Um jurista exemplar

Alfredo Attié

Wal­ter Cenevi­va, escritor, jor­nal­ista, tradu­tor, ecol­o­gista, pro­fes­sor e advo­ga­do, ape­sar de sua con­stante prudên­cia no tra­to diário do dire­ito, resul­ta­do de sua refi­na­da edu­cação, bus­cou sem­pre o novo e as pos­si­bil­i­dades de ren­o­var a exper­iên­cia da justiça.

Admi­ra­do e respeita­do pela comu­nidade jurídi­ca brasileira, lecio­nou na Pon­tif­í­cia Uni­ver­si­dade Católi­ca de São Paulo, advo­gou com zelo exem­plar e se dedi­cou inten­sa­mente à família, orgul­han­do-se, sem­pre, da capaci­dade e dos feitos e ditos de sua mul­her, suas fil­has e seus filhos.

Autor de Comen­tários à Lei de Reg­istros Públi­cos, livro que teve inúmeras edições, resul­ta­do de seu tra­bal­ho de acres­cen­tar, atu­alizar seu tra­bal­ho, per­sis­tente na obser­vação dos detal­h­es da dout­ri­na e da práti­ca desse ramo tão ári­do do cam­po jurídi­co, ain­da pub­li­cou um Cur­so de Dire­ito Con­sti­tu­cional, entre out­ras obras.

Tive a feli­ci­dade de o con­hecer — já ledor de sua col­u­na Letras Jurídi­cas, na Fol­ha de S.Paulo, na qual pacien­te­mente comen­ta­va pub­li­cações de livros dos vários ramos do dire­ito, brasileiras e estrangeiras (sobre­tu­do as escritas de lín­gua ingle­sa, idioma que domi­na­va não como lín­gua mater­na, mas como lín­gua de amizade, em sua con­vivên­cia de infân­cia com os ami­gos norte-amer­i­canos) —, quan­do, a con­vite do então primeiro Dire­tor da recém cri­a­da Esco­la Paulista da Mag­i­s­tratu­ra, desem­bar­gador Weiss de Andrade, veio pro­ferir, a nós, jovens juízes e juízas, que acabavam de ser aprova­dos no con­cur­so de ingres­so na car­reira, uma con­fer­ên­cia tão sim­páti­ca quan­to pre­cisa, sobre o rela­ciona­men­to entre mag­istra­dos e advogados.

Poucos anos depois, ten­do havi­do a opor­tu­nidade do reen­con­tro, convidei‑o a pro­ferir uma con­fer­ên­cia em cur­so que real­iza­va, no Vale do Paraí­ba, para a difusão dos insti­tu­tos da arbi­tragem e da medi­ação entre empresário, tra­bal­hado­ras e tra­bal­hadores e profis­sion­ais de várias áreas, empen­hado que eu esta­va em faz­er com que os insti­tu­tos se implan­tassem, de modo éti­co e efi­caz, na cul­tura jurídi­ca brasileira. Cenevi­va aceitou ime­di­ata­mente o desafio, não deixan­do de elo­giar a ini­cia­ti­va do jovem mag­istra­do, em época em que o judi­ciário se mostra­va aves­so a ess­es meios de solução de con­fli­tos. Depois, aque­le que se foi tor­nan­do, a pouco e pouco, um queri­do ami­go, con­vi­dou-me a expor o tema em encon­tro que real­iza­va men­salmente com profis­sion­ais jurídi­cos para dis­cu­tir temas de inter­esse públi­co e atu­al, quan­do pude ret­ribuir sua gen­tileza. Lem­bro-me de que, na época, tive a feli­ci­dade rara de intro­duzir nas pre­ocu­pações de out­ras pes­soas que admi­ra­va, como o então desem­bar­gador Kazuo Watan­abe, o con­hec­i­men­to dess­es meios inteligentes de não somente solu­cionar con­tro­vér­sias, mas, tam­bém, de aprox­i­mar as partes numa relação mais humana e pací­fi­ca, superan­do o for­mal­is­mo forense.

