No pre­sente arti­go, Ney Bel­lo, Desem­bar­gador Fed­er­al, Pro­fes­sor da UNB e mem­bro da Acad­e­mia Maran­hense de Letras, faz uma críti­ca à con­fusão con­tem­porânea entre a figu­ra do com­bat­ente e a do juiz, ao diz­er que essa assim­i­lação nega a função de jul­gar, com invasões de com­petên­cia, inter­pre­tações retor­ci­das da lei, arbi­trariedades na exe­cução de decisões, per­son­al­is­mos em se tratan­do de réus especí­fi­cos, desre­speito e inco­formis­mo com decisões de instân­cia supe­ri­or, crit­i­cas pes­soais ao próprio inte­grante do Judi­ciário que é dis­cor­dante. Enfim, “tudo isso é con­se­quên­cia da posição apaixon­a­da que se rev­ela quan­do o juiz deixa a sua função e se tor­na com­bat­ente. É a neg­a­ti­va do próprio con­ceito de mag­istra­do que se ofer­ece à sociedade. O gos­to pelo aplau­so e pelo recon­hec­i­men­to, tão nat­u­rais aos imper­adores romanos — estes, sim, com­bat­entes — ago­ra invade o Judi­ciário e tur­va a sua impar­cial­i­dade.”

O Judi­ciário Com­bat­ente

Qual de nós gostaria de ser jul­ga­do pelo gen­er­al do exérci­to inimi­go?
Quem recon­hece­ria vir­tudes no adver­sário a pon­to de per­mi­tir que ele con­de­nasse ou absolvesse a nós mes­mos, de acor­do com a sua recon­heci­da com­petên­cia e o seu notáv­el con­hec­i­men­to téc­ni­co? Quem seria mag­nân­i­mo ao pon­to de se deixar jul­gar pelo líder do inimi­go, aban­do­nan­do a tran­quil­i­dade que vem da impar­cial­i­dade do juiz?
Leitores e escritores foram jul­ga­dos na Idade Média por quem se ded­i­ca­va à inves­ti­gação, à perseguição e ao com­bate à here­sia, à apos­ta­sia e às ofen­sas a Deus, todas prat­i­cadas através das divul­gações de ideias.
Sabe­mos — da história, da fil­mo­grafia e da lit­er­atu­ra — o resul­ta­do des­ta guer­ra: con­denaram-se filó­so­fos, pro­fes­sores, acadêmi­cos e livres pen­sadores. Naque­les idos, quem com­ba­t­ia tam­bém jul­ga­va, mas o fazia sem­pre — o com­bate e o jul­ga­men­to — em nome de Deus.
Aque­le que age para inves­ti­gar, punir e acabar com as práti­cas obje­to de seu diu­turno afaz­er e das quais acusa ter­ceiros terá os olhos aten­tos à inocên­cia do réu e os ouvi­dos pron­tos a escu­tar seus argu­men­tos de defe­sa? Respeitará cega­mente a lei, mes­mo que isso sig­nifique que seu com­bate elegeu um alvo equiv­o­ca­do? Admi­tirá a inex­istên­cia de provas da acusação se for o caso? Terá equi­líbrio e firmeza para recon­hecer exces­sos se ele próprio con­cla­mar o públi­co a jun­tar forças con­si­go no com­bate ao obje­to do proces­so?
Ou a pre­sença no cam­po de batal­ha o tor­na apaixon­a­do pela luta e pela vitória, não per­mitin­do que recon­heça atos equiv­o­ca­dos de quem acusa e a inex­istên­cia de provas de cul­pa de quem está sub­meti­do a ele próprio?
Exis­tem batal­has jus­tas, é ver­dade! Tão jus­tas e cor­re­tas que somente ser con­tra elas já colo­ca o Homem na con­tramão dos val­ores pos­i­tivos. A guer­ra con­tra a cor­rupção é uma delas! Ela é fei­ta de batal­has jus­tas.
Ninguém — a não ser os crim­i­nosos — é a favor da cor­rupção!
Nen­hum juiz é con­tra o com­bate à cor­rupção.
Mas vamos nos lem­brar que ninguém era con­tra Deus na Idade Média.
A questão não é ser con­tra ou a favor do com­bate. É quem deve ter na sociedade mod­er­na a atribuição de com­bat­er e quem deve ter a função de jul­gar tam­bém os exces­sos e os erros dos com­bat­entes!
É pre­ciso perce­ber que uma coisa é ser a favor ou ser con­tra a cor­rupção, e out­ra coisa bem difer­ente é a veraci­dade de todas as acusações de cor­rupção e a cor­reção de todas as sen­tenças con­de­natórias por cor­rupção.
