Em impor­tante arti­go, o Acadêmi­co Tit­u­lar da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito Kiyoshi Hara­da, Pro­fes­sor, Advo­ga­do e atu­al Pres­i­dente do Insti­tu­to Brasileiro de Estu­dos de Dire­ito Admin­is­tra­ti­vo, Finan­ceiro e Trib­utário, anal­isou o teor e a con­sti­tu­cional­i­dade da Pro­pos­ta de Emen­da Con­sti­tu­cional rel­a­ti­va aos Pre­catórios.

Pub­li­ca­do orig­i­nal­mente pelo infor­ma­ti­vo jurídi­co Migal­has — veja, aqui — o tex­to, que tem po títu­lo “A Des­façatez e Imoral­i­dade da PEC dos Pre­catórios,” pode ser lido a seguir.

 

“Poucos têm a exa­ta noção da gri­tante imoral­i­dade da chama­da PEC dos Pre­catórios, a PEC 23/21, e da inusi­ta­da des­façatez do gov­er­no e do Con­gres­so Nacional.

Aparente­mente, essa PEC visa pos­si­bil­i­tar o paga­men­to R$ 400,00 a títu­lo de Auxílio Brasil (Bol­sa Família) para cer­ca de 20 mil­hões de pes­soas pobres, o que daria uma grande vis­i­bil­i­dade à ação do gov­er­no no ano preeleitoral.

O gov­er­nante e os con­gres­sis­tas, dessa for­ma, cresce­ri­am aos olhos do eleitora­do, pois, o dis­cur­so da inclusão social tem sido uma ban­deira pop­ulista dos últi­mos tem­pos, den­tro e fora do País. Esclareça-se que nada temos con­tra a políti­ca de inclusão social, des­de que não implique sac­ri­fí­cios de legí­ti­mos cre­dores.

Então, a bem da ver­dade, é pre­ciso que se explique o que sig­nifi­ca essa PEC 23/21, que pre­vê a moratória dos pre­catórios.

O que é pre­catório judi­cial?

R: É ordem judi­cial de paga­men­to, em cumpri­men­to de decisão judi­cial con­de­natória tran­si­ta­da em jul­ga­do.

Como é feito esse paga­men­to?

R: Ao final da lon­ga trami­tação do proces­so judi­cial a decisão con­de­natória da Fazen­da, no caso, da União, tran­si­ta em jul­ga­do, isto é, não mais cabe qual­quer recur­so.

Então, o val­or da con­de­nação é apu­ra­do por meio de liq­uidação de sen­tença que cal­cu­la o val­or do prin­ci­pal, acresci­do de juros e cor­reção mon­etária; de despe­sas proces­suais desem­bol­sadas pelo autor da ação; de despe­sas peri­ci­ais quan­do hou­ver; e da ver­ba hon­orária sucum­ben­cial.

O val­or total assim apu­ra­do é req­ui­si­ta­do por ofí­cio do Pres­i­dente do Tri­bunal que pro­feriu a decisão exe­quen­da.

Esse ofí­cio req­ui­sitório é denom­i­na­do de pre­catório judi­cial. Des­de que ele seja entregue à Fazen­da deve­do­ra (no caso, União) até o dia 1º de jul­ho tem o seu val­or incluí­do no orça­men­to anu­al do exer­cí­cio seguinte, para paga­men­to no perío­do de 1º de janeiro até 31 de dezem­bro.

Se o pre­catório for entregue fora do perío­do req­ui­si­to­r­i­al, isto é, depois do dia 1º de jul­ho, por exem­p­lo, no dia 2 de jul­ho de 2021, o seu val­or somente será incluí­do no orça­men­to sub­se­quente ao seguinte, isto é, no exer­cí­cio de 2023, para paga­men­to no perío­do de janeiro a dezem­bro de 2023. Nota-se, por­tan­to, que por uma difer­ença de ape­nas um dia, o pra­zo de paga­men­to de pre­catório é poster­ga­do no mín­i­mo em 18 meses. No exem­p­lo dado, se o pre­catório for pago no últi­mo dia do pra­zo (31–12-2023), o paga­men­to estará sendo feito depois de decor­ri­dos 30 meses, a con­tar da data em que o pre­catório foi rece­bido pela enti­dade políti­ca deve­do­ra.

