Em mais um tex­to pri­moroso, o jurista e estadista Tar­so Gen­ro bus­ca rev­e­lar as relações entre um movi­men­to que dese­ja­va destru­ir o País e seu povo e sua pre­ten­são de irre­spon­s­abil­i­dade.

O tex­to foi pub­li­ca­do, em 30 de abril, na Revista na Revista Sul 21, e pode ser lido a seguir.

Direito e Literatura na Morfina de Bolsonaro

Tarso Genro

Gov­er­nador do Esta­do do Rio Grande do Sul,
Prefeito de Por­to Ale­gre,
Min­istro da Justiça,
Min­istro da Edu­cação,
Min­istro das Relações Insti­tu­cionais do Brasil.

 

“O ex-Pres­i­dente Jair Bol­sonaro ale­gou no seu depoi­men­to à Polí­cia Fed­er­al que esta­va sob os efeitos da mor­fi­na quan­do fez o com­par­til­hamen­to de um vídeo niti­da­mente golpista, pro­movi­do num momen­to de grande ten­são políti­ca no país, ger­a­do pela escal­a­da de um golpe que ele con­duzia. Se ver­dadeiro, o uso deste argu­men­to, ele ape­nas agra­va a sua situ­ação como futuro réu, porque é sabido que o com­par­til­hamen­to não foi uma ação iso­la­da, mas parte de um crime con­tin­u­a­do, cometi­do em cir­cun­stân­cias espe­ci­ais de saúde men­tal e em momen­tos de ple­na lucidez, nos dois últi­mos anos do seu alu­ci­na­do manda­to.

Mas há uma segun­da e uma ter­ceira hipótese. Se a sua  respos­ta – segun­da hipótese – foi só uma ori­en­tação da sua defe­sa, para  aten­uar a sua respon­s­abil­i­dade penal, o argu­men­to pode ser  toma­do como um ape­lo para a redução de uma futu­ra pena, a ser cumpri­da em  esta­b­elec­i­men­tos de recu­per­ação de pes­soas afe­tadas por psi­coses graves, que pas­sam  a ser ser­i­al-killers da políti­ca democráti­ca, quan­do são capazes de plane­jar as suas ações.

Há, todavia, uma ter­ceira hipótese que, para mim, é mais prováv­el: Bol­sonaro fez uma iro­nia e ape­nas debo­chou dos poderes de Esta­do naque­le momen­to, na pre­sença dos Poli­ci­ais Fed­erais que antes ele bus­ca­va coop­tar  “pelo alto”, para uma con­spir­ação de natureza golpista e fascista.  Deu, assim,  prossegui­men­to ao despre­zo ao Esta­do de Dire­ito, que ele odeia por dois motivos fun­da­men­tais: primeiro, porque os manía­cos depres­sivos não aceitam ser con­trari­a­dos; segun­do, porque os paranói­cos detes­tam até as for­mas de tol­erân­cia que a democ­ra­cia devota aos seus car­ras­cos.

Antes de “fechar” a ideia do pre­sente tex­to, uma base para reflexão: Borges está para a lit­er­atu­ra assim como Kelsen está para o Dire­ito, pela ado­ração ao império das for­mas que ambos cul­ti­vavam, ain­da que por con­du­tos e canais difer­entes. A sub­je­tivi­dade anárquica do gênio de Borges instau­ra a fal­sa “pureza” for­mal da lit­er­atu­ra, cuja arquite­tu­ra cen­tral – nos seus tex­tos –  esgo­ta­va-se nas relações da palavra com a palavra, que saíam do seu esta­do aními­co, vivas ape­nas nos nex­os dados a elas, no tex­to que ali esta­va sendo escrito.

Inde­pen­den­te­mente do sig­nifi­ca­do da sua lin­guagem cor­rente, Borges for­ja­va a lit­er­atu­ra em “esta­do puro”, na qual a dialéti­ca das for­mas – como que por encan­to – se sep­a­r­a­va dos movi­men­tos reais da vida e só a palavra apare­cia como sober­ana, para pro­je­tar os sen­ti­men­tos mais recôn­di­tos do autor, para os quais a pre­sença da vida real e dos sen­ti­men­tos dos out­ros não impor­ta­va: todos são pequenos demais, menos os ingle­ses da sua lin­hagem,  para mere­cer um out­ro tipo de encan­ta­men­to mais gen­eroso.

Qual a analo­gia de Borges com Kelsen? Ela reside no cerne da Teo­ria Pura do Dire­ito de Kelsen, antes da grande vira­da que deu, quan­do pas­sou a recon­hecer que o Esta­do Nazista não era um Esta­do de Dire­ito,  cuja eti­ci­dade e moral­i­dade estari­am, pre­sum­i­da­mente, pre­sentes  den­tro do seu sis­tema de nor­mas, só porque este era coer­ente con­si­go mes­mo. O nazis­mo seria, assim, para o últi­mo Kelsen, um sis­tema de poder sem dire­ito e sem moral, que escrav­iza­va a sociedade pela força bru­ta, que o dire­ito – ao mes­mo tem­po que reg­u­larizaria – trava­va e orga­ni­za­va pelo medo.

