to tec­nológi­co. Muitos acred­i­tam, de for­ma sim­plória, que tão somente o con­hec­i­men­to tec­nológi­co bas­ta. Ledo engano. O proces­so inves­ti­gatório sobrepõe-se ao tec­nológi­co, uma vez que temos de chegar às causas e, muitas vezes, ir à origem, não só para cor­ri­gir os pro­ced­i­men­tos da apli­cação tec­nológ­i­ca que ten­ha lev­a­do a uma deter­mi­na­da anom­alia, mas sim, para apu­ração das respon­s­abil­i­dades. O per­i­to deve  se valer de todos os meios de provas admi­ti­das no dire­ito, isto é, da pre­sunção, da con­fis­são, da teste­munhal, da doc­u­men­tal e, por fim, adi­ciona­do ao seu con­hec­i­men­to cien­tifi­co, ele elab­o­ra e con­sol­i­da a mais com­ple­ta das provas, que é a peri­cial. Esta pro­va, con­sub­stan­ci­a­da em um lau­do, dev­erá ser redigi­da de for­ma fun­da­men­ta­da, obje­ti­va e con­clu­si­va. Deve-se uti­lizar de uma redação clara e inteligív­el para a for­mação da con­vicção do mag­istra­do.

A con­clusão de uma perí­cia dev­erá pos­si­bil­i­tar de for­ma fun­da­men­ta­da tec­no­logi­ca­mente a obtenção das respon­s­abil­i­dades téc­ni­cas do nexo causal que se bus­ca. Muitas vezes esta con­clusão não é a con­de­nação dada por uma dou­ta sen­tença, uma vez que esta­mos diante de uma sim­biose da tec­nolo­gia com o dire­ito, ou mel­hor, das ciên­cias exatas com as humanas. Out­ros fatores poderão se sobre­por a tec­nolo­gia, ful­cra­dos pela out­ra ciên­cia. Aqui, engen­haria e dire­ito não são antagôni­cos, pois o que se bus­ca é faz­er Justiça. A engen­haria aux­il­ia, porém o dire­ito dirá o que é de Justiça.

Des­ta for­ma, obser­va­mos que o nobre encar­go de um per­i­to judi­cial, é o de unir a engen­haria à justiça, para que esta se faça. Não se pode errar. A perí­cia exer­ci­da com abne­gação, impar­cial­i­dade e moti­va­da pela bus­ca da ver­dade tec­nológ­i­ca, vem enrique­cer a engen­haria como uma ativi­dade nobre e de Esta­do.