No texto seguinte, Francisco Luís Attié, estudante da New York University, Thomas Attié, estudante do Ithaca College, e Alfredo Attié, Titular da Cadeira San Tiago Dantas da Academia Paulista de Direito, refletem sobre a importância do estudo da poesia e da filosofia, acompanhando o cenário e as cenas de “Dead Poets Society“e “Merlí”, filme e série voltados a refletir sobre as relações entre alunos, professores e ensino.
Merlí e Mr. Keating
Thomas de FMB Attié, Francisco L. de FMB Attié, Alfredo Attié
Mr. Keating tornou-se, desde sua aparição, em 1989, em “Sociedade dos Poetas Mortos,” de Peter Weir, o modelo sagrado do professor que inspira estudantes a descobrirem os caminhos do conhecimento, encontrando sua vocação e cedendo a suas paixões para concretizarem seus sonhos.
De 2015 a 2017, a Televisão Catalã e a Netflix ressuscitaram o modelo, apresentando‑o na pele de um professor de filosofia, adepto do modo de vida dos Cínicos, cujos bens resumiam-se ao conteúdo de duas malas, que trazia das casas de onde era despejado, porque não conseguia se fixar em emprego algum e só aceitava trabalhar como professor.
Merlí é a série, criada por Héctor Lozano, que, em enredo parecido com o de telenovelas, explora o relacionamento do professor, interpretado por Francesc Orella, com seus discípulos e discípulas, adolescentes de uma escola pública, assim como a vida desses estudantes, suas famílias, amizades, amores, professores e professoras.
Muito embora goste de métodos não convencionais de ensino – adote a peripatética como modelo – e aprecie o relacionamento mais próximo com seus estudantes, Merlí se distingue de Keating de várias maneiras.
Keating leciona numa boarding school da elite norte-americana, no final da década de 1950, que tem forte identidade, expressa em seu lema de “três pilares da sabedoria: “Tradition, Discipline, Excellence.” Keating, tratado de senhor pelos alunos, prefere ser chamado de “O Captain! My Captain!”, versos iniciais de poema de Walt Whitman, autor que, ao lado de Henry David Thoreau, inspira seu modo de ser e de ensinar. Ele guarda certa distância de seus alunos, mas suas lições parecem calar mais fundo nas paixões nascentes dos meninos. Sua matéria é a literatura, portanto a ficção que seduz e carrega um modo de as emoções e aspirações dos jovens se expressarem. Keating não quer que os alunos aprendam superficialmente as formas da ficção, mas que as possuam par coeur, como meio de os inpirar a ousarem na vida, que é breve e precisa ser aproveitada a cada dia — carpe diem, seize the day — sugando sua medula, sua essência mais profunda. Keating, tão sedutoramente interpretado por Robin Williams, tem entre seus alunos um jovem apaixonado, um contestador, um pragmático delator, um poeta e um ator — cujo conflito entre vocação e (o)pressão paterna o leva ao suicídio -, e, como destino de sua ousadia, a expulsão, malgrado o apoio apaixonado da quase totalidade de sua classe. O Sócrates americano inspira seus estudantes, desviando-os dos passos planejados de modo heterônomo e ensinando-os a pensar e a agir com autonomia. Ele se relaciona com seus colegas professores e se corresponde com sua amada.
Merlí vive o mundo contemporâneo, ensinando numa escola secundária pública fictícia de Barcelona. Tem um filho adolescente gay, interpretado por David Solans — que compõe a classe para a qual o pai é contratado, como professor substituto. Não tem e não deseja fazer amigos, preferindo o contato sexual com a professora de inglês, cujo namoro com outro professor mais jovem ele simplesmente destrói, e depois de a deixar, o relacionamento com a mãe divorciada de um aluno. Cheio de si, tomando-se como o melhor professor de todos, Merlí somente se sente seguro com suas amantes e com os estudantes –os quais avalia de modo severo, na disciplina, mas ameno, na vida. Aproxima-se e convive com os estudantes, mas não abre mão de ser professor e de seu isolamento, de seus interesses – mesmo que magoe a qualquer um, inclusive seu filho. Ele quer para si a independência correspondente ao espírito a à luta de sua província — é agradável ouvir os sons do catalão, numa escola em que o castelhano (o espanhol) é ensinado como língua estrangeira, seu professor, por ser obeso, sendo alvo de bullying dos estudantes. A outra professora de língua estrangeira, de sua feita, serve apenas para o desfrute do apetite sexual do filósofo. Assim como o retrato de quem aparentemente seria seu mestre espiritual, Nietzsche, carregado por Merlí de lá para cá, apenas serve como meio de esconder o alvo do jogo de dardos, posto em seu verso.