Dev­i­do a morosi­dade do pro­ced­i­men­to admin­is­tra­ti­vo para quitação de pre­catórios muitos cre­dores acabam mor­ren­do, sem perce­ber o crédi­to obti­do à dura pena. Isso quan­do o deman­dante idoso não falece no cur­so do lon­go proces­so de con­hec­i­men­to de 5 a 6 anos em média (juí­zo de primeira instân­cia, Tri­bunal de Justiça/Tribunal Region­al Fed­er­al e STJ/STF), ou no cur­so da apu­ração do mon­tante do crédi­to segui­da de expe­dição de pre­catório, um pro­ced­i­men­to que deman­da cer­ca de um ano.

Nos âmbitos estad­ual e munic­i­pal mil­hares de pre­ca­toris­tas já mor­reram na inter­mináv­el fila de pre­catórios que começou em 5 de out­ubro de 1988, com a pro­mul­gação da Con­sti­tu­ição vigente, que con­cedeu  moratória de 8 anos (art. 33 do ADCT). Des­de então suces­si­vas PECs vêm sendo pro­mul­gadas e a últi­ma delas pror­ro­gou a liq­uidação dos pre­catórios pen­dentes até o dezem­bro de 2029 (EC 109/21).

Os pre­ca­toris­tas são víti­mas silen­ciosas que vão mor­ren­do ao lon­go do tem­po, sem que a mídia noti­cie, como ocorre com as víti­mas de assas­si­na­to ou de covid-19. Ficar aguardan­do mais de 20 anos na fila e mor­rer sem usufruir do resul­ta­do mate­r­i­al da decisão judi­cial que lhe asse­gurou o crédi­to não ape­nas tor­na inócua e inútil o princí­pio da inafasta­bil­i­dade da juris­dição inser­to no art. 5º, XXXV da CF, como tam­bém, do pon­to de vista social rep­re­sen­ta uma das mais graves vio­lações dos dire­itos humanos. Por isso, a Comis­são Inter­amer­i­cana de Dire­itos Humanos da Orga­ni­za­ção dos Esta­dos Amer­i­canos (OEA) pre­tende jul­gar o méri­to das denún­cias for­mu­ladas por pre­ca­toris­tas de San­to André (São Paulo) e dos Esta­dos do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul  con­tra o Esta­do Brasileiro por des­cumpri­men­to sis­temáti­co dos pre­catórios.

Já é pos­sív­el com­preen­der que essa PEC 23/21 out­ra coisa não faz senão apro­pri­ar-se do din­heiro per­ten­cente a cre­dores, por decisão judi­cial tran­si­ta­da em jul­ga­do, para finan­ciar um pro­gra­ma social com vis­tas às eleições de 2022. Ess­es val­ores, na ver­dade, R$ 89 bil­hões, per­tencem a pre­ca­toris­tas, tan­to é que fig­u­ram na pro­pos­ta orça­men­tária de 2022 em dis­cussão no Con­gres­so Nacional. Tratam-se de din­heiros carim­ba­dos com des­ti­nação cer­ta.

Logo, ess­es pre­catórios são pagáveis, sal­vo na improváv­el hipótese de a recei­ta ficar aquém do mon­tante esti­ma­do. Não se tratam, por­tan­to, de pre­catórios que não podem pagar, mas, de pre­catórios que não querem pagar.

Do expos­to con­clui-se que o que o gov­er­no e o Con­gres­so Nacional estão fazen­do é sim­ples­mente apro­pri­ar-se de recur­sos per­ten­centes a legí­ti­mos cre­dores, para dá-los aos menos favore­ci­dos de nos­sa sociedade. O Chefe do Exec­u­ti­vo e os con­gres­sis­tas estão nego­cian­do o mon­tante de pre­catórios a não serem pagos, isto é, estão nego­cian­do sobre crédi­tos de ter­ceiros. Por que não nego­ci­am as ver­bas prove­nientes de emen­das indi­vid­u­ais  e de ban­cadas a que fazem jus os con­gres­sis­tas? Ou os recur­sos dos fan­tás­ti­cos fun­dos par­tidário e eleitoral?

A ação dos par­la­mentares de elab­o­rar e aprovar a PEC 23/21 em nada difere do com­por­ta­men­to de alguém, solidário e altruís­ta, que pro­move uma doação sub­stan­cial a inte­grantes de uma enti­dade benef­i­cente, porém, com os recur­sos finan­ceiros fur­ta­dos ou rou­ba­dos de seus viz­in­hos.

