O Déficit Democráti­co do BNDES

Ray­mun­do Magliano Fil­ho

 

“Em meio a tan­tos escân­da­los em nos­so noti­ciário, muitos dos quais rela­ciona­dos ao BNDES, é de con­hec­i­men­to comum que seus inves­ti­men­tos rep­re­sen­tam uma ver­gonha para este país. Essa con­statação, no entan­to, pre­cisa ser obje­to de reflexão. Se a atu­al práti­ca políti­ca em torno do BNDES vem con­tribuin­do para que suas ações sejam cada vez mais ques­tion­adas, a ati­tude diante dis­so pode­ria levar em con­sid­er­ação as causas que levaram à coop­tação políti­ca do ban­co, ques­tio­nan­do então que out­ro cam­in­ho pode­ria ser con­struí­do para que o BNDES pudesse de fato con­tribuir para o desen­volvi­men­to econômi­co e social do país.

Para tan­to seria necessário ques­tionar: para que serve o BNDES? Tradi­cional­mente, ele vem sendo vis­to como um ban­co econômi­co. No entan­to, para respon­der­mos à primeira per­gun­ta é necessário observá-lo como uma insti­tu­ição. Uma vez que o referi­do ban­co seria respon­sáv­el pelo desen­volvi­men­to econômi­co e social do país, como então com­preen­der a artic­u­lação entre BNDES e democ­ra­cia? Esse raciocínio per­mite pre­cis­ar um pouco mais a inda­gação ini­cial, aparan­do as arestas daque­la que parece ser a questão-chave deste livro: qual é, então, a função democráti­ca do BNDES enquan­to insti­tu­ição e como esta con­strução teóri­ca pode ser prat­i­ca­da?

Aqui é pre­ciso, uma vez mais, difer­en­ciar o que se con­sid­era democ­ra­cia daque­les inter­ess­es políti­cos que não são nec­es­sari­a­mente democráti­cos. Assim, por democ­ra­cia entende-se, como dizia Bob­bio, o gov­er­no públi­co em públi­co, isto é, a artic­u­lação pro­du­ti­va entre aces­so, vis­i­bil­i­dade e transparên­cia, fun­da­men­tais para que as insti­tu­ições pos­sam ser a base da con­strução de uma sociedade mais igual­itária. Isso sig­nifi­ca com­preen­der nos­sas insti­tu­ições soci­ais a par­tir dos ideais democráti­cos desta­ca­dos, notada­mente, aque­le ref­er­ente à neces­si­dade de par­tic­i­pação da sociedade civ­il nas insti­tu­ições como for­ma de for­t­alec­i­men­to da democ­ra­cia rep­re­sen­ta­ti­va. A par­tir dessa for­mu­lação, podemos com­preen­der mel­hor a per­gun­ta for­mu­la­da no pará­grafo ante­ri­or: se o BNDES é uma das insti­tu­ições mais impor­tantes para o desen­volvi­men­to econômi­co e social, então deve­mos ques­tionar até que pon­to sua estru­tu­ra está per­me­a­da pelos val­ores de transparên­cia, vis­i­bil­i­dade e aces­so.

A respos­ta evi­den­te­mente é: não há atual­mente qual­quer vín­cu­lo democráti­co nas estru­turas do BNDES: em que pese a sociedade civ­il ser a prin­ci­pal fonte de arrecadação do ban­co, ela defin­i­ti­va­mente não é pres­ti­gia­da, pois além de não rece­ber o retorno econômi­co e social prometi­dos, ela encon­tra-se desprovi­da de meios democráti­cos para exercer o con­t­role públi­co sobre a referi­da insti­tu­ição. Se a sociedade civ­il (o con­jun­to de relações entre indi­ví­du­os, gru­pos e class­es soci­ais que se desen­volvem à margem das relações de poder que car­ac­ter­i­zam as insti­tu­ições políti­cas)1 não par­tic­i­pa dos proces­sos delib­er­a­tivos, como saber o que o BNDES real­mente faz? Quais critérios ori­en­tam a seleção de finan­cia­men­to? Quem con­tro­la os con­tro­ladores?

A solução democráti­ca dessas questões só pode estar no afas­ta­men­to da esfera do seg­re­do que hoje serve como propul­sor das ativi­dades do BNDES, per­mitin­do que essa insti­tu­ição seja inclu­si­va ao garan­tir a dis­cussão e a par­tic­i­pação públi­ca sobre as metas a serem perseguidas, de tal for­ma que a sociedade civ­il pos­sa par­tic­i­par, por exem­p­lo, de seu comitê de orça­men­to.

