O arti­go a seguir , de Alfre­do Attié, faz análise das car­ac­terís­ti­cas da ordem jurídi­ca inter­na­cional con­tem­porânea, especi­f­i­can­do o desen­volvi­men­to do dire­ito ambi­en­tal.

Foi pub­li­ca­do, orig­i­nal­mente, em Ter­ra Tavares.

 

Sobre queimar a natureza e a humanidade

Alfre­do Attié

Filó­so­fo, Jurista e Escritor, é Tit­u­lar da Cadeira San Tia­go Dan­tas da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, que pre­side, e exerce a função de desem­bar­gador, em São Paulo.

“O mun­do é feito de histórias, não de áto­mos”

Em primeiro de out­ubro de 2020, o céu aman­heceu cin­za, no inte­ri­or de São Paulo. Era estran­ho porque a mete­o­rolo­gia havia pre­vis­to dia de sol e calor inten­so, céu azul, sem nuvens. O calor real­mente era inten­so, com aque­la sen­sação de abafa­men­to aci­ma do nor­mal, mas o dia per­maneceu nubla­do. Alguém me disse que aqui­lo era sinal de queima­da. Achei exager­a­do. No dia seguinte, os jor­nais não noti­ci­avam nada a não ser que havia sido o dia mais quente de uma série históri­ca ini­ci­a­da há muitos anos, em São Paulo. Dois dias depois, porém, veio a notí­cia de que teria havi­do uma queima­da forte na região de out­ra cidade inte­ri­o­rana, Vin­he­do, con­heci­da dos paulis­tas por causa de par­ques temáti­cos à beira da Rodovia dos Ban­deirantes. O fogo acabou com uma peque­na mata nati­va preser­va­da e alcançou pro­priedades rurais. Foi com­bat­i­do pelos moradores da região. O jor­nal­ista desta­cou o depoi­men­to de um deles, engen­heiro agrônomo, que disse ter chora­do de deses­pero, pela per­da da mata, pela ausên­cia de meios de com­bate ao incên­dio.

Um micro­fenô­meno, que afe­tou uma peque­na região brasileira, mas que é sin­toma de algo mais pro­fun­do, que afe­ta o Brasil e o Mun­do. No ano pas­sa­do e no retrasa­do, reflex­os de queimadas na Amazô­nia e no Pan­tanal, troux­er­am o cin­za para o céu da região mais próx­i­ma do litoral do Atlân­ti­co, atingin­do o Esta­do e a Cidade de São Paulo. Um fenô­meno que põe as coisas de cabeça para baixo, assim como foi o da crise da água, há poucos anos, que deixou o mes­mo Esta­do em situ­ação de ver­dadeira calami­dade. Sim, várias situ­ações inusi­tadas, para um Esta­do que esta­va acos­tu­ma­do a pro­duzir sua própria poluição atmos­féri­ca, trazen­do sofri­men­to sobre­tu­do nos momen­tos de inver­são tér­mi­ca, em que os polu­entes lança­dos ao ar pelas indús­trias e pelos automóveis insta­lavam-se sober­a­nos sobre as cidades, como a con­sti­tuir um teto sobre um abri­go dis­tópi­co da pós-mod­ernidade, somente encon­tra­do nos con­tos e  filmes de ficção e, evi­den­te­mente, nas metrópoles des­or­de­nadas dos país­es em desen­volvi­men­to. Mas o abri­go não é feito só de cober­tu­ra tóx­i­ca, a isso se veio jun­tar a evidên­cia das repre­sas e torneiras secas, a impedi­rem ain­da mais a cir­cu­lação da vida, como que a cumprir a pro­fe­cia de o mar virar sertão. O futuro chegou e isso não parece ser boa notí­cia.

Não é de ago­ra que os ambi­en­tal­is­tas, entre os quais ativis­tas e cien­tis­tas, além das orga­ni­za­ções não-gov­er­na­men­tais do Mun­do todo, têm denun­ci­a­do a poluição, a destru­ição dos recur­sos nat­u­rais, a pro­dução e o con­sumo insus­ten­táveis. Não é de ago­ra, tam­bém, que o dire­ito tem sido lev­a­do a refle­tir sobre a pro­teção ambi­en­tal, no âmbito inter­no dos País­es, no âmbito mais restri­to das comu­nidades locais, das cidades, nas Regiões, e por meio do dire­ito inter­na­cional. 

