Dali Narciso

No pre­sente arti­go, pub­li­ca­do orig­i­nal­mente em dezem­bro de 2020, no Jor­nal Ter­ra Tavares, Alfre­do Attié anal­isa os cam­in­hos e os sig­nifi­ca­dos do vir­tu­al e sua relação para­dox­al com o que chamamos de real­i­dade.

 

Estresse do Vir­tu­al

Alfre­do Attié (Filó­so­fo, Jurista e Escritor, é Tit­u­lar da Cadeira San Tia­go Dan­tas da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, que pre­side, e exerce a função de desem­bar­gador, em São Paulo)

“Há uma gota de Kitsch em cada obra de arte”

A pan­demia nos lançou efe­ti­va — e defin­i­ti­va­mente (será?) — no mun­do vir­tu­al, assim operan­do uma rev­olução no modo como exper­i­men­ta­mos a vida e o que chamamos de real­i­dade.

Para con­statar isso bas­ta uma leitu­ra ligeira da impren­sa escri­ta, que se tornou, quase que com­ple­ta­mente, uma série de comen­tários frag­men­tários do que ocorre nesse mun­do que nos rela­ciona – nós, cada vez mais, indi­ví­du­os iso­la­dos  e auto referi­dos – com as telas dos com­puta­dores e dos smart­phones, ger­ado­ras de ima­gens, filmes, games, tex­tos, sons, ruí­dos, exibições, dados, em posts, lives e stream­ings, por meio das quais pas­samos a realizar das mais sim­ples às mais com­plexas ativi­dades cotid­i­anas, da infor­mação à comu­ni­cação.

Quem é você aí atrás dessa tela, per­gun­ta­mos. Talvez devêsse­mos inda­gar mel­hor quem é esse diante dessa tela que se ofer­ece ao meu olhar. Sim, quem é esse “eu” que aparece refleti­do ou inver­tido na tela, cap­tura­do pela peque­na câmera que o apar­el­ho ofer­ece e con­tém. Pen­samos ser sujeitos da infor­mação e da comu­ni­cação, no sen­ti­do ati­vo da palavra, mas, tudo indi­ca, somos mes­mo sujeitos, sub­meti­dos a essa relação – súdi­tos e não cidadãos. O que real­izamos diante da tela não é ativi­dade, mas acom­pan­hamen­to de um fluxo que não con­tro­lam­os, seguimos (mes­mo que sejamos segui­dos, o que vale é a influ­en­ci­ado­ra dig­i­tal, a pes­soa que têm muitos súdi­tos, em números que assom­bram). Se você aparece nesse mun­do – de modo expres­si­vo e não ape­nas oca­sion­al – você nec­es­sari­a­mente será cita­do e chama­do para diz­er algo em todas as out­ras mídias. O que você diz ou ape­nas mostra pas­sa a ter um val­or espe­cial, como o das mer­cado­rias de alto luxo. Daí que há um assan­hamen­to de destaque, uma com­petição de investi­dores para encon­trar a fig­ur­in­ha que é recon­heci­da ime­di­ata­mente, isto é, sem neces­si­dade de medi­ação, de apre­sen­tação, de intro­dução. Ave, César! Salve o imper­ador e a imper­a­triz do império dig­i­tal. Você terá dire­ito ao leit­mo­tiv e à imagem e voz emblemáti­cas de um Darth Vad­er. Ninguém se impor­ta muito, con­scien­te­mente, com a men­sagem que você pas­sa, mas todo mun­do sente a sua pre­sença e sabe o que você está trans­mitin­do. Você se tornou meio e isso é sua men­sagem. 