É em razão dess­es déficits que parece ser opor­tuno diz­er que esse ban­co vem atuan­do como instru­men­to de poder não democráti­co, como os jor­nais incansavel­mente noti­ci­am. Ora, o BNDES não só não é aber­to à sociedade civ­il, como tam­bém a enlaça e ocul­ta infor­mações ref­er­entes ao endereça­men­to dos recur­sos públi­cos. Ou seja, não há vis­i­bil­i­dade e transparên­cia, muito menos aces­so, o que difi­cul­ta a obser­vação da função democráti­ca dessa insti­tu­ição que pode­ria con­tribuir, como tam­bém dizia Bob­bio,2 para a efe­ti­vação das promes­sas não cumpri­das da democ­ra­cia, notada­mente, aque­la ref­er­ente à vis­i­bil­i­dade do poder. Con­se­quente­mente, o aspec­to de legit­im­i­dade do BNDES parece cada vez mais frag­men­ta­do, e isso porque o ban­co, que pode­ria ter sido capaz de empreen­der uma ver­dadeira rev­olução cul­tur­al dos val­ores, tal como desta­ca­do na primeira parte deste livro, acabou incor­po­ran­do em suas estru­turas o sen­ti­do da col­o­niza­ção ibéri­ca, tor­nan­do-se míope às reivin­di­cações democráti­cas e bus­can­do somente uma pseudo­mod­ern­iza­ção econômi­ca enlaça­da pelo Esta­do.

No entan­to, isso não sig­nifi­ca que o BNDES atue ile­gal­mente. É razoáv­el supor que suas ações e delib­er­ações são pau­tadas pelo respeito à lei. Mas isso não quer diz­er que essas ações pos­sam ser con­sid­er­adas legí­ti­mas, isto é, que respeit­em os req­ui­si­tos do diál­o­go e aces­so, fun­da­men­tais para o exer­cí­cio democráti­co de uma insti­tu­ição que se vale do din­heiro do con­tribuinte.

Dito isso, é impor­tante destacar a fal­ta de anális­es sobre as relações entre cresci­men­to econômi­co e desen­volvi­men­to social. O BNDES, em seu dis­cur­so ofi­cial, artic­u­la dois com­po­nentes sem perce­ber que o cresci­men­to econômi­co não leva nec­es­sari­a­mente ao desen­volvi­men­to econômi­co-políti­co-social. Esse é mais um déficit atu­al das anális­es que cos­tumeira­mente são feitas sobre o ban­co. Pode pare­cer nat­ur­al que aque­les que escrevem e dis­cutem sobre o BNDES desen­volvam, sem­pre e cada vez mais, anális­es econômi­cas do tema. Uma enx­ur­ra­da de números, tabelas, grá­fi­cos com­par­a­tivos e todos os mecan­is­mos con­tábeis necessários enfileiram-se pron­tos para ques­tionar que eco­nomi­ca­mente um deter­mi­na­do aspec­to não é viáv­el, que prag­mati­ca­mente os desen­volvi­men­tos anal­isa­dos não são sus­ten­táveis e que, no final da con­ta (que nun­ca fecha), exis­tem mais per­das do que gan­hos. Ou seja: insere-se uma insti­tu­ição social em uma lin­guagem econômi­ca que, longe de con­tribuir para a análise dos diver­sos sig­nifi­ca­dos que o BNDES pode­ria ter, apri­siona a temáti­ca num pro­fun­do eco­nomi­cis­mo. Por isso com­preen­demos a insti­tu­ição des­de uma per­spec­ti­va social, isto é, enquan­to bus­ca pelo con­sen­so acer­ca dos fins e dos critérios insti­tu­cionais através do diál­o­go e da par­tic­i­pação, e não somente como insti­tu­ição for­mal, isto é, abar­ca­da pela legal­i­dade. Daí a pre­ocu­pação con­stante de ques­tionar a legit­im­i­dade da legal­i­dade.