Esse con­jun­to de val­ores advo­ga­dos pelos que, de modo pio­neiro, pen­saram nas con­se­quên­cias para o ambi­ente e para a humanidade, do uso irrestri­to dos recur­sos da natureza e dos sis­temas de pro­dução, cir­cu­lação, con­sumo e descarte de bens,  acabou sendo con­sagra­do, não sem mui­ta con­tro­vér­sia, em doc­u­men­tos jurídi­cos impor­tantes, cujo mar­co ini­cial cos­tu­ma ser pos­to na Declar­ação de Esto­col­mo de 1972, e cujo desen­volvi­men­to tem a mar­ca brasileira, pelas con­fer­ên­cias real­izadas no Rio de Janeiro, em 1992, 2002 e 2012. Mas há out­ros mar­cos de mudança con­ceitu­al e instru­men­tal do dire­ito, nacionais, munic­i­pais, region­ais e inter­na­cionais.

Ape­sar de tudo isso, o que está acon­te­cen­do com o Brasil e o Mun­do?

Tra­ta-se de um movi­men­to con­tra­ditório. 

Entre 1982 e 2002, isto é, quase acom­pan­han­do a evolução das Con­fer­ên­cias inter­na­cionais sobre Meio Ambi­ente e Desen­volvi­men­to, que referi, o cineas­ta e ativista políti­co norte-amer­i­cano Geof­frey Reg­gio con­ce­beu e dirigiu a Trilo­gia Qat­si, palavra que sig­nifi­ca vida, na lín­gua hopi. Os Hopi são um povo que vive no sudoeste dos Esta­dos Unidos, que falam a lín­gua que leva seu nome, que per­tence ao ramo uto-aste­ca., que, por sua vez, com­põe uma família de lín­guas e cul­turas cen­tro e norte-amer­i­canas bas­tante difun­di­das. O hopi é uma lín­gua cada vez menos fal­a­da, muito emb­o­ra os esforços que estão sendo feitos para pre­servá-la. Reg­gio hom­e­nageia a con­cepção espir­i­tu­al ínsi­ta nes­sa cul­tura, ao dar a seus doc­u­men­tários ino­vadores o nome de Koy­aanisqat­si, Powaqqat­si e Naqoyqat­si. Koy­aa­nis, dese­qui­líbrio, tumul­to. Powaq, par­a­sitária, egoís­ta. Nah-qoy, vio­lên­cia extrema. O sen­ti­do dos filmes apon­ta­va, então, para três car­ac­terís­ti­cas dos proces­sos da vida oci­den­tal mod­er­na: dese­qui­líbrio, explo­ração da natureza e dos out­ros, e con­fli­to, todas con­sid­er­adas não casuais, mas ver­dadeiras for­mas do exi­s­tir. Em con­tra­posição a essas for­mas destru­ti­vas e autode­stru­ti­vas, Reg­gio prop­un­ha a com­preen­são de três lições hopi, chamadas de pro­fe­cias, no filme:  quan­do as riquezas forem extraí­das da ter­ra, ocor­rerá desas­tre; aprox­i­man­do-se o tem­po de purifi­cação, haverá teias de aran­ha no céu, sacu­d­i­das pelo ven­to; e uma porção de cin­zas será lança­da do céu para queimar a ter­ra e fer­v­er os oceanos. Há, por­tan­to um diag­nós­ti­co de desajuste, extração inter­es­seira de bens da natureza, e vio­lên­cia per­ma­nente, que mac­u­lar­i­am a vida na Ter­ra, que encam­in­ha a um prognós­ti­co de desas­tres, aban­dono e destru­ição.

Tais con­statação e pre­visão ocor­rem exata­mente no momen­to em que o dire­ito toma uma nova direção, pau­lati­na­mente toman­do par­tido das vozes que indicam o peri­go desse diag­nós­ti­co e o risco de se des­en­cadear o proces­so prog­nos­ti­ca­do. O dire­ito, então toma lugar no tem­po da crise, que é dis­cern­i­men­to de alter­na­ti­vas, em face do grau avança­do do mal-estar da explo­ração humana e da natureza.

