Em artigo publicado no jornal Le Monde Diplomatique, Supremo a Céu Aberto, em 6 de fevereiro de 2017, a jornalista, pesquisadora do Sistema de Justiça e doutoranda em Ciência Política da Unicamp, Grazielle Albuquerque, discute o modo como os Ministros do Supremo Tribunal Federal são escolhidos, analisando as candidaturas, indicando ao final a importância da opinião pública em um poder teoricamente contramajoritário.
Aqui o artigo:
A sucessão à vaga do ministro Teori Zavascki colocou mais uma vez o Supremo Tribunal Federal (STF) no centro das atenções. Sua face política, acaso houvesse alguma dúvida, mostrou-se inequívoca. Fora o debate em torno do sorteio da relatoria da Lava Jato, que acabou ficando com Edson Fachin, e a recente homologação das delações da Odebrecht, é a bolsa de apostas em torno do sucessor de Teori a pauta do momento. Contudo, vale olhar além da superfície. Mais do que simples especulações, a discussão pública sobre quem ocupará a vaga aberta no STF demostra como o que antes era restrito aos salões, à costura institucional e mesmo a uma cobertura midiática mais contida, hoje se dá a céu aberto.
O que se vê é uma exposição máxima das candidaturas em que o debate público serve como um termômetro para checar as possibilidades deste ou daquele nome. O maior exemplo desse fenômeno é representado pelo juiz Sérgio Moro, que, no embalo da Lava Jato, foi lançado ao cargo já nos primeiros momentos após a confirmação da morte de Teori, em 19 de janeiro. As redes sociais e a imprensa repercutiram sua candidatura, que contou, inclusive, com o tuíte do pastor Silas Malafaia, entre outros, defendendo a ideia. Duas semanas depois, dia 1o de fevereiro, Moro aparece no topo da lista da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), ao lado de Reynaldo Fonseca, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e de Fausto De Sanctis, do Tribunal Regional Federal da 3a Região (TRF3), como postulantes ao cargo.
A própria existência da lista da Ajufe é um fato emblemático. A classe dos magistrados, que nunca contou com um mecanismo de ingerência na escolha para ministro do STF, viu na conjuntura política uma oportunidade ímpar para tentar emplacar uma tríade com os candidatos da categoria. A lista existe pelo menos desde 2010, mas ganhou novo fôlego agora. Na prática, eles passaram a usar a mesma estratégia do Ministério Público que, desde 2003, consegue fazer com que o Poder Executivo obedeça a ordem dos mais votados na eleição feita pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) para a escolha do Procurador-Geral da República. Ou seja, o que se desenha é um movimento dos juízes federais que, a partir de uma eleição interna, torna público os candidatos que representam a categoria na disputa pela vaga. O detalhe é que ter no topo da lista o nome de um juiz com a popularidade de Sérgio Moro certamente melhora a performance da estratégia institucional.
Sinal dos tempos
Um dos melhores exemplos dessa mudança implícita nas regras do jogo foi o caso Heleno Torres. O advogado tributarista é um dos tidos como “nomeável” por Michel Temer, embora logo tenha perdido força por ter participado de um ato de juristas contra o impeachment de Dilma Rousseff. Acontece que Torres já havia sido sondado, em 2013, para ocupar a vaga deixada por Ayres de Brito, mas na época se deu um movimento inverso ao atual. Ele comentou sobre sua escolha com o jornalista Gaudêncio Torquato, que, no Twitter, escreveu: “No almoço, Heleno Torres me comunicou que foi escolhido para o Supremo. E me convidou para a posse. Claro que irei. Grande jurista”. Isso teria sido o bastante para irritar o Palácio do Planalto, que negou a escolha. Torquato retificou a informação, alegou ter escutado mal por conta do barulho do restaurante. Tentou-se esfriar o boato, mas era tarde. Nos bastidores, dizia-se que Heleno Torres havia “morrido pela boca”. O ponto é que a simples exposição de seu nome teria rifado suas chances, algo oposto ao que acontece hoje.