Anti-herói? O nada elegante professor de meia idade, que mora com a mãe atriz e o filho que deseja ser bailarino, não esconde seus defeitos e seu desejo de chocar a todos com sua capacidade de burlar regras e colocar qualquer um em situação de constrangimento. Mas ele ensina e seduz seus estudantes, desperta neles o gosto pela filosofia – que considera a disciplina mais importante.
Diferentemente de Keating, todavia, que usa a poesia para fazer os alunos voltarem-se para si mesmos e se tornarem criadores, Merlí usa questões presentes na vida de seus alunos, suas preocupações e experiências, suas falas, para referir algum filósofo. Ele os faz voltarem-se para fora, para os autores emblemáticos de sua disciplina. Cada filósofo dá nome a um capítulo da série, cujo enredo, entremeado pelos voos noturnos da coruja de Minerva, serve a designar uma lição daquele filósofo ou daquilo que corresponderia a certos lugares comuns ocupados por esses filósofos no imaginário mais ou menos popular. A concepção de filosofia de Merlí não é a criadora dos autores visitados por Keating, mas o velho entendimento da filosofia como história e como escola. Não se trata daquela fórmula que faz da filosofia um bastão carregado por diversos nomes, que se vão sucedendo, apanhando‑o de outros e seguindo o percurso, mas de um guia ético que explica os eventos cotidianos. Cada filósofo simboliza um aspecto da vida e como que aconselha diante de uma experiência determinada. A vida dos estudantes não é original, mas se subsume sempre a algo que foi dito por alguém que vale a pena citar.
Antes que se diga que essa filosofia seria apenas um manual de auto ajuda, é importante salientar que Merlí tem o talento de fazer os filósofos se transportarem para o presente e faz deles companheiros de viagem dos estudantes, das relações de amizade e inimizade, amor e ódio, poder e submissão, questionando a normalidade, as aparências e os liames sociais, familiares e políticos. Merlí ensina filosofia e um pouco a filosofar, liberdade e igualdade, cumplicidade no trabalho em conjunto e guardar segredo de que se trabalhou contra uma regra estabelecida. Merlí faz da filosofia o inconvencional no convencional, mesmo que suas lições sejam superficiais. As personalidades dos estudantes se desenham e redesenham, e a filosofia, em abstrato, mas sobretudo a intervenção concreta do filósofo, ajudam nesse redesenho das individualidades e das relações humanas, sempre tensas em sua juventude, mas também amorosas, em seus vários sentidos.
No universo de Mr Keating, as famílias estão distantes, são referências de expectativas de pais e mães, empurradas como meras colaboradoras de um projeto de ensino fechado, tocado com mão de ferro pelo diretor da escola, a quem se dá crédito absoluto. Disciplina que Mr Keating se põe a tensionar.
No disperso ambiente catalão, as famílias fazem parte da escola e das aulas, são limites e impulsos para o sentido e os empecilhos da educação, que Merlí tensiona, não sem antes se deixar envolver plenamente na vida desses pais e mães, contra a vontade de seus pares, mas um pouco como se desejassem exatamente essa intervenção, sem disciplina.
Mr. Keating, no universo da Nova Inglaterra puritana, impulsiona seus alunos à liberdade, a se tornarem indivíduos, ao otimismo e aos riscos das escolhas, contra todas as escolas.
Merlí, no universo ibérico da Escolástica, entende que seus estudantes são seres socais mais do que indivíduos, e sugere a submissão a uma disciplina que considera libertadora — desde que ensinada a seu modo.
Mr. Keating quer o desenvolvimento da individualidade criadora.
Merlí, o aprimoramento do relacionamento social, espécie de catarse coletiva – como no episódio em que todos se despem parcialmente em sala de aula, em solidariedade à colega que teve o vídeo de exposição de sua semi nudez divulgado nas redes sociais.
Às fórmulas das disciplinas tradicionais, os dois aportam rebeldias, mesmo que de naturezas diversas, sugerindo que os alunos se emocionem ao aprenderem a criar e a se realizar, no caso americano, e a se compreender diante dos outros, no caso catalão,
Enquanto isso, no Brasil de 2016, estudantes do Ensino Médio movimentavam-se em protesto, ocupavam suas escolas, reivindicavam sem resposta.
Entre as artes e as filosofias, qual modelo servirá à necessária renovação de nosso ensino e de nossa vida sem ídolos?
“Exult O shores, and ring O bells!
But I with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.”