Essa nova ati­tude políti­co-jurídi­ca encam­in­hou o que me per­mi­to chamar de uma nova fase no desen­volvi­men­to da sociedade inter­na­cional, com impli­cações nos orde­na­men­tos jurídi­cos inter­nos aos País­es que com­põem essa ordem mundi­al. Vín­hamos da fase e do desen­volvi­men­to do dire­ito inter­na­cional dos dire­itos humanos, ini­ci­a­da ime­di­ata­mente após o fim da Segun­da Guer­ra mundi­al, em que a fun­dação da Orga­ni­za­ção das Nações Unidas explic­i­ta­va a neces­si­dade e o dev­er de bus­car o fim dos con­fli­tos inter­na­cionais, por meio de um con­cer­to de nor­mas e mecan­is­mos  volta­dos a impedir a defla­gração de guer­ras entre seus mem­bros. Essa final­i­dade, explic­i­ta­da no arti­go primeiro da Car­ta da ONU, pode-se diz­er que foi alcança­da, no decor­rer dess­es seten­ta e cin­co anos, mes­mo que à cus­ta de out­ros inter­ess­es, e, sobre­tu­do, de provo­car o que chamaria de domes­ti­cação das guer­ras, isto é, seu con­t­role no âmbito inter­na­cional, por meio de sua con­tenção nos ambi­entes inter­nos dos País­es. Hoje, com efeito, são ess­es con­fli­tos inter­nos, con­ta­dos às dezenas, e a con­strução de proces­sos de paz ade­qua­dos a cada um deles, que pre­ocu­pam os organ­is­mos inter­na­cionais e as pes­soas que têm con­sciên­cia de que a paz é, no mín­i­mo, a con­strução de um ambi­ente mais propí­cio para o equi­líbrio das relações humanas, e, no máx­i­mo, um obje­ti­vo que per­mite o desen­volvi­men­to das capaci­dades humanas em sua inte­gral­i­dade. Paz neg­a­ti­va, que evite a defla­gração da vio­lên­cia, e paz pos­i­ti­va, que efe­tive os meios ideais de vida, cul­tur­ais, edu­ca­cionais, econômi­cos, políti­cos, jurídi­cos, que previnam a neces­si­dade de usar da vio­lên­cia para obter o que se dese­ja, seja por usurpação seja por dire­ito.

Sendo real­ista a respeito desse ide­al, é pre­ciso admi­tir que a humanidade ain­da tem mui­ta difi­cul­dade de empreen­der esse modo de vida jus­to, basea­do nos val­ores da liber­dade, claro, mas sobre­tu­do da igual­dade e da sol­i­dariedade.

Ao lado dessas nor­mas e mecan­is­mos volta­dos a engen­drar a paz, três anos após sua fun­dação, a ONU procurou declarar os val­ores por meio dos quais aque­la paz pudesse ser alcança­da com justiça não ape­nas para os País­es que a com­pun­ham, mas sobre­tu­do para os povos que con­sti­tuíam o foco de atenção de suas políti­cas. A Declar­ação Uni­ver­sal dos Dire­itos Humanos de 1948 tin­ha esse intu­ito e, igual­mente, pode-se diz­er que ela foi acom­pan­ha­da de um proces­so pau­lati­no e, em grande parte, exi­toso, de efe­tivi­dade, isto é, de recon­hec­i­men­to real­mente uni­ver­sal. Pode-se ver isso, por exem­p­lo, nas suces­si­vas Declar­ações region­ais de Dire­itos Humanos – cujo pon­to de par­ti­da, aliás, data de pouco antes da Declar­ação Uni­ver­sal, com o primeiro Pacto Amer­i­cano de Dire­ito, de 1947. De qual­quer modo, tive­mos A Con­venção Amer­i­cana de Dire­itos Humanos, a Car­ta de San José de Cos­ta Rica, em 1969, em ple­na Guer­ra Fria, e mes­mo em meio a ativi­dades vio­len­tas e regimes dita­to­ri­ais em boa parte dos País­es amer­i­canos; em segui­da, na África, após a cri­ação da Orga­ni­za­ção da Unidade Africana, em 1963, cujo arti­go primeiro consigna­va a adesão à Declar­ação Uni­ver­sal, a Declar­ação Africana dos Dire­itos Humanos e dos Povos, a Car­ta de Ban­jul, em 1981, con­sec­u­ti­va ao difí­cil proces­so de des­col­o­niza­ção políti­ca e inde­pendên­cia dos País­es africanos; ain­da, a Con­venção Europeia de Dire­itos Humanos, Car­ta de Roma, de 1950, con­sec­u­ti­va, por­tan­to, à cri­ação do Con­sel­ho da Europa, enti­dade respon­sáv­el pela guar­da dos dire­itos humanos, da democ­ra­cia e da esta­bil­i­dade políti­co-social da Europa, uma das tan­tas insti­tu­ições cri­adas no Pós-Guer­ra para per­mi­tir a pau­lati­na engen­haria das Comu­nidades e da União Europeias.

