Teria o requer­i­men­to de iní­cio do porces­so de impeach­ment do Min­istro Gilmar Mendes con­teú­do jurídi­co autên­ti­co ou vis­aria ape­nas a afas­tar um mag­istra­do que se tem colo­ca­do ao lado da con­cepção do proces­so penal como garan­tia da defe­sa e dos val­ores con­sti­tu­cionais? Mari­val­do Muniz, advo­ga­do e estu­dioso de filosofia, fun­cionário públi­co, responde à inda­gação, desen­vol­ven­do breve críti­ca ao teor da petição e ao con­teú­do das redes soci­ais.

 

O pedi­do de impeach­ment de Gilmar Mendes e seu con­teú­do políti­co

Mari­val­do Muniz

Acabei de obter o teor da petição acer­ca do impeach­ment e, antes mes­mo de lê-lo, fui no índice e, ali, deparei-me com o seguinte títu­lo de um capí­tu­lo “7.11. GILMAR MENDES PATROCINA TESE EM FAVOR DA DIMINUIÇÃO DA PENA DO CRIMINOSO CONDENADO LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA”.

Em que pese o dev­i­do respeito, só o títu­lo já nos remete à ideia de uma posição políti­ca, de um escol­ha. Com quase 36 anos de Poder Judi­ciário, o que mais me tor­na um espíri­to feliz com a Justiça é jus­ta­mente a inde­pendên­cia dos mag­istra­dos e o garan­tismo penal, como apaná­gio da democ­ra­cia, seu pilar.

Se um mag­istra­do com­preende que cer­to réu con­de­na­do nas instân­cias ordinárias deve ter a pena reduzi­da, isso é sua con­vicção, man­i­fes­ta­da den­tro de sua inde­pendên­cia. O que não deve — e não pode — é ante­ci­par esse juí­zo. E somente pela escol­ha dessa sin­gu­lar expressão, já é pos­sív­el antev­er um viés pro­fun­da­mente políti­co na escol­ha do pedi­do de impeach­ment.

O garan­tismo penal é necessário. Lem­bro do grande Min­istro Eros Grau, homem de pro­fun­da hon­or­a­bil­i­dade. Era um guardião das garan­tias indi­vid­u­ais.

A luta con­tra o garan­tismo penal, con­tra os dire­itos fun­da­men­tais vem encon­tran­do eco numa legião de lei­gos, estim­u­la­dos por home­ns da vida forense, mas com grande vaidade e que norteiam os atos por uma exposição midiáti­ca. Isso entris­tece, pois sabe­mos o quão árduo foi alcançar a democ­ra­cia, incip­i­ente, mas que vin­ha con­sol­i­dan­do na liber­dade e na respos­ta jus­ta em ter­mos penais, num proces­so penal sério e com­pro­meti­do com a bilat­er­al­i­dade e uma leva de garan­tias fun­da­men­tais.

Essa legião de lei­gos, que gri­tam ódio e elegem inimi­gos nas pes­soas que pen­sam difer­ente, estão a atacar juízes, min­istros, pro­mo­tores, advo­ga­dos, olvi­dan­do-se que a democ­ra­cia somente sobre­vive com uma justiça inde­pen­dente, imune ao clam­or social, infen­sa às pressões midiáti­cas.

Atrav­es­samos momen­tos de ver­dadeira tor­men­ta: um gov­er­no com propen­sões dita­to­ri­ais, que ace­na para um públi­co rad­i­cal, crian­do uma ver­dadeira sei­ta que pre­ga que o inimi­go é o viz­in­ho que não con­cor­da com seus val­ores. E nis­so sac­ri­fi­ca o que de mais pre­cioso con­quis­ta­mos: a indi­vid­u­al­i­dade e a liber­dade de pen­sa­men­to e ati­tude.

