Alfredo Attié fala dos caminhos e descaminhos do Rio Tietê e da importância de sua despoluição para a natureza, para a cultura, para a história e para o futuro, no artigo a seguir. (1)
O Rio e suas Cidades
Alfredo Attié (Filósofo, Jurista e Escritor, é Titular da Cadeira San Tiago Dantas da Academia Paulista de Direito, que preside, e exerce a função de desembargador, em São Paulo)
“A culpa é tua, Pai Tietê … si as tuas águas estão podres de fel e majestade falsa?”
Há esse Rio, que, recusando a tentação de se lançar imediatamente nas águas convidativas do Oceano, de passear pelas praias que tanto animam a sensualidade humana, atravessa, com insistência turrona, todo o sertão paulista, para desembocar num rio maior, contornar e delinear divisas, para enfim atirar-se na Bacia que abriga o sonho de um continente independente e altivo diante do mundo povoado de movimentos de incerteza e conflitos.
Mario de Andrade pensou a relação entre esse Rio Tietê e as experiências da existência, em geral, e de sua própria vida, em particular, num poema longo, sinuoso, e cheio de acidentes e figuras que lembram o curso das águas e sua implicação no destino humano, individual, social, político.
As cidades, sobretudo, conformam esse fluxo. As pequenas vilas quase rurais ao pé da Serra do Sabaúna, o ingresso na Metrópole paulistana; a influência da poluição pesada dos afluentes metropolitanos, o Tamanduateí e o Pinheiros, que alargam o vale do Rio para além de seu curso, construindo o suporte energético e cultural da represa e da usina, encontrando para o Rio o (des)caminho ou a picada da serra do Mar e da passagem pela indústria petrolífera de Cubatão, até desembocar no Oceano; ainda, o seguir difícil pelo seu Vale original, chamado de Médio e Baixo, onde encontra e explica a história colonial, da tomada do sertão brasileiro, com o contato violento com os povos nativos, sua assimilação forçada, a construção de um patrimônio cultural marcado pela imposição missionária; depois os vários Saltos, que implicam um processo de industrialização precoce, marcado por influências plurinacionais, das quais saliento a de fonte africana, na fundição de metais na Bacia de outro afluente importante do Tietê, o rio Sorocaba, com o qual forja o chamado Vale Médio, que possui um Comitê de Bacia exclusivo, do qual fiz parte, na primeira gestão, como representante da sociedade civil, por meio de uma associação que teve raiz na cidade de Salto (o SAOJUS)– da qual fazia parte o atual Prefeito eleito da cidade — que teve papel importante na redação dos estatutos do mesmo CDH-SMT; a seguir, segue o curso em direção ao rio Paraná, pela região mais navegável, que contém a Usina de Barra Bonita, além de tantas outras fontes de energia hídrica.
É um resumo muito breve de um espaço que o Rio percorre infinitamente, sinal da renovação ou da permanência da afloração do novo, como intuíram desde sempre poetas, filósofos e cientistas, mas também de sedimentação paulatina de uma história, que se faz constante movimento, ao paradoxalmente conservas suas paragens naquilo que chamamos de patrimônio.
Esse patrimônio se associa à natureza, na construção de vários elos culturais, representados sobretudo pelas cidades, que são nós em que o fluxo fluvial semeia as condições de fixação de territórios e povos.
Se o Rio é o aspecto natural fundamental, condição predominante para a constituição de uma comunidade de distribuição de atividades sociais e econômicas, o território corresponde ao lado cultural, ao permitir a invenção de demarcações de identidade, em meio à diversidade das marcas e marcos da natureza. É a atuação dos povos sobre esse meio natural concedido pelas águas que encaminha à construção do território, ponto de ligação e de imobilização do curso da existência do povo, que se torna habitante, localizado, citadino. O mesmo Rio, que permite a concepção de uma existência em fluxo constante, como que autoriza que a existência se torne local ou espacial, portanto fixada em um determinado lugar, imóvel por definição.
O que ocorre, porém, quando essas mesmas cidades — que, em sua origem e em sua história, ligaram-se ao Rio e que tiveram nele sua raiz ou razão de vida – desconectam-se desse manancial, viram-lhe as costas e passam a (des)cuidar e a (des)tratar de sua sobrevivência, enxergando‑o apenas como espaço de lançamento de dejetos industriais e residenciais?
Não são apenas a poluição e as doenças, a eliminarem fauna, flora e populações, que aparecem e passam a ser fontes de outros tantos problemas de escassez, fome, perturbações de ordem sanitária, ambiental e mesmo estética. Essa quebra de liame com o Rio traz também o peso e o drama de um desenraizamento cultural e existencial. O Rio, agora, poluído, é uma presença, que chama a atenção permanentemente para o que significa, como referência ambiental e cultural, e que aponta para a desesperança na capacidade humana de regeneração e renovação. O curso das águas deixa de ser fonte de vida para se tornar fonte de conflitos. Para onde levar a poluição, perguntavam-se, com ardorosa paixão – sem qualquer reflexão racional – os artífices de nossa primeira regulação dos recursos hídricos, no final da última década do século XX. Os habitantes da região Metropolitana queriam se livrar da poluição trazida pelo Pinheiros para a Billings, em razão da opção estabelecida havia um século de alteração de seu curso, para gerar energia. Os habitantes do Vale Médio não queriam aceitar receber a poluição da região Metropolitana, nem as doenças trazidas pela decisão draconiana de retomada do curso natural do Pinheiros. O debate gerou muita tensão e, lamentavelmente, ocupa as energias, até hoje, daqueles que não desejam senão a saúde das águas e dos povos e territórios que conformam todo o Vale do Rio paulista.
Recentemente, formulei uma solução para o problema, definitiva e no caminho de regeneração e renovação dos ambientes naturais e culturais do Rio Tietê, em forro internacional.
Com satisfação, vejo que os queridos amigos e amigas do INEVAT – cuja nova e jovem Diretoria cumprimento prazerosamente -, conforme noticiou o Terra Tavares, voltam mais uma vez suas preocupações para a questão fundamental de resgatar o Rio e suas águas.
Talvez tenha chegado o momento do Tietê. Vamos unir nossos esforços por esse Rio que nos entregou tanto de si e constitui muito do que somos e podemos vir a ser. Creio que seria importante que se reiniciasse o debate e a geração e discussão de ideias. As cidades do Tietê deveriam levar isso avante. Aponto firmemente para o Instituto de Estudos Vale do Tietê como a instituição que deve levar dar o passo inicial.
À indagação do Poeta sobre o desejo do Rio, respondo que o Tietê, com certeza, deseja-nos levar para um mundo novo, de reinvenção de sua história e de presença de sua natureza.
(1) O artigo foi publicado, originalmente, em dezembro de 2020, no Jornal Terra Tavares, da região do Vale do Rio Tietê.