
O artigo a seguir é de autoria de Sassá Tupinambá, militante do movimento e importante liderança indígena„ membro da CAPISP, educador popular e socioambiental, terapeuta naturopata, pesquisador no Núcleo Opará/CLAEDS/FLACSO, Coordenador do NEARMEPOT, Coordenador da TV Tamuya e radioamador.
A Raiz Ferida Que Floresce:
O Estupro como Ferramenta Colonial e a Violência contra a Mulher Indígena na Economia do Genocídio
Sassá Tupinambá
A recente repercussão no Jornal Nacional sobre uma pesquisa de DNA mitocondrial, que revela a mulher indígena como ancestral de grande parte da população brasileira, parece novidade para muitos. Mas para nós, povos indígenas, essa sempre foi uma verdade viva, transmitida pelas palavras das anciãs, pela força dos nossos rituais e pela memória guardada no corpo-território das nossas mães e avós. A TV Tamuya e o Seminário “Não Sou Pardo, Sou Indígena: o pardismo em debate”, realizado há quatro anos, já haviam exposto essa discussão que começa, lentamente, a ganhar visibilidade fora das residências de famílias indígenas. Para muitos, isso foi uma surpresa científica. Para nós, povos originários, é apenas a confirmação do que sempre soubemos: somos a raiz deste território. A mulher indígena é a origem. Mas essa origem foi marcada por violência, não por harmonia.
A ancestralidade indígena presente na formação do povo brasileiro não é fruto de um convívio pacífico ou de uma celebração da diversidade, como o mito da democracia racial tentou nos convencer. Trata-se, em grande medida, de uma mestiçagem forçada, nascida da violência colonial. O estupro das mulheres indígenas foi uma prática sistemática, um método de dominação empregado desde o primeiro momento da invasão europeia.
Nosso povo Tupinambá foi um dos primeiros a sofrer esses ataques. Ainda no século XVI, documentos da época relatam a captura de mulheres indígenas como troféus de guerra ou como instrumentos de troca e escravização. Essas práticas não foram desvios da colonização — foram seu motor. O estupro, nesse contexto, não é somente um crime individual, mas uma tecnologia de poder, uma política de Estado, um pilar da lógica colonial.
O economista indígena quéchua Hector Mondragón, que lecionou na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), no curso de Economia, dedicou seu doutorado ao estudo da Economia Ameríndia, ou da Abya Yala anterior à invasão europeia. Percorreu diversos territórios indígenas do continente para analisar, diretamente, as complexas relações econômicas entre os povos originários. A partir dessa base, Mondragón nos oferece uma análise contundente: o estupro é parte da economia colonial. Ele integra a engrenagem da exploração, sendo uma ferramenta da indústria do etnocídio. Permite quebrar a resistência dos povos originários, para dissolver suas estruturas familiares e espirituais, para apagar identidades. O corpo da mulher indígena foi usado como campo de batalha para a dominação e como laboratório de uma mestiçagem imposta que hoje ainda é celebrada como se fosse natural.
Essa violência produziu efeitos profundos e duradouros. Um deles foi a invenção da categoria “pardo”, que se tornou um mecanismo institucional de apagamento identitário. A mesma estrutura colonial que violou nossos corpos agora nega a nossa existência. O Estado brasileiro diz: você não é indígena, é pardo. A violência sexual é seguida de uma violência epistêmica, que transforma a descendência forçada em desidentificação. O termo “pardo” — uma das maiores ficções do Estado brasileiro — nos rouba a possibilidade de reivindicar nossos pertencimentos originários.
Foi para romper com esse silenciamento que a TV Tamuya, em parceria com o GT Indígena do Tribunal Popular, organizou o seminário “Não Sou Pardo, Sou Indígena: o pardismo em debate”, ainda em 2020. Naquele espaço, que contou com pesquisadores indígenas e não-indígenas, indígenas recém-despertos do coma do etnocídio e lideranças indígenas, denunciamos como o apagamento da identidade é um prolongamento da violência colonial. Denunciamos como o Brasil, em sua formação, produziu uma ferida aberta — e como tenta, até hoje, cobri-la com o manto da mestiçagem sem justiça.
A recente cobertura da grande mídia sobre o DNA mitocondrial pode até parecer um avanço, mas só será de fato transformadora se for acompanhada por uma escuta real às vozes indígenas. A ciência, quando descolada da memória histórica e do reconhecimento da violência, pode reforçar os mesmos apagamentos que pretende combater. Não basta identificar a origem genética — é preciso reconhecer os processos que a constituíram: a invasão, o estupro, o etnocídio, o racismo.
Recusar o “pardismo” é afirmar a retomada. Retomada da identidade, da memória, da dignidade. A mulher indígena que está na origem do Brasil não é uma figura mítica do passado: é nossa avó, é nossa mãe, é a raiz ferida de onde brota nossa luta. Honrar essa ancestralidade é denunciar a violência, é descolonizar os saberes, é reconstruir nossos caminhos com autonomia e justiça.
E é justamente isso que estamos vivenciando: um levante dos brotos de um caule que o Estado brasileiro achou ter matado desde a raiz. Não é à toa a morosidade nas publicações dos dados do Censo 2022 em sua totalidade. Mesmo não sendo um número próximo da realidade, o fato de aparecer 1,7 milhões de pessoas autodeclaradas indígenas no censo, pegou de surpresa todos os que contara com o sucesso das políticas públicas integracionistas e assimilacionista e os que não acreditaram e não acreditam na nossa capacidade de mobilização nacional. Apesar do genocídio, apesar do estupro, apesar do etnocídio, AINDA ESTAMOS AQUI e cada vez mais fortes e a primavera será de flores, que serão frutos e sementes daquelas que os ancestrais de vocês violentaram (estuprador não é nosso ancestral).
A violência sexual contra mulheres indígenas não é um capítulo superado da história — ela é uma estrutura que segue viva nas formas de racismo institucional, na negação de identidade, no feminicídio, no apagamento linguístico, na violação de corpos e destruição espiritual. Precisamos, como sociedade, ter a coragem de olhar para essa ferida. Precisamos romper o pacto de silêncio que ainda protege os herdeiros da violência colonial.
Não somos pardos. Somos sobreviventes. Somos indígenas. E seguiremos resistindo até que nossa história seja reconhecida com verdade, justiça e reparação.