O ter­mo “influ­en­ci­ador” diz tudo isso. Ele con­tém o pre­fixo “in”, que sig­nifi­ca inte­ri­or, de den­tro, mas tam­bém des­igna um movi­men­to que é do exte­ri­or ao inte­ri­or, de pen­e­tração. E ref­ere a “fluên­cia” em que se recon­hece o saber que, hoje, impor­ta, quer diz­er, o fluxo inin­ter­rup­to, com a enton­ação cer­ta. Vul­gar­mente, dize­mos que quem é flu­ente, sabe. Pois a fluên­cia deter­mi­na que não haja inter­va­l­os, momen­tos de reflexão, titubeios, inde­cisão, dúvi­das. A influên­cia é a ação de alguém ou algo sobre out­ra pes­soa ou coisa, (pre)domínio. Influên­cia é poder, numa relação desigual. Crédi­to, ou seja, aque­la situ­ação em que se pode diz­er “põe na min­ha con­ta”. Se você não é influ­en­ci­ador, você empres­ta a autori­dade de um deles, e cita, ou ape­nas chama alguém para assi­s­tir a uma breve per­for­mance de sua influ­en­ci­ado­ra favorita. Não impor­ta o tema, a influên­cia é, por (ausên­cia de) definição, genéri­ca. Qual­quer assun­to vale, porque tudo é trata­do na super­fí­cie de tal modo que não é pos­sív­el con­fir­mar. O saber influ­en­ci­ador não tem auto­ria nem assi­natu­ra, ele é apan­hado de qual­quer lado, tem­po, lugar e, repro­duzi­do assim, na for­ma de um plá­gio espetac­u­lar, impõe-se, impera.

Mas a pan­demia trouxe uma novi­dade diante desse fluxo de mer­cado­rias influ­en­ci­ado­ras. Ela mostrou que qual­quer pes­soa pode pro­duzir seu acon­tec­i­men­to. Sim, o número de lives cresceu, o número de pes­soas que pas­saram a se dedicar a faz­er suas lives, tam­bém, muito emb­o­ra as estatís­ti­cas pre­fi­ram con­tar o número de views e do públi­co que segue as pro­duções mais caras e profis­sion­ais.

Esse cresci­men­to do número de ger­adores de con­teú­do cor­re­sponde à agudiza­ção de uma tendên­cia, que chamo de frag­men­tação e difusão do espaço públi­co. Seria algo assim como o aban­dono das arquiban­cadas por uma boa parte (não a maio­r­ia) de torce­dores, e sua invasão do espaço insti­tu­cional, exclu­si­vo do cam­po de fute­bol. Ali, ess­es inva­sores ou hack­ers, que pas­sam a jog­ar seu próprio jogo. Eles não cri­am seu próprio espaço, muito menos dese­jam se lim­i­tar a um mun­do pri­va­do. Ocu­pam o espaço que é mostra­do como plane­ja­do e con­struí­do para a fruição comum, mas que é, na ver­dade, exclu­si­vo dos poucos que têm aces­so autor­iza­do a ele. Ali, fazem cortes brus­cos e pas­sam a expor o que querem, seu con­teú­do, que bor­ra aque­le con­teú­do que era apre­sen­ta­do como con­teú­do nor­mal, norma­ti­za­do, pre­ten­sa­mente uni­ver­sal. Os inva­sores são pro­du­tores de um espaço públi­co novo. Vejam que o ter­mo “invasão” guar­da o mes­mo pre­fixo “in”, que sig­nifi­ca intro­jeção, ingres­so, movi­men­to de fora para den­tro. Sua raiz não é a do fluxo, con­tu­do, mas a do esta­b­elec­i­men­to, con­quis­tar à força para ocu­par, per­manecer. A invasão é como que a inter­rupção do fluxo, con­strução de ilhas que sep­a­ram as sequên­cias pre­ten­sa­mente lin­ear­es, de clareiras em meio à flo­res­ta arti­fi­cial que se dese­ja­va límp­i­da da fluên­cia.