Quem com­bate está apto a perce­ber a inocên­cia? Quem com­bate algo está apto a ser impar­cial e a recon­hecer que este alguém pode não ter prat­i­ca­do o ato do qual é acu­sa­do? Ou perce­ber que deve ser punido, mas para aquém da pena máx­i­ma? Ou o dese­jo de vencer é sem­pre mais forte — para quem guer­reia? Será que o com­pro­me­ti­men­to pes­soal com a causa é mais poderoso que qual­quer sen­so de impar­cial­i­dade ou de recon­hec­i­men­to de que a acusação pode ser um erro?
O Judi­ciário com­bat­ente — de braços dados com a acusação, em uma cruza­da pelo clam­or públi­co e pelos val­ores morais e absorven­do todo o dis­cur­so moral­ista do sen­so comum — com livre tro­ca de apoios e infor­mações com as forças e com os tarefeiros das acusações é uma real­i­dade.
E é um erro!
Erro maior ain­da quan­do Deus invade o Esta­do laico e con­cla­ma a todos para a cruza­da metafísi­ca con­tra um inimi­go etéreo. Esta pos­tu­ra não man­tém a nos­sa dev­i­da dis­tân­cia de movi­men­tos teocráti­cos de out­ras pla­gas.
A ideia de Judi­ciário da idade mod­er­na não se con­funde com mag­istra­do que imple­men­ta políti­cas públi­cas, que com­bate seja lá que ilíc­i­to for, ou que é pro­tag­o­nista de algu­ma parcela da moral­i­dade. O ato de con­cla­mar o sen­so comum e a mídia para o com­bate que o próprio juiz tra­va e tam­bém jul­ga não é próprio da mod­ernidade.
Não é função do Judi­ciário mod­er­no.
É negar a função do juiz!
A pro­va maior dis­to é que não raro percebe­mos invasões de com­petên­cia, inter­pre­tações retor­ci­das da lei, arbi­trariedades na exe­cução de decisões, per­son­al­is­mos em se tratan­do de réus especí­fi­cos, desre­speito e inco­formis­mo com decisões de instân­cia supe­ri­or, crit­i­cas pes­soais ao próprio inte­grante do Judi­ciário que é dis­cor­dante… Tudo isso é con­se­quên­cia da posição apaixon­a­da que se rev­ela quan­do o juiz deixa a sua função e se tor­na com­bat­ente. É a neg­a­ti­va do próprio con­ceito de mag­istra­do que se ofer­ece à sociedade.
O gos­to pelo aplau­so e pelo recon­hec­i­men­to, tão nat­u­rais aos imper­adores romanos — estes, sim, com­bat­entes — ago­ra invade o Judi­ciário e tur­va a sua impar­cial­i­dade, na medi­da em que evo­ca a ati­tude acei­ta e dese­ja­da pelo sen­so comum. Fácil explicar o dese­jo de pal­mas de um jogador; difí­cil ver no papel do mag­istra­do sua neces­si­dade.
A ideia de um Judi­ciário de com­bate é uma grande falá­cia!
Um equívo­co históri­co na medi­da em que nos afas­ta do papel do juiz e nos con­funde com a acusação. Um erro que nos aprox­i­ma de um dos con­tendores, rompe nos­sa impar­cial­i­dade e nos leva de vol­ta para a idade média.
Não ser gen­er­al de tropas, par­ceiro da acusação ou tarefeiro do sen­so comum não impli­ca con­cor­dar com o ban­di­do. Isso impli­ca tão somente enten­der que o papel con­sti­tu­cional do juiz pre­cisa ser obser­va­do para que a sociedade se man­ten­ha equi­li­bra­da e segu­ra. O papel que legal­mente nos cabe cer­ta­mente não é con­cla­mar as mas­sas, decla­mar em redes soci­ais ou diri­gir qual­quer com­bate.
Se o juiz para além de jogador for um jogador agres­si­vo, quem no está­dio será capaz de respeitar o seu api­to?
Bus­can­do apoio no sem­pre sóli­do Aristóte­les, falá­cia é um fal­so enun­ci­a­do que sim­u­la uma ver­dade e nos impõe um equívo­co e uma men­ti­ra.
A falá­cia do juiz com­bat­ente nos faz aban­donar a con­strução mod­er­na de um Poder Judi­ciário inde­pen­dente, impar­cial e afir­ma­ti­vo dos dire­itos fun­da­men­tais. É um equívo­co que bor­de­ja o total­i­taris­mo e o autori­taris­mo, que nos faz namorar com a ditadu­ra da toga e mer­gul­ha a todos nós nos des­ti­nos morais de uma nova inquisição!