José Raimundo Gomes da Cruz Titular da Cadeira 48 – Alfredo de Araújo Lopes da Costa Procurador de Justiça de São Paulo aposentado
“Amicus curiae… Personnalité faisant autorité dans un domaine d’activité et qu’une juridiction prend l’initiative (exceptionelle car non prevue par les textes en viguer) d’entendre comme ‘ami de la cour’ (et non comme témoin ou expert), pour connaitre son opinion sur le problème débattu devant elle, en vue de garantir, grâce à ses lumières, un procès équitable, au sens européen du terme.” (Raymond Guillien et al. Termes juridiques. 10 ed. Paris : Dalloz, 1995. pp. 36/37)
No Livro III – dos Sujeitos do Processo – Título III – da Intervenção de Terceiros – Capítulo V – do Amicus Curiae – surge esta nova figura dos participantes do processo. No único artigo do referido Capítulo V – de n. 138 – lê-se: “O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria e a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação. § 1o A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3o. § 2o Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae. § 3o O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.”
Em artigo intitulado “O Amicus Curiae e os outros Sujeitos do Processo”, tratei das semelhanças e diferenças entre os vários sujeitos do processo; do amicus curiae e seu ambiente característico; das normas do Estado da Califórnia a seu respeito; das regras federais da apelação nos EUA; das regras da Suprema Corte dos EUA; enfim, do direito brasileiro (O Terceiro no Processo Civil Brasileiro e Assuntos Correlatos – Estudos em homenagem ao Professor Athos Gusmão Carneiro. Coord. Fredie Didier Jr. e outros. São Paulo : Ed. Revista dos Tribunais, 2010. pp. 324/335).
No Direito brasileiro, a rigor, não existia o instituto do amicus curiae, pelo menos como tal regulado em texto legislativo. Mas havia dispositivos legais esparsos, acolhendo, timidamente, a figura desse interveniente ao mesmo tempo desinteressado (pelo menos nos termos em que o assistente ou o terceiro recorrente podem ingressar no processo alheio), mas que devia, principalmente quando as partes se opusessem à sua admissão no processo, demonstrar certo interesse nele.
Carlos Gustavo Rodrigues del Prá se referia a três espécies de intervenção do amicus curiae no nosso Direito: aquele que participa “do processo por impulso do juiz (art. 9o e art. 20 da LADin, e art. 6o, § 1o, da LADPF; (b) aqueles cuja participação é decorrência de poder de polícia, e cuja intimação é requisito de regularidade do procedimento (intervenção do CADE ou da CVM); e © aqueles que intervêm voluntariamente, em exercício de direito próprio de manifestação (art. 7o, § 2o, LADPF, art 14, § 7o, LJEF)”. (“Breves considerações sobre o amicus curiae na Adin e sua legitimidade recursal”. Aspectos polêmicos e atuais sobre os terceiros no processo civil [e assuntos afins]. Coord. Fredie Didier Jr. e Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2004. p. 77).
De modo mais amplo, Scarpinella Bueno examinava, mesmo afastando a existência de referência legislativa expressa ao instituto, aqui, o que ele chamava de referenciais do amicus curiae no nosso Direito positivo (Amicus curiae no Processo Civil Brasileiro — Um terceiro enigmático. 2. ed. São Paulo : Saraiva, 2008, p. 126). Em primeiro lugar, no âmbito do controle de constitucionalidade. A Lei n. 9.868, de 10/11/99, cujo artigo 7o proíbe, em seu caput, a intervenção de terceiro “no processo de ação direta de inconstitucionalidade”, mas admite, em seu § 2o, que o relator “considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades”. A mesma lei, no tocante à ação declaratória de constitucionalidade, contém idêntica restrição à intervenção de terceiro (artigo 18), mas se mostra omissa quanto ao amicus curiae, circunstância que, segundo Scarpinella Bueno, não obsta à admissão deste (ob. cit., p. 176). A mesma ausência de previsão do instituto na Lei n. 9.882, de 3/12/99, também segundo o mesmo autor, não pode “afastar a possibilidade de entidades de classe ou outros órgãos representativos de segmentos sociais pleitearem seu ingresso na qualidade de amicus curiae” (ob. cit., p. 181).
Deixando o chamado controle concentrado da constitucionalidade, chega a vez do controle incidental da constitucionalidade, também chamado de difuso (artigos 480/482 do CPC de 1973). Por força da Lei n. 9.868, de 10/11/99, os dispositivos do CPC anterior passaram a admitir o amicus curiae, nos §§ 1o a 3o, particularmente no último: “O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá admitir, por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou entidades”.
