Fer­nan­do Neiss­er, Advo­ga­do espe­cial­ista em Dire­ito Eleitoral e Políti­co, Mem­bro da Comis­são de Dire­ito Eleitoral da Ordem dos Advo­ga­dos do Brasil, Seção de São Paulo, exam­i­na as maze­las da apli­cação e das con­stantes mod­i­fi­cações da leg­is­lação da inter­pre­tação e da práti­ca do Dire­ito Eleitoral, no Brasil, no impor­tante arti­go, que pode ser lido a seguir, pub­li­ca­do, orig­i­nal­mente no jor­nal O Esta­do de São Paulo.

 

Brasil parece viv­er nun con­stante cur­so de Dire­ito Eleitoral

Fer­nan­do Neiss­er

“Nos últi­mos dez anos o Dire­ito Eleitoral pas­sou, de ilus­tre descon­heci­do, a ínti­mo com­pan­heiro dos brasileiros que acom­pan­ham o noti­ciário políti­co. Se até então via-se esse ramo jurídi­co como mero con­jun­to de regras téc­ni­cas para real­iza­ção das eleições, ao menos des­de o adven­to da Lei da Ficha Limpa, em 2010, pas­samos a apren­der diari­a­mente seus con­ceitos e dis­cu­ti-los, no táxi e na padaria, com autori­dade insus­pei­ta.

O fenô­meno não é muito difer­ente do que se viu com o Dire­ito Penal des­de o men­salão e, pos­te­ri­or­mente, com a Lava Jato. É como se, cole­ti­va­mente, estivésse­mos em um cur­so seri­ado no qual, a cada episó­dio de reper­cussão nacional, apren­demos um novo capí­tu­lo da dis­ci­plina.

Em anos recentes tive­mos as aulas de finan­cia­men­to de cam­pan­has e caixa 2, começan­do no men­salão tucano e, em nív­el avança­do, com a própria Lava Jato; abu­so de poder econômi­co e políti­co, na ten­ta­ti­va de cas­sação da cha­pa Dilma/Temer; reg­istro e ineleg­i­bil­i­dades, com a can­di­datu­ra do ex-pres­i­dente Lula; e ini­ci­amos o apren­diza­do sobre pro­pa­gan­da eleitoral na inter­net e fake news, com as mil­hões de men­sagens envi­adas por What­sApp por apoiadores do atu­al pres­i­dente.

Estivésse­mos em uma pós lato sen­su, teríamos há tem­pos cumpri­do os crédi­tos. Mas o Brasil nos ofer­ece um ver­dadeiro pós-doutora­do e, deste modo, seguimos 2019 com novos temas.

O ano começou inten­so, com a dis­cussão das fraudes nas cotas fem­i­ni­nas, o que se con­ven­cio­nou na impren­sa chamar de “can­di­dat­uras laran­ja”. A lei, bus­can­do cor­ri­gir históri­ca e lamen­táv­el dis­torção da nos­sa rep­re­sen­tação políti­ca, ten­ta faz­er com que mais de 50% da pop­u­lação não seja rep­re­sen­ta­da por meros 10% do par­la­men­to. Esta­mos na zona de rebaix­a­m­en­to nos rank­ings inter­na­cionais de par­tic­i­pação de mul­heres na políti­ca, assun­to que gan­hou mere­ci­do rele­vo nos últi­mos anos.

Infe­liz­mente, na práti­ca, viu-se que muitos diri­gentes par­tidários, infen­sos à mudança no statu quo, bus­caram frau­dar o sis­tema na parte que lhes inter­es­sa­va: o finan­cia­men­to. Obri­ga­dos por lei a dire­cionar recur­sos para can­di­dat­uras de mul­heres, orga­ni­zaram esque­mas para desviar os val­ores, ben­e­fi­cian­do can­di­dat­uras de home­ns. Em muitos casos, as mul­heres nem mes­mo sabi­am que havi­am sido reg­istradas como can­di­datas.

Os casos que vier­am à tona, muitos deles con­cen­tra­dos no PSL, par­tido que elegeu Jair Bol­sonaro, ain­da cor­rem na Justiça Eleitoral e aguardam des­fe­cho. Politi­ca­mente, con­tu­do, seus efeitos pud­er­am ser sen­ti­dos ain­da no primeiro semes­tre, quan­do o Con­gres­so Nacional aprovou a Lei nº 13.831, em maio, anis­tian­do par­tidos e diri­gentes que não tin­ham gas­to uma ver­ba especí­fi­ca des­ti­na­da ao incen­ti­vo da par­tic­i­pação das mul­heres na políti­ca.

É triste ver a reação da maio­r­ia do par­la­men­to – mas­culi­na e machista – ao tími­do avanço obti­do nas últi­mas eleições, quan­do as mul­heres pas­saram a rep­re­sen­tar 15% da Câmara dos Dep­uta­dos. As cotas fun­cionam, espe­cial­mente quan­do atre­ladas à obri­ga­to­riedade de gas­tos, para que as can­di­dat­uras fem­i­ni­nas sejam com­pet­i­ti­vas e não mera facha­da.

Pouco tem­po depois, em jun­ho, retomamos com a dis­ci­plina “Fake news na Pro­pa­gan­da Eleitoral II”, pro­mul­gan­do a Lei nº 13.834. Apren­demos ali, em exem­p­lo de man­u­al, que quan­do o Con­gres­so Nacional não tem a mín­i­ma ideia de como resolver um prob­le­ma, cria um novo crime. E assim nasceu a denun­ci­ação calu­niosa eleitoral, des­ti­na­da a ape­nar aque­le que, na pro­pa­gan­da, divul­ga fal­sa­mente que seu adver­sário come­teu um crime.

