Autor: Luiz Antônio Riz­zat­to Nunes, Acadêmi­co da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, Desem­bar­gador aposen­ta­do do Tri­bunal de Justiça de São Paulo, Pro­fes­sor de Dire­ito do Con­sum­i­dor e de Intro­dução ao Estu­do do Dire­ito.

Por con­ta do episó­dio da morte da paciente do médi­co con­heci­do como “Dr. Bum­bum”, volto ao tema do cor­po humano como pro­du­to de con­sumo e colo­can­do o prob­le­ma do lim­ite éti­co da med­i­c­i­na.

O cor­po humano, dizem, é um tem­p­lo rece­bido de Deus (ou da natureza) e que nós deve­mos respeitar. Fru­to de admi­ração des­de a antigu­idade, pas­sou a ser ven­di­do pela sociedade cap­i­tal­ista con­tem­porânea como um pro­du­to a ser alcança­do na for­ma do belo. Isto é, a “beleza” virou pro­du­to de con­sumo. Há uma cri­ação mer­cadológ­i­ca e tam­bém cul­tur­al e, como decor­rên­cia dessas duas, uma imposição social que cada dia mais afe­ta as pes­soas para que elas “pareçam” boni­tas. Não como de fato são: a pressão é para que elas se pareçam com aqui­lo que o “mer­ca­do” diz que é belo.

Há um quê de arti­fi­cial nesse modo de se medir as pes­soas. Aliás, não só arti­fi­cial como – para atu­alizar a lin­guagem — fake. E a uti­liza­ção de mod­er­nas téc­ni­cas de manip­u­lação de fotos, tais como o pho­to­shop, per­mite a cri­ação de ima­gens que nem sem­pre cor­re­spon­dem ao real. Muitas vezes, as próprias pes­soas repro­duzi­das têm se sur­preen­di­do com sua (fal­sa) beleza.

A ver­dade é que, de um jeito ou de out­ro, nes­ta sociedade em que o ter é mais impor­tante que o ser e onde a aparên­cia é mais impor­tante que a essên­cia, o que se percebe é que algu­mas pes­soas são pri­sioneiras de seus sím­bo­los: roupas de mar­ca, jóias, reló­gios pre­ciosos, car­ros últi­mo tipo, o cor­po idem. O que o mer­ca­do aca­ba venden­do é uma ilusão de segu­rança e feli­ci­dade nos sím­bo­los ofer­e­ci­dos nas vit­rines e em anún­cios pub­lic­itários, e o que esse tipo de con­sum­i­dor adquire é uma fal­sa idéia de si mes­mo, muitas vezes geran­do frus­tração e um vazio que o obri­ga a voltar às com­pras, às trans­for­mações etc num cír­cu­lo vicioso sem fim.

O ape­lo pela beleza e pela estéti­ca é taman­ho que um dos aspetos mais evi­dentes dos avanços da ciên­cia tec­nológ­i­ca é o da ven­da e refor­ma de partes do cor­po humano. Quase como no filme de Franken­stein, existe a pos­si­bil­i­dade de a ficção virar real­i­dade. Evi­den­te­mente, há mui­ta coisa boa. O avanço da biolo­gia e da med­i­c­i­na per­mite os trans­plantes de órgãos que sal­vam muitas vidas, que devolvem funções de partes do cor­po humano que estavam per­di­das ou que dão a visão às pes­soas etc. Há tam­bém o uso de vários tipos de próte­ses, as oper­ações cor­re­ti­vas com aju­da de micro instru­men­tos e uma numerosa quan­ti­dade de pro­ced­i­men­tos out­ro­ra impen­sáveis. Isso tudo é muito bom.

Ao lado dis­so, porém, o mer­ca­do pas­sou a ofer­e­cer toda sorte de cirur­gias estéti­cas. Não só é pos­sív­el deixar de usar ócu­los, fazen­do uma fan­tás­ti­ca, muito ráp­i­da e indo­lor oper­ação oftálmi­ca (que, aliás, é exe­cu­ta­da prati­ca­mente em série, uma atrás da out­ra), como home­ns e mul­heres podem lit­eral­mente com­prar partes do cor­po humano, ou faz­er tro­cas no próprio cor­po com enx­er­tos.