A Lei n. 10.259, de 12/7/2001, que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, dispõe, em seu artigo 14 a respeito da uniformização de interpretação de lei federal, se houver divergência entre sentenças sobre direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei. Para o presente estudo basta a transcrição do final do seu § 7o: “eventuais interessados, ainda que não sejam parte no processo, poderão se manifestar, no prazo de trinta dias”.
Scarpinella Bueno elaborava amplo tópico sobre o artigo 5o da Lei n. 9.469, de 10/7/97, que dispõe: “A União poderá intervir nas causas em que figurarem, como autoras ou rés, autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas federais. Parágrafo único. As pessoas jurídicas de direito público poderão nas causas cuja decisão possa ter reflexos, ainda que indiretos, de natureza econômica, intervir, independentemente da demonstração de interesse jurídico, para esclarecer questões de fato e de direito, podendo juntar documentos e memoriais reputados úteis ao exame da matéria e, se for o caso, recorrer, hipótese em que, para fins de deslocamento de competência, serão consideradas. partes.”
Os casos anteriores se relacionavam a ações autônomas de competência de tribunais ou incidentes relacionados com órgãos recursais. Agora, a intervenção pode ocorrer em primeiro grau, também por questões de fato.
Segue-se o artigo 31 da Lei n. 6.385, de 7/12/76: “Nos processos judiciais que tenham por objeto matéria incluída na competência da Comissão de Valores Mobiliários, será esta sempre intimada para, querendo, oferecer parecer ou prestar esclarecimentos, no prazo de 15 (quinze) dias a contar da intimação. § 1o A intimação far-se‑á logo após a contestação, por mandado ou por carta com aviso de recebimento, conforme a Comissão tenha, ou não, sede ou representação na comarca em que tenha sido proposta a ação. § 2o Se a Comissão oferecer parecer ou prestar esclarecimentos, será intimada de todos os atos processuais subseqüentes, pelo jornal oficial que publica expediente forense ou por carta com aviso de recebimento, nos termos do parágrafo anterior. § 3o À Comissão é atribuída legitimidade para interpor recursos, quando as partes não o fizerem. § 4o O prazo para os efeitos do parágrafo anterior começará a correr, independentemente de nova intimação, no dia imediato àquele em que findar o das partes.”
Percebe-se, aí, que o legislador impõe a intervenção do amicus curiae em qualquer grau de jurisdição. Nos processos que tenham por objeto matéria incluída nas atribuições da CVM, esta será intimada. Com a forma eletrônica dos atos processuais, não se beneficiando a CVM da ciência pessoal, sua intimação será conforme a Lei n. 11.419, de 19/12/2006 (cf, meu artigo “A forma eletrônica dos atos processuais”. Temas Atuais de Direito. Coord. Rogério Donnini e Roque Antonio Carrazza. São Paulo : Malheiros, 2008, pp. 248 e ss.). A CVM tem o ônus de recorrer somente para suprir as omissões das partes na interposição de recursos.
Athos G. Carneiro entende que o início do amicus curiae no direito positivo brasileiro ocorreu através de modificação introduzida na Lei n. 6.385/76 pela Lei n. 6.616, de 16/12/78 (“Mandado de segurança. Assistência ‘amicus curiae’”. Revista Forense. v. 100. n. 371. jan/fev. de 2004, p. 77. Osvaldo Hamilton Tavares só se refere ao artigo 31 da Lei n. 6.385/76. “A CVM como ‘amicus curiae’”. Revista dos Tribunais. v. 82. n. 690. abril de 1993, p. 286).
É importante estabelecer-se o marco inicial do nosso Direito positivo, diante da legislação de família do Estado da Califórnia, que evita a denominação latina, além de regular mero caso de auxiliar da Justiça.
Por outro lado, se a legislação norte-americana geralmente analisada parece concentrar-se em órgãos de segundo grau e na própria Suprema Corte, Henry Abraham lembra que as cortes de apelação incluem (como no Brasil) algumas ações autônomas. De qualquer forma, “New York possui um complicado sistema de mais de 150 cortes de apelação … e a estrutura recursal da Califórnia propiciou a Caryl Whitier Chessman interpor quatorze apelações no sistema local (que ele aumentou com vinte e oito apelações para as cortes federais entre 1948 e 1960 numa derradeira e fracassada batalha para escapar da câmara de gás de San Quentin”) (The judicial process. 6. ed. New York : Oxford, 1993, p. 142).