Nesse con­tex­to, é opor­tuno apro­fun­dar aque­la con­statação ini­cial: a atu­al estru­tu­ra políti­co-social desse ban­co faz com que os obje­tivos ofi­ci­ais declar­a­dos de con­tribuir para acel­er­ar o desen­volvi­men­to econômi­co e social sejam trans­for­ma­dos em obje­tivos reais de for­t­alec­i­men­to do Esta­do, prin­ci­pal­mente de um par­tido políti­co. Em out­ras palavras: o BNDES con­tribui, hoje, para o for­t­alec­i­men­to da par­tidoc­ra­cia por meio de con­tín­u­os enlaça­men­tos à sociedade, inten­si­f­i­can­do a dependên­cia social frente ao Esta­do em detri­men­to da autono­mia daqui­lo que um dia foi con­sid­er­a­do sociedade civ­il.

É para este sen­ti­do (ibéri­co) de mod­ern­iza­ção do Brasil que o BNDES atu­al con­tribui: Esta­do forte que dev­e­ria garan­tir o pro­gres­so social, políti­co e éti­co, sem espaço para a reflexão ref­er­ente ao papel da cidada­nia neste cenário. No entan­to, como bem insis­tia Han­nah Arendt, pre­cisamos reivin­dicar a artic­u­lação entre pen­sar e agir. E aqui entra em cena um out­ro BNDES, ain­da pos­sív­el. Como já desta­ca­do, essa insti­tu­ição pode­ria ter prat­i­ca­do uma ver­dadeira mudança dos val­ores soci­ais atre­la­dos àquela con­cepção de mod­ern­iza­ção no inte­ri­or dos muros do Esta­do. Isto é, uma vez desta­ca­do o con­tex­to men­ciona­do, o diag­nós­ti­co con­jun­tur­al descrito pos­si­bil­i­taria uma efe­ti­va alter­ação da real­i­dade, tal como receita­va Anto­nio Gram­sci, fazen­do com que esse “acla­ma­do” ban­co fos­se um ver­dadeiro catal­isador de uma rev­olução silen­ciosa dos val­ores cul­tur­ais. O BNDES pode­ria ter rompi­do com o sen­ti­do da col­o­niza­ção ibéri­ca, aux­il­ian­do a sociedade civ­il a eman­ci­par-se do Esta­do, favore­cen­do uma mudança cul­tur­al do empresário brasileiro, his­tori­ca­mente laça­do (para não diz­er pre­so) às amar­ras estatais.

O BNDES perdeu a opor­tu­nidade de ser um celeiro de lid­er­anças empre­sari­ais nacionais, ao mes­mo tem­po que se desvir­tu­ou dos obje­tivos soci­ais ofi­cial­mente pro­pa­gan­dea­d­os, for­t­ale­cen­do assim os val­ores de sub­mis­são ao poder estatal. Se por um lado as anális­es feitas no decor­rer do livro demon­stram como a sele­tivi­dade do BNDES afasta‑o do dis­cur­so de supos­ta legit­im­i­dade, servin­do muito mais para fins políti­cos de agi­gan­ta­men­to estatal, por out­ro é impor­tante apre­sen­tar des­de logo ao leitor uma alter­na­ti­va para esse obscuro cenário.

E é aqui que se faz necessário expor um exem­p­lo da fal­ta de relação de rec­i­pro­ci­dade entre insti­tu­ição e sociedade civ­il, e como isso pode ser prej­u­di­cial. Tra­ta-se de apre­sen­tar, como será feito, a relação entre BNDES e mer­ca­do de cap­i­tais, de tal for­ma que o for­t­alec­i­men­to deste seja incluí­do como obje­ti­vo do ban­co, isto é, como obje­ti­vo que pro­por­cionar­ia um for­t­alec­i­men­to da sociedade civ­il. Uma vez que a sociedade civ­il não deve ser com­preen­di­da como algo con­tra­pos­to ao Esta­do, já que este é um desen­volvi­men­to daque­la, entende-se que inve­stir no mer­ca­do de cap­i­tais é uma maneira de, ao per­mi­tir um maior con­t­role social da empre­sa, estim­u­lar jus­ta­mente o for­t­alec­i­men­to da civil­i­dade, per­mitin­do a inclusão social dos tra­bal­hadores para que eles pos­sam usufruir dos fru­tos do desen­volvi­men­to econômi­co, isto é, fazen­do com que a sociedade civ­il seja pro­tag­o­nista da exigên­cia de transparên­cia essen­cial à democ­ra­cia, como defendia Nor­ber­to Bob­bio.