A sub­je­tivi­dade de Kelsen, antes dessa vira­da, dava a esta­bil­i­dade estáti­ca e buro­cráti­ca ao Dire­ito, dizen­do que ele é – como for­ma  orgâni­ca do Esta­do – a lóg­i­ca desp­i­da da emoção que todos dev­e­ri­am cul­tu­ar a par­tir da nor­ma fun­da­men­tal, que tan­to pode vir de Deus como da sociedade. As for­mas de Kelsen reves­ti­am  o dire­ito de uma dig­nidade pre­sum­i­da pela coerên­cia inter­na do sis­tema e as for­mas de Borges davam beleza a sua lit­er­atu­ra, “pura” de qual­quer con­ceito políti­co, pela har­mo­nia que  lig­a­va as palavras dotadas de novos sen­ti­dos.

Por este cam­in­ho Kelsen for­ma­va o con­ceito do “estatal”, de maneira aparente­mente “cien­tí­fi­ca”, onde as relações entre as palavras devem ser  cien­tifi­ca­mente resolvi­das: elas adquiri­am o seu sig­nifi­ca­do como nor­mas (com­postas por palavras), não como o dis­cur­so da arte em Borges. Em Kelsen as palavras “supe­ri­ores” dão sig­nifi­ca­do às palavras “infe­ri­ores” e é nes­ta imputação que o dire­ito assume sua neu­tral­i­dade cien­tí­fi­ca, afo­ra e aci­ma das “ide­olo­gias”. As palavras escol­hi­das pela ciên­cia em Kelsen, já vin­ham desp­i­das de ide­olo­gias clas­sis­tas ou reli­giosas e, em Borges, elas se tor­navam arte pela sua estéti­ca de con­teú­dos arbi­trários.

Vejam como Lit­er­atu­ra e Dire­ito podem adquirir uni­ver­sal­i­dade, a par­tir de episó­dios par­tic­u­lares que, ao mes­mo tem­po incor­po­ram momen­tos mais sin­gu­lares ou mais uni­ver­sais: um episó­dio sin­gu­lar é, por exem­p­lo, o momen­to  que um tor­tu­ra­do perece nas mãos do tor­tu­rador – for­ma jurídi­ca dos inquéri­tos medievais na Inquisição –  momen­to jurídi­co par­tic­u­lar  comum à época, que con­ta­do por um romancista de tal­en­to pode uni­ver­salizar a redenção do heroís­mo mod­er­no, fazen­do a fusão do Dire­ito com a grande lit­er­atu­ra human­ista do real­is­mo críti­co.

Borges con­ta que, quan­do Gabriel Ros­set­ti leu “O mor­ro dos ven­tos uiv­antes”, escreveu a um ami­go: “a ação transcorre no infer­no, mas os lugares, não sei porque, têm nomes ingle­ses.” A sen­tença sin­te­ti­za de maneira fan­tás­ti­ca todo o impasse do bol­sonar­is­mo, no atu­al perío­do históri­co de resistên­cia ao fas­cis­mo, num país de heróis e már­tires, como o Brasil, onde a reverên­cia européia à nobreza e às famílias reais se ban­ham em iro­nia e onde capitães aposen­ta­dos por prob­le­mas men­tais, que fari­am o hor­ror a Geisel e Caste­lo Bran­co, tor­nam-se líderes de uma parte sig­ni­fica­ti­va da nação.

Ao rev­e­lar que esta­va dopa­do pela mor­fi­na, naque­le inter­ro­gatório poli­cial que dev­e­ria ser estu­da­do em pro­fun­di­dade para enten­der­mos o sub­con­sciente e o incon­sciente do bol­sonar­is­mo e do Brasil, da impren­sa, dos poderes e dos par­tidos, que não ficaram estar­reci­dos com as declar­ações do ex-Pres­i­dente, Bol­sonaro nos aler­tou. Suas palavras nos apre­sen­taram o Brasil pro­fun­do, mais per­to do infer­no do que dos ingle­ses – mais per­to do caos do que da da idi­o­tia cole­ti­va que nos assolou, que pode restau­rar por aqui mod­e­los mais próx­i­mos dos cam­pos de con­cen­tração do que das metá­foras bor­gianas: mais per­to da real­i­dade da morte do que  das palavras encadeadas só como beleza, que ora corte­jam a ale­gria da leitu­ra, ora corte­jam o desas­tre da mor­tan­dade cole­ti­va.”