O arti­go a seguir é de auto­ria do jurista e estadista Tar­so Gen­ro, e foi pub­li­ca­do orig­i­nal­mente em SUL 21.

Tempos Curtos e Longos: Mujica e a Frente Ampla exemplar do Uruguai

Tar­so Gen­ro [1]

 

Luis ernesto lo envuleve en su afecto tentáculo de a ratos parece um buen ladrón del cine mudo seguro que es un fiel un pátria o muerte ojalá vivas marcos y se perde em el pozo..2]

 

O queri­do com­pan­heiro Daniel Caggiani, Senador da Frente Ampla no Uruguai, chama pelo tele­fone celu­lar min­ha mul­her San­dra Biten­court e nos comu­ni­ca que o ex-Pres­i­dente Muji­ca gostaria de nos rece­ber, no fim da tarde, para con­ver­sar­mos com mais tran­quil­i­dade do que fize­mos num even­to do dia ante­ri­or. Era uma reunião de um con­jun­to de líderes políti­cos, ex-Min­istros, ativis­tas dos Dire­itos Humanos e int­elec­tu­ais, pro­gra­ma­da para­le­la­mente ao even­to de Brasília, no qual Lula con­ver­saria – no dia seguinte – com os Pres­i­dentes sulamer­i­canos sobre a questão democráti­ca na Améri­ca do Sul e a retoma­da do nos­so proces­so de inte­gração. Há 52 anos, em 5 de fevereiro de 1971, uma exper­iên­cia orig­i­nal de unidade políti­ca entre social­is­tas democráti­cos, comu­nistas históri­cos, democ­ratas-cristãos, democ­ratas pro­gres­sis­tas de várias ver­tentes do repub­li­can­is­mo políti­co do país – inclu­sive blan­cos e col­orados – tin­ham fun­da­do no Uruguai a Frente Ampla, cuja unidade inve­jáv­el, capaci­dade políti­ca e dis­ci­plina con­sen­su­al, per­du­ra até o pre­sente. Nada como o Uruguai, por­tan­to, para abri­gar uma reunião daque­la natureza.
No nos­so even­to de “apoio” à reunião de Brasília, um dia antes – cuja sessão ini­cial teve a pre­sença de Muji­ca e Lucía, sua mul­her ex-Senado­ra da Repúbli­ca – debati com os par­tic­i­pante os rumos da inte­gração e a unidade fren­tista do cam­po democráti­co, con­tra os novos son­hos dita­to­ri­ais da extrema dire­i­ta lati­no-amer­i­cana. A reunião foi for­ma­da através de uma artic­u­lação de mais de um ano de reuniões e debates, pres­en­ci­ais e pela inter­net – orga­ni­za­da pelo Insti­tu­to Novos Par­a­dig­mas, Fun­dação Chile 21 e Fun­dação Sereg­ni, com a par­tic­i­pação dos ex-Pres­i­dentes Muji­ca, Ernesto Sam­per e o ex-Min­istro Cel­so Amor­im. Car­los Omi­na­mi (ex-Min­istro da Fazen­da do Primeiro Gov­er­no de Con­certación no Chile), Mon­i­ca Xavier (foi Senado­ra da Repúbli­ca no Uruguai) e o Pro­fes­sor Javier Miran­da (ex- Pres­i­dente da Frente Ampla), mais José Dirceu e Paulo Abrão, do Brasil, foram fun­da­men­tais para o suces­so do encon­tro, cujo doc­u­men­to final foi expos­to na reunião de Brasília pelo Pres­i­dente Alber­to Fer­nán­dez, da Repúbli­ca Argenti­na.