Não pode faltar referência aos artigos 57, 118 e 175 da Lei n. 9.279, de 14/5/1996, que prevêem a intervenção do INPE – Instituto Nacional da Propriedade Industrial nas causas de nulidade de patente, de nulidade de desenho industrial e de nulidade do registro de marca, mesmo não sendo parte processual.
Outra hipótese de obrigatória inclusão: O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, por força do artigo 89 da Lei n. 8.884, de 11/6/1994: “Nos processos em que se discuta a aplicação desta Lei, o CADE deverá ser intimado para, querendo, intervir no feito na qualidade de assistente”. Como anotava Scarpinella Bueno, não ficava bem esclarecida a “figura jurídica” desse terceiro interveniente (ob. cit. p. 325).
Outro caso importante, no artigo 49, parágrafo único, da Lei n. 8.906, de 4/7/2004, que dispõe sobre o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB): “As autoridades mencionadas no ‘caput’ deste artigo têm, ainda, legitimidade para intervir, inclusive como assistentes, nos inquéritos e processos em que sejam indiciados, acusados ou ofendidos os inscritos na OAB”. As autoridades aí mencionadas são os “Presidentes dos Conselhos e das Subseções da OAB”.
A exposição, principalmente dos textos legislativos estrangeiros de raríssima ou nenhuma divulgação entre nós, permite perceber vantagens no instituto, sem dúvida já adotado no Brasil, embora timidamente, antes do novo CPC, pois ainda não ousava assumir a denominação de amicus curiae ou a equivalente em português. Nos casos das partes e terceiros, sua participação apresenta vantagens evidentes, especialmente de economia e harmonia entre os julgamentos, conquanto coexistam as desvantagens do custo e da complexidade (cf. minha dissertação de mestrado, publicada como o livro Pluralidade de partes e intervenção de terceiros. São Paulo : RT, p. 221).
Não se devia exagerar, no caso do amicus curiae, no favorecimento das pessoas jurídicas de Direito Público, já dotadas de tantas prerrogativas, como o reexame necessário previsto no artigo 475 do Código de Processo Civil de 1973, mesmo após as alterações trazidas pela Lei n. 10.352, de 26/12/01, instituto defendido apenas por um dos nossos processualistas (J. C. Barbosa Moreira. “Em defesa da revisão obrigatória das sentenças contrárias à Fazenda Pública. Ajuris, v. 31, pp. 177 e ss.).
Nem deve haver restrição à atividade de interpretação de textos normativos, proposta por Tavares (ob. e loc. cit.). Sempre ao órgão jurisdicional caberá a última palavra.
A propósito do consentimento das partes para o ingresso do amicus, não se deve esquecer expressão atribuída a Liebman de que o processo não é negócio de família: Il processo cessò di essere quell’affare privato che veniva trattato all’ombra dei propri interessi dai due contendenti (Manual de Direito Processual Civil. trad. C. R. Dinamarco. Rio de Janeiro : Forense, 1984, p. IX). Do mesmo modo, a norma do artigo 129 CPC de 1973: “Convencendo-se, pelas circunstâncias da causa, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por lei, o juiz proferirá sentença que obste aos objetivos das partes”.
Como bem sugeriu Miguel Angel Ekmekdjian, a função do amicus curiae “es apontar opiniones – esencialmente jurídicas – en determinados casos contenciosos cuya sentencia pueda llegar a tener transcendencia institucional, es decir que no se limiten a los intereses de las partes” (Revista dos Tribunais. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. v. 4. n. 16. jul/set/1996, p. 81).
Voltando ao início de nova era do instituto do amicus curiae, como previsto no artigo 138 do nosso novo CPC: a) sua previsão não se restringe aos tribunais: “juiz ou relator poderá admiti-lo”; b) tal decisão será de ofício ou por solicitação da parte ou de quem queira manifestar-se; c) de tal decisão não caberá recurso; d) são considerações para a decisão do órgão judicial competente a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia; e) o interessado, pessoa física ou jurídica, órgão ou entidade especializada, deverá possuir representatividade adequada; f) a intervenção do amicus curiae não acarreta alteração de competência, nem autoriza a interposição de recurso por ele, salvo embargos de declaração e decisão sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas; f) enfim, caberá ao juiz ou ao relator, na decisão sobre a intervenção do amicus curiae, fixar os poderes deste.