Em 2015, na disputa pela sucessão de Joaquim Barbosa, quando a polarização política no Brasil começava a dar sinais mais evidentes, a internet se tornou uma arena alternativa de disputa. A campanha #FachinSim, criada com foco nas redes socais, foi a maneira utilizada pelos defensores do nome de Edson Fachin para se contrapor aos que o consideravam um candidato “vermelho” demais. Sem espaço na mídia tradicional, onde vozes mais conservadoras prevaleciam, uma inteligente estratégia voltada para Twitter, Facebook e Youtube – coordenada por profissionais de comunicação – conseguiu não só reduzir o engajamento do #FachinNão como, ao gerar um fato novo, ganhou mais espaço na cobertura jornalística. Naquele momento se mostrava de maneira mais clara uma mudança de comportamento. Prova disso foram as referências diretas dos senadores às manifestações nas redes sociais durante a sabatina de Fachin.
Visto e investigado
Um aspecto positivo dessa mudança é que a bolsa de apostas pública acaba realizando uma espécie de levantamento da ficha pregressa dos candidatos. Quando o nome de Ives Gandra Filho, atual ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e membro da Opus Dei, entrou na roda de opostas, suas posições relativas à submissão da mulher ao homem, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo como algo antinatural e outras defesas de uma agenda ultraconservadora foram expostas e serviram como um freio ao candidato – tido como o preferido de Michel Temer, inclusive por sua defesa da reforma trabalhista encampada pelo governo. Em outros termos, relações, entendimentos e interesses ganham visibilidade e passam por uma espécie de escrutínio público, que, a depender da conjuntura, pode impulsionar ou arrefecer as chances dos candidatos.
Com esse movimento, muito do jogo de poder que era escuso se revela. Nesse sentido, a anticandidatura da professora da Universidade de Brasília (UnB) Beatriz Vargas Ramos, lançado por um manifesto público de mulheres, não só faz um importante protesto político ao colocar em pauta a defesa enfática de temas que dificilmente seriam enfrentados – como a luta das questões de gênero, dos direitos humanos, da descriminalização das drogas, do aborto etc.) – como também expõe os meandros do próprio processo de escolha para ministro do Supremo, historicamente negociado pela cúpula dos Três Poderes.
Onde chegar?
Nesse sentido, é enfático o artigo escrito pelo desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Alfredo Attié Jr. e publicado no blog do jornalista Frederico Vasconcelos, com o seguinte título: “Indicação para o STF cabe ao povo brasileiro”. Em resumo, Attié Jr. faz o que podemos chamar de uma interpretação “inovadora” da Constituição de 1988 ao afirmar que não está explícito que a “indicação” para o cargo caiba ao Executivo, cuja atribuição seria apenas de “nomear” o candidato aprovado pela maioria absoluta do Senado Federal. Sendo direto, Attié Jr. defende a indicação direta (pelo população) ou indireta (pela Câmara dos Deputados) ao cargo de ministro do STF. A ideia pode parecer inviável, mas ela sintetiza um dilema atualíssimo, que é a influência da opinião pública em um poder, teoricamente, contramajoritário.
Saindo de uma análise com tipos ideais, o fato é que estamos hoje no meio do caminho para algum lugar que não sabemos qual é. E se os candidatos ao Supremo passarem a ter plataformas políticas e contarem com o apoio popular? Seria possível termos julgadores com alguma isenção nessas condições? Como garantir a defesa das minorias nesse cenário dependente da maioria? Por outro lado, imaginar que uma escolha feita pela costura interna entre Executivo, Legislativo e Judiciário ocorre isenta de pressões é como acreditar em conto de fadas. Mesmo sem a exposição de hoje, o lobby na construção das candidaturas de cúpula sempre existiu. Contudo, duas coisas mudaram: não apenas o jogo acontece às claras como a sua exposição influencia as regras. O fato de algo ser público não impede que essa característica seja usada como elemento da própria disputa. Ter consciência disso talvez nos ajude a pensar, afinal, aonde queremos chegar.
*Grazielle Albuquerque é jornalista, pesquisadora do Sistema de Justiça e doutoranda em Ciência Política pela Unicamp. Twitter: @grazalbuquerque.