A nos­sa Frente Políti­ca no Brasil é uma exper­iên­cia con­tin­gente e necessária, num país em que as oli­gar­quias region­ais têm mais força do que os Par­tidos, que os par­tidos – em regra – olham a nação a par­tir do seu espaço políti­co region­al, cujos inter­ess­es “supe­ri­ores” – para eles – um dia irão se con­ju­gar para for­mar um Esta­do Nacional. O que inter­fere, deci­si­va­mente, na for­mação dos nos­sos Gov­er­nos Democráti­cos, depois da Con­sti­tu­ição de 88, é muito menos força dos par­tidos de qual­quer origem e muito mais as forças oligárquicas-region­ais que, pas­sam, ou não, para den­tro dos par­tidos, em dependên­cia do avanço da civil­i­dade da políti­ca ali insta­l­a­da. O Pres­i­dente Muji­ca diz, ao meu ver cor­re­ta­mente, que as forças da dire­i­ta se unem pelos seus inter­ess­es ime­di­atos e as forças da esquer­da e cen­tro-esquer­da se sep­a­ram pelo que pre­ten­dem do futuro. Daí a sua con­clusão que a esquer­da deve tra­bal­har com “tem­pos cur­tos” – como diz Muji­ca – não por mais de 5 anos, para gov­ernar com coerên­cia a pre­vis­i­bil­i­dade, “mer­cado­rias” escas­sas no Brasil, onde os Pres­i­dentes for­mam a sua base par­la­men­tar precária, depois de gan­har a eleição, com retal­hos de par­tidos inco­er­entes, que acabam sem­pre sur­preen­den­do o par­tido vence­dor na eleição majoritária.
Está­va­mos todos orgul­hosos da nos­sa empre­ita­da políti­ca naque­le dia do con­vite de Muji­ca, que espe­cial­mente para mim tin­ha um forte sig­nifi­ca­do políti­co. Ele fecha­va um “tem­po lon­go” de mil­itân­cia políti­ca, através de dois mar­cos pes­soais da min­ha tra­jetória: eu esta­va no Uruguai, em 1971, quan­do a Frente Ampla foi fun­da­da e tam­bém quan­do Muji­ca saiu da prisão – por um Túnel, em Pun­ta Car­retas – cava­do num lugar próx­i­mo onde almoçá­va­mos quan­do veio o tele­fone­ma de Caggiani. O mes­mo Muji­ca, que eu rece­bera como Gov­er­nador do Rio Grande do Sul no Palá­cio Pira­ti­ni, como Pres­i­dente do Uruguai, e que tam­bém vis­itei – no meu manda­to de Gov­er­nador – no Palá­cio pres­i­den­cial em Mon­te­v­ideo. Era uma época de um “tem­po lon­go”, que naque­le exa­to momen­to do con­vite se tor­na­va “cur­to”: o tem­po lon­go se tor­na­va, no espíri­to, uma reta ascen­dente e longilínea – antes tor­tu­osa e impre­vista – que ago­ra a memória trans­for­ma­va num tem­po cur­to, espaço unifi­ca­do de dor, de luta e tam­bém de cel­e­bração da vida.Dia 30 de maio, terça-feira, às 19.45 hs, mais ou menos a 25 km do cen­tro de Mon­te­v­idéu na chá­cara-residên­cia de Pepe Muji­ca e Lucia, no lugar “Rincón del Cer­ro”, encer­ramos – eu e min­ha mul­her San­dra Biten­court – lon­ga con­ver­sa com Pepe Muji­ca e sua mul­her Lúcia Topolan­s­ki. Foi quan­do abra­cei car­in­hosa­mente o vel­ho e queri­do com­bat­ente e lhe disse uma peque­na frase de des­pe­di­da: “Te cui­da!” Que ele me respon­deu com um “Has­ta siem­pre her­mano”. Sua des­pe­di­da comovente logo me lem­brou de Gio­van­ni Arrighi, do seu “O Lon­go Sécu­lo XX”, que – por seu turno – me fez apare­cer na memória “A Era dos Extremos, o breve Sécu­lo XX”, de Eric Hob­s­bawm”. O lon­go e o breve: tem­pos lon­gos e tem­pos cur­tos estavam ali, fun­di­dos em duas ger­ações lati­no-amer­i­canas, se con­sid­er­ar­mos que os tem­pos estão cur­tos; ou uma só ger­ação, se con­sid­er­ar­mos que os sécu­los con­tin­u­am lon­gos. Ao final da nos­sa con­ver­sa, já sem a gravação con­scien­ciosa de San­dra Bit­ten­court, Muji­ca abre uma breve recor­dação do seu “tem­po lon­go” nos cal­abouços da ditadu­ra.