Se os des­ti­natários dessa doação, sabedores da origem dos recur­sos doa­d­os, ficarem gratos e agrade­ci­dos ao doador sig­nifi­ca que eles perder­am a noção de éti­ca, enveredan­do-se pelo cam­in­ho da imoral­i­dade.

Gov­er­nante e con­gres­sis­tas se iden­ti­fi­cam com o quadro retroc­i­ta­do. Duas das impor­tantes insti­tu­ições públi­cas (Poder Exec­u­ti­vo e Poder Leg­isla­ti­vo) agem com a maior des­façatez apro­prian­do-se de din­heiro per­ten­cente a cre­dores por decisão judi­cial, para dis­tribuí-lo a um con­tin­gente de hipos­su­fi­cientes. O que é pior, cogi­ta-se de uti­lizar parte dos recur­sos sur­ru­pi­a­dos para engor­dar o fun­do eleitoral e majo­rar os val­ores das emen­das do Rela­tor.

Uma pop­u­lação esclare­ci­da jamais pode­ria aceitar, muito menos aplaudir essa ação ignó­bil que den­i­gre a imagem do Esta­do, den­tro e fora do País, pela práti­ca de con­du­ta ile­gal, incon­sti­tu­cional, imoral e car­ac­ter­i­zado­ra de infração penal.

Essa PEC 23/21 é mate­rial­mente incon­sti­tu­cional, por vio­lar em blo­co, o princí­pio da uni­ver­sal­i­dade de juris­dição; o princí­pio da razoáv­el duração do proces­so; o princí­pio do dire­ito adquiri­do, do ato jurídi­co per­feito e da coisa jul­ga­da;  os princí­pios da irretroa­t­ivi­dade,  da legal­i­dade, da impes­soal­i­dade e da efi­ciên­cia; além de aten­tar con­tra o dire­ito de pro­priedade, todos pro­te­gi­dos em nív­el da cláusu­la pétrea.

Padece, tam­bém, do vício do proces­so leg­isla­ti­vo, porque o Pres­i­dente da Câmara con­vo­cou, por via remo­ta, 17 dep­uta­dos que se encon­travam no exte­ri­or par­tic­i­pan­do dos tra­bal­hos da COP 26, em Glas­gow, Escó­cia, para votarem, sem terem a menor noção do que esta­va sendo debati­do, saben­do uni­ca­mente que cada dep­uta­do que votasse favo­rav­el­mente à aprovação da PEC 23/21 faria jus a R$ 15 mil­hões, a títu­lo de Emen­da do Rela­tor. Resul­ta­do, a PEC 23/21 foi aprova­da em 1º  e 2º turnos superan­do com tran­qüil­i­dade os 308 votos necessários.

Dessa for­ma, à imoral­i­dade mate­r­i­al soma-se a imoral­i­dade proces­su­al.

Nem a decisão monocráti­ca da min­is­tra Rosa Weber, que proibiu o paga­men­to dessa Emen­da do Rela­tor por ausên­cia de transparên­cia, pub­li­ci­dade e de mecan­is­mos de con­t­role e fis­cal­iza­ção da despe­sa abalou a firme deter­mi­nação do Pres­i­dente da Câmara de man­ter o cal­endário da votação em segun­do turno, que acabou acon­te­cen­do, como se viu.

Esse episó­dio rep­re­sen­ta uma ver­dadeira radi­ografia moral dos com­po­nentes dos Poderes Exec­u­ti­vo e Leg­isla­ti­vo que trans­for­mam o Esta­do Fed­er­al Brasileiro em um ser aéti­co despi­do de moral e de pudor. Os 323 par­la­mentares que votaram pela aprovação dessa PEC 23/21, bem como o gov­er­nante que a patroci­na  são pes­soas não habil­i­tadas para o nobre exer­cí­cio de car­gos públi­cos e, por isso, devem ter seus nomes guarda­dos na memória da pop­u­lação ordeira, para que sejam expur­ga­dos da vida públi­ca nas eleições de 2022, por calotearem os cre­dores por pre­catórios e que estão, aos poucos, mor­ren­do à espera do pro­lon­ga­do tem­po para per­cepção de seus crédi­tos.”