E com muito respeito às crenças e seus fiéis, o Esta­do não deve aprox­i­mar suas lin­has de ações aos dog­mas reli­giosos, pois isso estim­u­la o fun­da­men­tal­is­mo, ilhas de ideias puri­tanas em que a moral é lida como reflexo de uma deter­mi­na­da ide­olo­gia, crian­do sec­taris­mos e fazen­do jus­ta­mente aqui­lo que seria o papel cen­tral do dia­bo (aque­le que sep­a­ra), para ficar com o escólio do filó­so­fo francês Luc Fer­ry:

A teolo­gia cristã desen­volveu, de acor­do com essa óti­ca, uma reflexão pro­fun­da sobre as “ten­tações do dia­bo”. O demônio, em oposição à imagís­ti­ca pop­u­lar fre­quente­mente veic­u­la­da por uma Igre­ja despres­ti­gia­da, não é aque­le que nos afas­ta, no plano moral, do cam­in­ho reto, apelando para a fraque­za da carne. É aque­le que, no plano espir­i­tu­al, faz todo o pos­sív­el para nos sep­a­rar (dia-bolos sig­nifi­ca, em grego, aque­le que sep­a­ra) da relação ver­ti­cal que liga os ver­dadeiros crentes a Deus, o úni­co que os sal­va da des­o­lação e da morte. O Dia­bo­los não se con­tenta em opor os home­ns uns aos out­ros, incen­ti­van­do-os até, por exem­p­lo, a se odi­ar e a guer­rear, mas, o que é ain­da mais sério, ele sep­a­ra o homem de Deus, e o aban­dona assim a todas as angús­tias que a fé tin­ha con­segui­do curar.

Para um teól­o­go dog­máti­co, a filosofia — sal­vo, é claro, se ela se sub­mete com­ple­ta­mente à religião e se põe inteira­mente a seu serviço (mas então ela não é mais ver­dadeira­mente filosofia…) — é por excelên­cia obra do dia­bo, pois, ao insti­gar o homem a se voltar con­tra as crenças para faz­er uso da razão, do espíri­to críti­co, ela o arras­ta insen­sivel­mente para o ter­reno da dúvi­da, que é o primeiro pas­so para longe da tutela div­ina
(FERRY, Luc. Apreen­der a Viv­er. Rio de Janeiro: Obje­ti­va).

O Esta­do con­gre­ga, den­tro de seu ter­ritório, a plu­ral­i­dade de crenças, pen­sa­men­tos e não pode esque­cer que o bus­ca­do bem comum é para todos e não para alguns par­tidários das mes­mas ideias.

E uma coisa é a críti­ca fun­da­da, aque­la em que se apon­tam os peca­dos, mas tam­bém os cam­in­hos. Out­ra, a críti­ca temerária, aque­la que ace­na para uma platéia de lei­gos, fazen­do nascer uma causa des­on­es­ta, queiman­do rep­utações, des­en­cade­an­do um rótu­lo social.

Quem pre­ga esse tipo de coisa, não pen­sa em democ­ra­cia e é o mes­mo que, no futuro, entor­peci­do por ideias fun­da­men­tal­is­tas, não tar­dará a entre­gar seu viz­in­ho aos porões.

Talvez ten­hamos a pior com­posição do STF de todos os tem­pos. Mas não podemos pre­gar a ideia de que um sol­da­do e um cabo seri­am sufi­cientes para der­rubar o pilar da democ­ra­cia. O pre­juí­zo que isso traria para nos­so futuro seria maior do que con­viv­er com a corte que é a expressão, o reflexo de nos­sa sociedade, trazen­do ali cabeças que pen­sam difer­ente, mas com­põe um órgão cole­gia­do, que deve dar a expressão do jus­to, segun­do a Con­sti­tu­ição Fed­er­al.

É como pen­so neste momen­to de min­ha vida, com 51 anos. Mas respeito o pen­sa­men­to fun­da­men­ta­do em con­trário, o que é necessário para o amadurec­i­men­to de uma democ­ra­cia. O que não se pode é a pos­tu­ra dos Haters