A con­fer­ên­cia de Cenevi­va se deu numa noite de sex­ta-feira. No tem­po pre­vis­to — ele fazia questão de cronome­trar e cumprir rig­orosa­mente o tem­po que lhe era deferi­do —, mais uma aula sim­páti­ca e pre­cisa. Em segui­da, após ouvir aten­ta­mente a inter­venção de alu­nas e alunos, e, com paciên­cia, respon­der a todas as questões que lhe foram apre­sen­tadas, acompanhei‑o até sua camionete, na qual par­tiu para a sua queri­da pro­priedade em São Luiz do Paraitin­ga, na qual real­i­zou tra­bal­ho exem­plar de plan­tio de espé­cies nativas.

Out­ros tan­tos encon­tros se der­am — Wal­ter Cenevi­va tin­ha a car­ac­terís­ti­ca da ded­i­cação ple­na aos ami­gos e me aju­dou em pelo menos dois momen­tos del­i­ca­dos de min­ha vida profis­sion­al e pes­soal (de maneira pater­nal, ele com­preen­dia bem as difi­cul­dades de alguém que tin­ha a mente volta­da para a vida int­elec­tu­al e se olvi­da­va das questões conc­re­tas da existência).

Tradu­tor — e ino­vador nas traduções — das anti­gas revis­tas de histórias em quadrin­hos da Dis­ney, em cujas pági­nas, graças à hom­e­nagem pre­coce de seu com­pan­heiro de tra­bal­ho, apare­ceu, pela primeira vez, a pla­ca que enun­cia­ria a ativi­dade a que se dedi­caria com plen­i­tude de suas capaci­dades, e com inten­so praz­er, da advo­ca­cia, o ADVOGADO WALTER CENEVIVA rece­be­ria, ain­da, em pleno Palá­cio dos Ban­deirantes, a medal­ha Barão de Ramal­ho, em sua edição inaugural.

Claro que há out­ras histórias que gostaria de con­tar, mas não fal­tará tem­po para as repe­tir, sem­pre, como modo de apre­sen­tar esse jurista exem­plar às jovens ger­ações que, pen­so, seri­am as ver­dadeiras des­ti­natárias de suas lições e de seus exemplos.

Guar­do a memória dessa amizade, que teve um sen­ti­do de for­mação em min­ha vida e na de min­ha família.

Cer­ta fei­ta, presenteei‑o com um exem­plar de uma revista em quadrin­hos de min­ha abso­lu­ta predileção. Lá esta­va a his­to­ri­eta que sig­nifi­ca­va muito para a min­ha vida, em sua sim­pli­ci­dade e pro­fun­di­dade filosó­fi­ca. Faço repro­duzi-la ao final deste brevís­si­mo tex­to. Antes, gostaria ape­nas de acres­cen­tar que o pre­sente remem­o­ra­va uma inter­pre­tação que ele empreen­deu de um quadro que esta­va em seu escritório, na Praça João Mendes, na parede que ladea­va sua mesa de tra­bal­ho. Era um sim­ples aviãoz­in­ho azul. Muitas vezes, nós nos sen­ti­mos lança­dos aos céus de maneira inusi­ta­da, como aque­le aero­plano. Mas, dizia ele, era uma pro­va de que tín­hamos plenos poderes de tomar em nos­sas mãos o des­ti­no do voo.

Deixo, aqui, um car­in­hoso e afe­tu­oso, não der­radeiro, abraço ao Pro­fes­sor Wal­ter, como gosta­va de o chamar — todo mun­do prefe­ria o sonoro “Doutor”, que sim­boliza­va bem o sta­tus de sua profis­são, que ele fez nobre.

 

“It’s a magical world, Hobbes, ol’ buddy… let’s go exploring!”

(Bill Water­son. Calvin & Hobbes. 2002)