Não deixa de ser irôni­co que fomos, por décadas, o úni­co país democráti­co a ter um crime para a real­iza­ção de pro­pa­gan­da eleitoral fal­sa, vigente des­de os anos 40 do sécu­lo pas­sa­do. Não por isso nos­sa políti­ca pas­sou a ser mais sin­cera. Na fal­ta de um crime, ago­ra temos dois a serem con­jun­ta­mente inúteis.

Pas­sadas as férias de jul­ho, nos­so par­la­men­to resolveu entrar em tema con­sid­er­a­do sem­pre ári­do pelos alunos: o Dire­ito Par­tidário. Ao con­trário de anos ímpares pas­sa­dos, neste 2019 vimos uma minir­refor­ma par­tidária, vez que as mudanças pouco ou nada se dire­cionaram às eleições.

A Lei nº 13.877, de setem­bro, expôs com clareza a estraté­gia de cabo de guer­ra que tem mar­ca­do a relação entre Poder Leg­isla­ti­vo e Poder Judi­ciário no tema eleitoral nos últi­mos anos. A cada pux­a­da que o TSE dá, sobrevém um tran­co vin­do do par­la­men­to.

Espe­cial­mente depois do acrésci­mo de recur­sos de origem públi­ca nos par­tidos, decor­rente da proibição das doações empre­sari­ais, a Justiça Eleitoral pas­sou a ingres­sar – muitas vezes sem fun­da­men­to legal – no méri­to das despe­sas dos par­tidos políti­cos. Descon­tentes com o que enx­ergam – com razão em algu­mas situ­ações – como ingerên­cia na autono­mia par­tidária, dep­uta­dos e senadores ten­taram blindar os diri­gentes par­tidários.

O deslinde desse cabo de guer­ra parece fácil de pre­v­er. Quan­do um dos lados é, simul­tane­a­mente, juiz do jogo, é de se imag­i­nar quem gan­hará. Dis­pos­i­tivos da minir­refor­ma deste ano devem ser con­sid­er­a­dos mais adi­ante incon­sti­tu­cionais, na medi­da em que podem vio­lar o princí­pio con­sti­tu­cional de que aque­le que recebe din­heiro públi­co deve prestar con­tas, man­ten­do o cli­ma de inse­gu­rança jurídi­ca que tor­na difí­cil a gestão par­tidária.

O STF não pode­ria ficar de fora do pro­gra­ma do cur­so. Mes­mo no final do ano, encon­trou-se um espaço para rea­v­i­var o debate das can­di­dat­uras avul­sas. Sob a rela­to­ria do min­istro Rober­to Bar­roso, haverá em dezem­bro audiên­cia públi­ca no Recur­so Extra­ordinário nº 1238853. É bem ver­dade que muitas são as democ­ra­cias que admitem can­di­dat­uras fora dos par­tidos políti­cos. Tam­pouco se igno­ra o descrédi­to que os par­tidos granjear­am, muitas vezes com justeza, na sociedade.

Nos­so cenário con­sti­tu­cional, con­tu­do, difi­cil­mente aceitaria essa solução. Mais do que isso, uma mudança rad­i­cal como esta pre­cis­aria par­tir do Poder Leg­isla­ti­vo, uma vez que toda nos­sa leg­is­lação orga­ni­za as cam­pan­has a par­tir dos par­tidos. Impos­sív­el imag­i­nar como seria pos­sív­el dire­cionar recur­sos dos fun­dos públi­cos ou tem­po de tele­visão e rádio para can­di­dat­uras avul­sas sem alter­ações na lei.

A últi­ma matéria do ano, cujas aulas entrarão em 2020, é sobre infi­del­i­dade par­tidária e cri­ação de novos par­tidos. A intro­dução se deu com os rebeldes do PDT e PSB, que votaram favo­rav­el­mente à refor­ma da Pre­v­idên­cia, des­obe­de­cen­do as dire­trizes de seus par­tidos. Parte deles ajuizou ações na Justiça Eleitoral, pedin­do que seja recon­heci­da a jus­ta causa para que mudem de par­tido sem per­da de manda­to.

O clí­max do tema, con­tu­do, veio com a guer­ra intesti­na do PSL e o pos­te­ri­or anún­cio da saí­da de Bol­sonaro e seus apoiadores para a cri­ação de um novo par­tido. As regras atual­mente vigentes proíbem a migração de par­la­mentares para novos par­tidos sem a per­da de mandatos, bem como impede que lev­em con­si­go as ver­bas pro­por­cionais dos fun­dos públi­cos e o tem­po de tele­visão e rádio. Do mes­mo modo, a cri­ação de novo par­tido exige assi­nat­uras em papel por parte dos quase meio mil­hão de apoiadores que a lei esta­tui.

Em 2020 todos ess­es temas pas­sarão por ques­tion­a­men­to até março, data lim­ite para que um par­tido pos­sa dis­putar as eleições munic­i­pais. Aguardemos se o Poder Judi­ciário reafir­mará as regras vigentes ou se sinalizará para uma nova onda de mul­ti­pli­cação par­tidária.”

O arti­go pode ser lido no site do Estadão, aqui.