![](https://apd.org.br/wp-content/uploads/2023/02/menelaus-finds-helen-alexander-rothaug.jpg)
Em importante contribuição para o debate acadêmico e social, Mirian Gomes, Advogada, Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Doutoranda em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, autora do livro Direito à Imagem nas Redes Sociais (Belo Horizonte: Juruá, 2019), analisa a relação entre amor, vingança e justiça, a partir de provocação nietzschiana
Escrito originalmente para a Academia Paulista de Direito, o estudo merece a leitura ponderada e a reflexão sobre seus desdobramentos nos âmbitos da dogmática e da pragmática do direito.
Amor, vingança e justiça
Mirian Gomes
“Friedrich Nietzsche na obra Humano, Demasiado Humano, lança a seguinte pergunta: Por que exalta o amor em detrimento da justiça e se diz dele coisas mais lindas, como se ele fosse de uma essência superior a ela?[1]
O questionamento de Nietzsche percorre uma biografia secular. De tragédias a romances, certamente o amor sempre foi um sentimento capaz de justificar atos extremos, amparado, muitas vezes, por uma justiça inflamada pelos costumes da época, relegando à vítima à culpa por seu próprio flagelo.
Se amor e justiça estão em patamares distintos, o degrau da vingança se encarregou de uni-los. A justiça de Talião feita pelas mãos do homem desonrado, despido de seu patriarcado, exposto à humilhação pública. Uma justiça pouco racional, muito emotiva, instintiva, sustentada num desejo de vingança.
Nessa obsoleta ordem social, por inúmeras vezes, o amor foi levado ao banco dos réus, seja na figura do réu ou do acusado. Euclides da Cunha e seu desejo de vingança contra Dilermando ficou gravado nos anais da justiça e no inconsciente popular. Se para uns era vítima e nada mais fez do que defender seu amor e honra, para outros, não passava de um homem egoísta buscando na vingança a alternativa perfeita para apaziguar o ego.
A defesa de Dilermando soube explorar muito bem a juventude do acusado e sua paixão pela mulher casada – como algo que qualquer homem estaria sujeito a sentir – denotando, enquanto homem, ser tão vítima quanto o marido:
Quem não teve desses pecados aos 17 anos? Em seguida, sustentou a doutrina que admite o adultério, desde que o seu responsável tenha pouca idade, classificando de convenções sociais as manifestações hipócritas dos que não têm coragem de confessar suas fraquezas.
Demorou-se em divagações acerca da diferença da responsabilidade do adolescente e do adulto, citando vários autores, procurando demonstrar que não se pode falar em sinceridade dos atos de um adolescente, porque, o mesmo nunca é imoral nem moral, mas simplesmente amoral.[2]
O triste enredo da obra, nos ensina que quando a honra de um marido traído estava no cerne da questão, a justiça de Themis não se mostrava eficiente. Cabia à sua filha Diké a difícil tarefa de mediar – de maneira pouco equânime – a balança da justiça.
Sem vendas, de olhos bem abertos e com espada na mão, a justiça visceral de Diké agradou ao pungente clamor público, resultando numa justiça de resultado sangrento, parcial e adequada aos costumes de uma sociedade benevolente ao machismo, na qual a vida de uma mulher equipara-se em valor, à honra de um homem.
Os tempos mudaram, o sangue não deixou de escorrer, mas a justiça vingativa ganhou novas formas de repercussão, emolduradas por um tom de ingenuidade, acaso ou descaso, utilizando-se das redes sociais para criar cenários vexatórios, humilhantes e pitorescos, muitas vezes sob o manto do anonimato.
A vulnerabilidade do ser humano frente às novas tecnologias é motivo de preocupação para os operadores do Direito, que buscam preservar os direitos da personalidade contra as constantes ameaças de lesão. José Oliveira Ascensão ratifica este entendimento, afirmando que “a sociedade que nos rodeia é uma sociedade tecnologicamente avançada. O homem, no seio dela, é uma mónada altamente vulnerável: as possibilidades de intromissão na vida de cada pessoa são hoje inúmeras e ameaçadoras”.[3]
No caso da imagem como direito da personalidade, Claudio Luiz Bueno de Godoy explica que é “a representação identificativa da pessoa ou este sinal de distinção consubstanciado pela imagem que lhe dá a condição de atributo direto da personalidade, ensejando direito, que deve ser considerado como um dos direitos da personalidade”. Portanto, é exatamente essa representação identificativa que dá à imagem a condição de direito da personalidade. [4]
Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), “o direito à imagem assumiu posição de destaque no âmbito dos direitos da personalidade devido ao extraordinário progresso tecnológico, sobretudo no âmbito das comunicações, tanto no desenvolvimento da facilidade de captação da imagem, quanto na de sua difusão”.[5]
Neste cenário tecnológico onde a imagem ganha posição de destaque e protagoniza uma realidade virtual de grande valia, a vingança encontra território fértil e tem sido vastamente utilizada por corações ofendidos.