Para sal­va­guardar essa Ordem dos Dire­itos Humanos, por­tan­to, além dessas nor­mas, os mecan­is­mos cri­a­dos foram tri­bunais inter­na­cionais, volta­dos a con­hecer as vio­lações de dire­itos nos âmbitos region­ais e inter­na­cional.

Final­mente, essa Ordem foi sendo for­t­ale­ci­da por meio do recon­hec­i­men­to de out­ros dire­itos uni­ver­sais, pelo Pacto Inter­na­cional de Dire­itos Civis e Políti­cos, e pelo Pacto de Dire­itos Econômi­cos, Soci­ais e Cul­tur­ais, ambos pela Assem­bleia Ger­al da ONU, em 1966, nas Sessões de 16 e 19 de dezem­bro.

Até aí, por­tan­to, temos a Ordem dos Dire­itos Humanos, à qual podemos referir, tam­bém, mal­gra­do par­cial­mente, a Car­ta de Esto­col­mo, a Declar­ação das Nações Unidas sobre o Ambi­ente Humano, de 1972, que indi­ca­va o cam­in­ho para a pro­teção ambi­en­tal, muito emb­o­ra ain­da foca­da na questão do desen­volvi­men­to sus­ten­táv­el e na con­cepção de que a natureza devia con­tin­uar a se sub­me­ter aos inter­ess­es humanos, mes­mo que de explo­ração econômi­ca; assim como a Declar­ação do Rio sobre Mio Ambi­ente e Desen­volvi­men­to, de 1992, em que o foco per­manece o mes­mo, mas já começa a indicar um cam­in­ho de com­ple­men­tariedade entre o humano e o nat­ur­al. 

Con­tu­do, uma Nova Ordem começou a se desen­har, por meio dessas Declar­ações impor­tantes, e de out­ras que apro­fun­daram suas afir­mações, espe­cial­mente, a Agen­da 21, Declar­ação dos Chefes de Esta­do no cur­so da Con­fer­ên­cia da ONU de 1992; a fix­ação dos Obje­tivos de Desen­volvi­men­to do Milênio para a Errad­i­cação da Pobreza, em 2000, na Reunião de Cúpu­la, na sede das Nações Unidas de Nova Iorque; a Declar­ação de Johanes­bur­go das Nações Unidas sobre o Desen­volvi­men­to Sus­ten­táv­el e seu Plano de Imple­men­tação, de 2002; a Declar­ação dos Chefes de Esta­do “O Futuro que Quer­e­mos”, elab­o­ra­da na Con­fer­ên­cia das Nações Unidas sobre Desen­volvi­men­to Sus­ten­táv­el, Declar­ação Rio+20, de 2012; e a Declar­ação dos Chefes de Esta­do “Obje­tivos do Desen­volvi­men­to Sus­ten­táv­el”, de 2015, que fixou a Agen­da 2030; além da “Car­ta da Ter­ra”, ini­cia­ti­va não-gov­er­na­men­tal, de per­son­al­i­dades do Mun­do todo, ini­ci­a­da em 1992 e ter­mi­na­da com a redação do doc­u­men­to que fixa princí­pios éti­co-políti­cos para a ação gov­er­na­men­tal nacional e inter­na­cional, bem como para a atu­ação das pes­soas, comu­nidades e orga­ni­za­ções não-gov­er­na­men­tais, para a con­se­cução da justiça social, da igual­dade, da sol­i­dariedade e da pro­teção à natureza.

Essa Nova Ordem não é mais uma Ordem de Dire­itos, mas uma Ordem de Deveres e de Respon­s­abil­i­dades. Nela, impor­ta menos saber quais são os meus ou os nos­sos dire­itos e inter­ess­es, em relação aos out­ros e aos bens nat­u­rais, mas sobre­tu­do saber quais são os meus e os nos­sos deveres em relação à solução dos prob­le­mas locais e globais que põem em risco a sobre­vivên­cia da natureza e dos seres humanos nela inseri­dos. Ess­es prob­le­mas são a pobreza, a fome, a saúde e o bem estar, a edu­cação de qual­i­dade, a igual­dade de gêneros, o supri­men­to de água limpa e o sanea­men­to ambi­en­tal, o fornec­i­men­to de ener­gia limpa e ren­ováv­el de modo acessív­el, o tra­bal­ho decente e o cresci­men­to econômi­co, o aces­so à ino­vação, ao empreendi­men­to e a efe­ti­vação de infraestru­tu­ra, a redução de desigual­dades,  a con­cretiza­ção de cidades e comu­nidades sus­ten­táveis, a implan­tação do con­sumo e da pro­dução respon­sáveis, a ação climáti­ca, a preser­vação da vida sub­aquáti­ca e sobre a ter­ra, a con­strução da paz, da justiça e de insti­tu­ições fortes, bem como de parce­rias para super­ar tais prob­le­mas e con­cretizar suas soluções.  