Claro que o mun­do dos influ­en­ci­adores bus­ca se defend­er, resta­b­ele­cen­do mar­cas, retoman­do áreas. Dinâmi­co em si, o mun­do da influên­cia procu­ra con­stan­te­mente novos nomes, indo mes­mo atrás de hack­ers que queiram se con­vert­er a sua ordem. Os influ­en­ci­adores, de qual­quer for­ma, pas­sam a cobrar por seu con­teú­do e a pro­duzi-lo de modo espe­cial, fazen­do parce­rias com out­ras mídias mais tradi­cionais, crian­do a aura da exclu­sivi­dade e do luxo. Dis­farçam sua aparição por meio de blo­queios de aces­so, afa­s­tan­do-se da aparên­cia para o mun­do mais cobiça­do do dese­jo. O inva­sor está aí, à mão, aber­to e acessív­el. O influ­en­ci­ador está, ago­ra, dis­tante, não pode ser alcança­do sem pas­sar por asses­so­ria, con­tratos, pon­tos de par­ti­da, condições. Ele se tornou per­son­al­i­dade, pro­te­gi­da por sua importân­cia, inat­ingív­el.

O inva­sor con­tin­ua autor. O influ­en­ci­ador se tor­na con­tratante de autores, sua lóg­i­ca pas­sa a ser a da infal­i­bil­i­dade, ao explo­rar o saber ver­dadeiro que se põe a seu serviço, anôn­i­mo.

A invasão e o anon­i­ma­to trans­for­mam o fluxo da infor­mação e da comu­ni­cação, mul­ti­pli­can­do, no primeiro caso, a aparên­cia ou aparec­i­men­to; e a sub­mis­são, no segun­do caso, em que a plu­ral­i­dade é escon­di­da, ofer­tan­do-se sob o nome de uma pes­soa só.

Esse proces­so, por assim diz­er, dialéti­co, em que há uma impli­cação con­stante das per­son­agens, car­ac­ter­i­za o uni­ver­so vir­tu­al, que é, por definição, depen­dente do aparec­i­men­to e da aparên­cia, da con­strução de per­son­agens, aves­so a seu antípo­da, o uni­ver­so real.

Real­i­dade e vir­tu­al­i­dade têm par­entescos, mas se dis­tinguem sobre­tu­do pela capaci­dade de serem feitas checa­gens, na primeira, e pela impre­cisão dos con­troles, na segun­da. Daí porque a fluên­cia do fake, das men­ti­ras se tor­na mais fácil no vir­tu­al. A real­i­dade se adap­ta ao tem­po, mas é sobre­tu­do espaço de encon­tro, de com­par­til­hamen­to. A vir­tu­al­i­dade é sobre­tu­do tem­po, iso­la­men­to que se dis­farça em proces­so con­tín­uo de des­en­con­tros. O real é sin­to­nia, simultâ­neo e atu­al — sin­cro­nia, enquan­to o vir­tu­al é diss­in­to­nia, anacro­nia e inat­u­al. O rádio, por exem­p­lo, per­tence ao real, porque exige que se esta­beleça uma lig­ação sin­crôni­ca. O pod­cast, vir­tu­al, porque trans­fere o encon­tro para uma comu­ni­cação ausente. O real pede, ao menos em potên­cia, um diál­o­go. O vir­tu­al espera por fãs, seguido­ras.

O fenô­meno da invasão dos espaços vir­tu­ais tem, a meu ver, um sig­nifi­ca­do impor­tante. Acred­i­to que ele aponte para o estresse ou esgo­ta­men­to do vir­tu­al. A pan­demia apro­fun­dou esse sen­ti­men­to. Dese­jamos nova­mente os encon­tros, mas não sabe­mos mais como pro­por­cionar o ambi­ente para que ocor­ram, desapren­demos uma tec­nolo­gia, a téc­ni­ca do real, de realizar, ao ter­mos ado­ta­do a fácil téc­ni­ca das teclas, dos toques e das telas.

Quer­e­mos ser reais, mas não sabe­mos ain­da desven­dar os links que nos lev­em ao mun­do a que gostaríamos de per­tencer.