Encer­rá­va­mos uma lon­ga con­ver­sa sobre as respostas da democ­ra­cia lib­er­al às ditaduras dos anos 70, as relações de sol­i­dariedade entre os país­es da Améri­ca do Sul, a exper­iên­cia exem­plar da Frente Ampla no Uruguai e as ten­ta­ti­vas rev­olu­cionárias frustradas, no “cur­to” ou “lon­go” Sécu­lo XX, quan­do retor­na – pela voz de Muji­ca – o enig­ma insondáv­el do tem­po. “Cur­to”, se con­sid­er­ar­mos – como Hob­s­bawm – seu iní­cio históri­co em 1914, no começo da Primeira Guer­ra Mundi­al, e o seu final na que­da da Rev­olução Rus­sa, em 1991; mas que é “lon­go”, se nos puser­mos na per­spec­ti­va de Arrighi, que supõe exi­s­tir uma descon­tinuidade-con­tin­u­a­da per­ma­nente, no tem­po históri­co, cuja flex­i­bil­i­dade se amplia no espaço do mun­do face à evolução das regras impos­i­ti­vas do mer­ca­do. Mas o tem­po “lon­go” de Muji­ca remete dire­ta­mente, não para o mer­ca­do, mas para um cal­abouço, onde por mais de 12 anos a ditadu­ra urugua­ia pre­tendeu lhe aniquilar como ser humano, pelo silen­cio, pelo medo impos­to, pela tor­tu­ra físi­ca e psi­cológ­i­ca. E a ditadu­ra perdeu.
Então Muji­ca falou com a tran­quil­i­dade grandiosa dos home­ns sofri­dos de todos os tem­pos, com a grandeza pro­duzi­da por eles em todos os cal­abouços, onde foram joga­dos pelo des­ti­no que escol­her­am, falan­do por todos os que sobre­viver­am e assim vence­r­am. Mas tam­bém por todos os tristes, os der­ro­ta­dos e os mor­tos, cujos vestí­gios estão tan­to nos tem­pos lon­gos como nos tem­pos cur­tos, onde só a con­sciên­cia sobre­vive e o espíri­to nova­mente vol­ta para inqui­etar, con­stru­ir e edi­ficar um futuro para a Humanidade. Ele é ape­nas um roteiro, que é ape­nas um cam­in­ho que nun­ca será encon­tra­do. Mas que é tão só a própria incan­sáv­el e despo­ja­da dig­nidade humana: “nos momen­tos de maior exaustão no cal­abouço pro­curei – disse ele – mais na antropolo­gia do que na filosofia, algu­mas respostas que me fiz­er­am sobre­viv­er. Tra­ta-se da bus­ca do ‘dis­co rígi­do’ que deve estar no cen­tro da sub­je­tivi­dade de todos os seres humanos e que deve, um dia, nos unificar para bus­car­mos um des­ti­no comum. É uma utopia.” Pen­so que ela está pre­sente, tan­to nos tem­pos cur­tos da nos­sa vida, como nos seus lon­gos tem­pos em que desa­pare­ce­mos na poeira da História. Nos cur­tos cam­in­hos da nos­sa vida inteira ou nos lon­gos cam­in­hos de todas as ger­ações, que não se cansam de lutar por uma vida mel­hor para todos os seres humanos.

Em breve o Insti­tu­to Novos Par­a­dig­ma vai lançar o doc­u­men­tário Tar­so e Pepe- Por­fian­do futuro.”

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1 foi gov­er­nador do Esta­do do Rio Grande do Sul, prefeito de Por­to Ale­gre, min­istro da Justiça, min­istro da Edu­cação e min­istro das Relações Insti­tu­cionais do Brasil.

2 Mario Benedet­ti, 1971.