Em Breves Artigos, Alfredo Attié, Presidente da Academia Paulista de Direito e Titular da Cadeira San Tiago Dantas — em que sucede a Goffredo da Silva Telles Jr — comenta o Onze de Agosto de 2022, suas Cartas, e o que ainda há a fazer para a constituição democrática brasileira.
Leia a seguir.
Manhã Redentora
Alfredo Attié
Valeu a pena esperar quarenta e cinco anos para testemunhar a renovação do pacto que direito e justiça possuem com o povo brasileiro. Salão Nobre, Pátio das Arcadas e Largo São Francisco foram novamente cenários do evento que pode mudar o modo como enxergamos e praticamos a política.
O velho pacto, instaurado em 1977, representado na Carta aos Brasileiros, desenhava essa relação importante entre os que estudam, ensinam e praticam o direito com a sociedade, segundo o qual o Estado de Direito se faz expressão do desejo democrático, contra o regime ditatorial. Sem democracia, não há justiça, repetiram os juristas de hoje, nas duas novas Cartas.
Hoje, deu-se a redenção da Faculdade de Direito, que homenageou tardiamente Goffredo Telles Jr, ao patrocinar os eventos e se comprometer com a guarda e difusão das Cartas. Em 77, a Faculdade, envolvida em suas contradições, não apoiou o movimento. Na ditadura, perdeu professores e estudantes, presos, torturados, cassados, exilados, assassinados. Concedeu também quem colaborasse com o regime. A Carta aos Brasileiros não foi subscrita pela instituição. À cerimônia de celebração do Sesquicentenário dos Cursos Jurídicos não estava convidado Goffredo, que acabou por entrar no Salão Nobre, graças ao gesto firme de estudantes. Goffredo acenou aos que o aclamavam, na plateia: “esta Faculdade não se isola em seus muros. Vai à rua, para gritar a liberdade!” Para os estudantes, o povo estava com o saudoso Professor. Estudantes, lá, a comunidade acadêmica e a instituição, cá. A Faculdade pagou a dívida do isolamento, de ontem, por seu engajamento, hoje.
As novas Cartas são passos valorosos em direção ao resgate da memória. Nos três cenários, gerações confraternizaram. Os subscritores da Carta original, claro, mas também inúmeras pessoas que viveram vários movimentos do povo brasileiro, em sua difícil luta pela construção democrática. Eram os jovens de 1968, antes até, os que lutaram para evitar o golpe de 1964, os que combateram a ditadura do Estado Novo, os que se empenharam no abolicionismo; eram os jovens de 1977; o grupo das Diretas Já!, de 1983; os que exigiram a constituinte de 1986/1987; os jovens do impeachment do primeiro presidente eleito e os que resistiram contra o segundo impeachment; os que batalharam contra a carestia, os que desencadearam a Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria, em 1993; os que defenderam os presos políticos; os que sofreram as agruras da ditadura; os que choraram seus desaparecidos da violência política; os que perderam parentes e amigos na pandemia; os que ocuparam as escolas, pediram passe livre; lutaram contra cada um dos golpes e contra as ameaças e a desnaturação da Constituição Cidadã.
Volta ao passado, na lembrança dessas e de tantas outras lutas, contudo recordação de que há um futuro de muitas lutas, na constituição democrática. O Brasil carrega muitas dívidas e, para não as esquecer, teve, nas tribunas do Largo, do Pátio e do Salão, a voz de trabalhadores e trabalhadoras, estudantes, líderes de movimentos negros, indígenas, periféricos, de gênero.
As contradições das lutas, sobretudo pelos direitos sociais, cujo fim foi buscado incansavelmente, pelo regime anticonstitucional, nas reformas trabalhista e previdenciária, na extinção de políticas públicas obrigatórias, ficaram suspensas na magia do evento, no qual classes antagônicas deram-se as mãos. Todas as vozes, no mesmo espaço, unidas pelo comprometimento com a democracia, a lei, os direitos e deveres, as políticas públicas constitucionais. Sem medo de expressar sonhos e projetos, confrontando-os com sonhos e projetos diferentes. A igualdade, enfim, que se transforma em liberdade, une e organiza um possível processo solidário, nesse Onze de Agosto de redenção, que foi ao passado, ergueu o véu do que lá fizemos e desejamos, para dizer ao futuro que esses feitos e desejos ainda podem se realizar.