Como asseverou Nietzsche ao tratar da vingança: “os homens grosseiros que se sentem ofendidos costumam colocar tão alto quanto possível o grau da ofensa e contar sua causa em termos muito exagerados, nada mais que para ter o direito de saborear o sentimento de ódio e de vingança uma vez este despertado.[6]
Em que pese o distanciamento cronológico entre a citação acima e o surgimento das redes sociais, na maioria dos casos de vingança, os homens ainda ocupam posição de destaque como autores. Se antes sua dor justificava a arma em punho, agora são os dedos velozes na tela de um aparelho celular ou no teclado do computador que disparam contra a imagem da vítima, dilacerando sua reputação.
Enfim, a tecnologia nos trouxe uma forma de “fazer justiça com as próprias mãos” sem aparentemente sujá-las,afinal, a honra antes paga com a vida, agora é quitada com a reputação alheia.
Na velocidade com que as informações transitam pela internet, a retirada de uma imagem desonrosa, nem sempre encerra o dano. Minutos, horas, dias, meses, são indiferentes na rede. Uma postagem pode pulverizar além das fronteiras geográficas em questão de segundos e atingir um número incalculável de pessoas. Sem o glamour das tragédias shakespearianas, com personagens que bradavam sua dor aos quatro cantos, em versos e prosa, a vingança nas redes sociais não leva sequer legenda, se instaura com a imagem da pessoa amada em situações íntimas, captadas sob a égide da confiança e do amor.
Findo o amor, parece-nos que o contrato de confidencialidade e confiança é subjugado frente à dor do abandonado. Não existe moral que resista ao desejo de vingança. Ao contrário, é justamente a imoralidade do ato que mensura a reparação. Quanto mais lesivo o dano, mais reparada estará a dor. A este evento, a doutrina deu o nome de “pornografia de vingança” que consiste na conduta de divulgar, sem consentimento da outra parte, fotos, vídeos, montagens, que contenham conteúdo sexualmente íntimo. O intuito da conduta, característico do próprio nome, é a vingança, seja pelo fim de um relacionamento amoroso, seja por qualquer outro motivo que torne a prática característica de uma revanche.[7]
A vingança que durante séculos levou mulheres à morte física, com o advento das novas tecnologias, têm levado suas vítimas à morte social, com a exclusão do convívio social, forçadas, pela vergonha de ver sua vida íntima levada ao conhecimento público, a se esconder da sociedade. Por mais antagônica que a frase possa parecer, neste caso, a justiça de um indivíduo se realiza através da vingança.
Isso porque, o ofendido em sua dor, busca compensá-la retirando da esfera do ofensor um bem que ele acredita ser de tão valia quanto o que lhe foi arrancado.
Esse sentimento de vingança que se traveste de justiça, como já dissemos acima, está enraizado em nossa sociedade há tempos e se mantém atrelado ao desejo de castigo e de reparação da dor. E não foi deste desejo que nasceu a justiça? Não seria a vingança, a justiça em sua forma mais visceral, instintiva, antes desprovida de moral?
Diante de tantos questionamentos, parece-nos que eliminar a vingança de nossa sociedade é tarefa impossível, pois encontra-se inerte no gene do ser humano e, pode ser desperta através de sentimentos de dor, tristeza ou fúria. Neste momento, toda a moral lapidada é esquecida, e ele retoma à sua origem animalesca, terreno fértil para além das telas, onde milhares de espectadores aguardam ansiosos pela exposição das mazelas humanas.”
_______________________________________________________________________________________
NOTAS
[1] Nietzsche, Friedrich, Humano Demasiado Humano, São Paulo, Lafonte,2019, p. 71
[2] http://www.oabsp.org.br/sobre-oabsp/grandes-causas/as-mortes-de-euclides-da-cunha-e-seu-filho
[3] ASCENSÃO, José de Oliveira. A dignidade da pessoa e o fundamento dos direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 103, p. 284. jan./dez. 2008.
[4] GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2001. p. 38.
[5] Progresso tecnológico amplia as ações sobre violação ao direito de imagem. 19 ago. 2016. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Progresso-tecnol%C3%B3gico-amplia-as‑a%C3%A7%C3%B5es-sobre-viola%C3%A7%C3%A3o-ao-direito-de-imagem>. Acesso em: 14 abr. 2017.
[6] Nietzsche, op. cit. Pág. 69
[7] A conduta passou a ser considerada como crime como advento da Lei nº 13.718, que entrou em vigor em 24 de setembro de 2018, e inseriu novos crimes no texto do Código Penal. Dentre eles, foi criada a figura do crime de divulgação de cena de estupro ou de cena de sexo ou pornografia. O artigo 218‑C prevê como condutas criminosas atos de oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio, fotos, vídeo ou material com conteúdo relacionado à pratica do crime de estupro, ou com cenas de sexo, nudez ou pornografia, que não tenham consentimento da vítima. Fonte: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/pornografia-de-vinganca acesso em 29/06/2020