A bus­ca do cor­po per­feito, da for­ma sem­pre esguia e jovem, ess­es pro­du­tos tão bem ven­di­dos no mer­ca­do de con­sumo, fez sur­gir um enorme setor de reposição de “peças” humanas. É aqui­lo que eu inti­t­u­lo de “franken­steiniza­ção” do mer­ca­do. Nat­u­ral­mente, não há nen­hum mal em que as pes­soas queiram faz­er as cor­reções que enten­derem necessárias, des­de que o façam con­scien­te­mente e com acom­pan­hamen­to médi­co ade­qua­do. Podem quer­er faz­er lipoaspi­ração para jog­ar fora as gor­duras inde­se­jáveis e difí­ceis de perder; ou dese­jar elim­i­nar as papas dos olhos; as mul­heres podem quer­er aumen­tar seus seios ou cor­ri­gi-los etc. É mero exer­cí­cio do dire­ito de cada con­sum­i­dor.

O mer­ca­do cui­da desse assun­to com alta pri­or­i­dade e qual­quer um pode ver. Bas­ta lig­ar a tevê para perce­ber a quan­ti­dade de pro­du­tos e serviços lig­a­dos à for­ma e a beleza exis­tentes. O mar­ket­ing, por sua vez, em todas as suas ver­tentes, o tem­po todo, mostra as pes­soas de um modo que vai se impon­do no imag­inário e dese­jo dos con­sum­i­dores. Nos filmes dos cin­e­mas, nos canais de tele­visão, nas nov­e­las etc são apre­sen­ta­dos atrizes e atores magros e “sara­dos” com for­mas desen­hadas, que depois os con­sum­i­dores ten­tam “copi­ar” adquirindo os pro­du­tos e serviços ofer­e­ci­dos.

Há tam­bém mui­ta coisa esquisi­ta. Já tive opor­tu­nidade de comen­tar aqui alguns casos e, recen­te­mente, li numa matéria que a sue­ca Pix­ee Fox, que se auto inti­t­u­la “desen­ho ani­ma­do vivo”, já fez mais de 100 pro­ced­i­men­tos estéti­cos para ficar igual a desen­hos ani­ma­dos. Ela, inclu­sive, removeu seis coste­las para afi­nar bru­tal­mente a cintura1. Nesse setor, são tam­bém famosos os can­didatos e can­di­datas a ficarem iguais a boneca Bar­bie e ao boneco Ken.

Até se pode­ria garan­tir um even­tu­al dire­ito de as pes­soas faz­erem esse tipo de inter­venção, o que, pen­so, é ques­tionáv­el. Todavia, há algo mais grave, que é o do pro­ced­i­men­to médi­co sub­ja­cente nes­sa questão: as exces­si­vas inter­venções são feitas por cirurgiões médi­cos, acom­pan­hados de equipes com out­ros médi­cos aneste­sis­tas e seus assis­tentes. Per­gun­ta-se: não há lim­ite éti­co para um médi­co faz­er tal oper­ação? Não dev­e­ria ele se negar a fazê-la e acon­sel­har o inter­es­sa­do ou a inter­es­sa­da a procu­rar aju­da psi­cológ­i­ca?
A questão, para reflexão, está colo­ca­da. Parece-nos que as enti­dades de med­i­c­i­na respon­sáveis dev­e­ri­am debater e cuidar desse tema.

Não é só porque a ciên­cia mod­er­na e a incrív­el tec­nolo­gia que a acom­pan­ha seja capaz de con­stru­ir cor­pos humanos com fan­tás­ti­cas próte­ses, enx­er­tos e refor­mas, que se deve fazê-lo. Do pon­to de vista éti­co, a pos­si­bil­i­dade real de uma exe­cução não sig­nifi­ca nec­es­sari­a­mente o dire­ito de exer­cê-la. Não falo ape­nas dess­es exem­p­los de pes­soas que querem ficar iguais a desen­hos. Refiro a questão em sen­ti­do mais amp­lo, porque se deix­am­os a decisão ao mer­ca­do, com o alto fat­u­ra­men­to que o seg­men­to gera, o lim­ite parece infini­to.

Pub­li­ca­do orig­i­nal­mente em Migal­has, São Paulo.