Aqui está a função trans­for­mado­ra do mer­ca­do de cap­i­tais: tornar empre­sas efi­cientes, visíveis e trans­par­entes, uma vez que os acionistas con­tro­lar­i­am as empre­sas, favore­cen­do assim a dimen­são públi­ca desse con­t­role. Se desen­volver o mer­ca­do de cap­i­tais é for­t­ale­cer a sociedade civ­il, oxi­ge­nan­do a democ­ra­cia pela plu­ral­i­dade e per­mitin­do que decisões fun­da­men­tais que vin­cu­lam a todos sejam obje­to de apro­pri­ação do cidadão, é essen­cial então perce­ber que o BNDES, ao priv­i­le­giar obscuros inves­ti­men­tos no exte­ri­or, e não no mer­ca­do de cap­i­tais, acabou servin­do como instru­men­to de for­t­alec­i­men­to de um par­tido políti­co, em detri­men­to do desen­volvi­men­to econômi­co e social de nos­so país, isto é, ele rompeu com a relação de rec­i­pro­ci­dade entre sociedade civ­il e insti­tu­ições já apre­sen­ta­da. Por isso é impre­scindív­el que as anális­es econômi­cas acer­ca do BNDES sejam enrique­ci­das pelos ques­tion­a­men­tos soci­ais ref­er­entes à legit­im­i­dade dessa insti­tu­ição.

Tratar-se-ia, então, de artic­u­lar a função democráti­ca do BNDES com a função trans­for­mado­ra do mer­ca­do de cap­i­tais. O desafio está em romper os muros do Esta­do que se for­t­alece medi­ante a fór­mu­la “X‑tudo” do BNDES, como será demon­stra­do. A pro­fun­di­dade dessas anális­es pode ser ver­i­fi­ca­da, cumpre enfa­ti­zar, quan­do se com­pro­va a ausên­cia de par­tic­i­pação da sociedade civ­il em todos os 18 comitês que com­põem a estru­tu­ra do BNDES, o que per­mi­tiu uma práti­ca políti­ca do seg­re­do que, além de excluir o inter­esse nacional, favore­ceu uma políti­ca de “campeões nacionais” em detri­men­to dos pequenos e médios empresários.

Por fim, algu­mas últi­mas palavras são necessárias. As reflexões que con­stituem esta segun­da parte do livro têm origem no diál­o­go, no debate, e isso deve ser enfa­ti­za­do. Como dizia Bob­bio, o aspec­to fun­da­men­tal da democ­ra­cia está no diál­o­go em públi­co, na dis­posição para deixar-se con­vencer pelos argu­men­tos do out­ro, no jogo dialógi­co tol­er­ante e isen­to de von­tades de ver­dade (e de poder, evi­den­te­mente). Grande parte deste livro é fru­to de entre­vis­tas com diver­sas pes­soas que con­hecem a fun­do o BNDES. Elas obser­varam essa insti­tu­ição somente com as lentes da econo­mia, compreendendo‑o como um ban­co econômi­co. Isso sem dúvi­da é impor­tante. No entan­to, como desta­ca­do, bus­ca-se aqui enrique­cer essas anális­es a par­tir da com­preen­são do BNDES como insti­tu­ição social, o que nos per­mite anal­is­ar os motivos pelos quais o caráter democráti­co está atual­mente ausente e pro­por alter­na­ti­vas para essa situ­ação.

O obje­ti­vo final dessas reflexões seria, então, muito sin­ge­la­mente, con­tribuir para um debate públi­co sobre qual cam­in­ho esse ban­co dev­er tril­har para que o Brasil pos­sa vencer as fron­teiras da exclusão social, econômi­ca e políti­ca, fun­da­men­tais para que o BNDES aux­ilie a cumprir as chamadas “promes­sas não cumpri­das da democ­ra­cia”.

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1 Nor­ber­to Bob­bio, Nico­la Mat­teuc­ci e Gian­fran­co Pasquino (orgs.), Dicionário de políti­ca, 12. ed., Brasília, Edi­to­ra Uni­ver­si­dade de Brasília, 2004, p. 1.210.

2 Nor­ber­to Bob­bio, O futuro da democ­ra­cia, Rio de Janeiro, Paz e Ter­ra, 2000, p. 34

 

(Tex­to extraí­do de seu livro Um Cam­in­ho para o Brasil: a Rec­i­pro­ci­dade entre Sociedade Civ­il e Insti­tu­ições, São Paulo, Edi­to­ra Con­tex­to, 2017)