Nis­so estão resum­i­dos, igual­mente, quais são os obje­tivos dessa Nova Ordem, cujos deveres e respon­s­abil­i­dades se esta­b­ele­cem para impedir a destru­ição da natureza, por meio de sua instru­men­tal­iza­ção – a natureza não mais como fonte de recur­sos econômi­cos e como obje­to de desen­volvi­men­to, ain­da que chama­do de sus­ten­táv­el, mas como fonte de vida -, e para impedir a instru­men­tal­iza­ção e destru­ição dos seres humanos.

Essa Nova Ordem percebe a conexão entre respeitar a natureza e respeitar o out­ro, isto é, as cul­turas e exper­iên­cias diver­sas, seja no âmbito inter­no seja no inter­na­cional da vida, na medi­da em que baseadas no respeito inte­gral aos seres humanos, inde­pen­den­te­mente de origem, raça, cor, gênero, e out­ros aspec­tos soci­ais, econômi­cos e cul­tur­ais. Ela indi­ca que todos têm o dev­er de respeitar e pro­mover os dire­itos da natureza e dos out­ros seres humanos, toman­do em con­sid­er­ação as desigual­dades exis­tentes, as difi­cul­dades que se con­statam no dia a dia, a dis­tribuição injus­ta, porque dese­qui­li­bra­da, de modo grave e pro­fun­do dos bens da existên­cia. Ela impli­ca, pois, na for­mu­lação de uma Novo Regime Políti­co, que apri­more a rep­re­sen­tação, pelo recon­hec­i­men­to da desigual­dade de aces­so e sua cor­reção, e abra as por­tas da par­tic­i­pação efe­ti­va de todos. Ela exige não ape­nas o recon­hec­i­men­to de val­ores da democ­ra­cia, mas sua efe­ti­vação, assim por meio de novos mecan­is­mos que per­mi­tam extin­guir priv­ilé­gios e deter­minem o aces­so igual, o que chamo de Mecan­is­mos de Exer­cí­cio de Dire­itos para os desiguais, os vul­neráveis. Impli­ca na for­mu­lação de um Novo Sis­tema Jurídi­co, que apro­funde a relação entre Rule-of-Law, Dire­itos Humanos e Democ­ra­cia, por meio da implan­tação de mecan­is­mos de dis­tribuição jus­ta de bens, dire­itos e respon­s­abil­i­dades, e for­mu­lação de proces­sos con­sis­tentes em políti­cas públi­cas par­tic­i­pa­ti­vas e de con­t­role democráti­co, de efe­ti­va parce­ria social, a pro­teção de mino­rias con­tra a vio­lên­cia do Esta­do, das polí­cias, e dos poderosos. Igual­mente a for­mu­lação e exe­cução de Novo Regime Socioe­conômi­co, que ten­ha por base a pro­dução, a cir­cu­lação, o con­sumo e o descarte de bens, ten­do como núcleo o ser humano e não o lucro, a explo­ração nem a opressão, mas as efe­ti­vas neces­si­dades e desen­volvi­men­to inte­gral, pelo tra­bal­ho e pelo empreendi­men­to.

Muito bem, está assim pos­to o Novo Orde­na­men­to Jurídi­co-Políti­co, que fig­urou a Nova Ordem dos Deveres e das Respon­s­abil­i­dades. Mas havia dito que há uma oposição a tudo isso, que expli­caria esse movi­men­to con­tra­ditório. Uma con­trariedade ao está­gio altís­si­mo de civ­i­liza­ção expres­so ness­es doc­u­men­tos que referi, assim como em muitos out­ros de âmbito local, nacional, region­al e inter­na­cional., muitas out­ras ini­cia­ti­vas.

Essa oposição está expres­sa, claro, nos ben­efi­ciários das lacu­nas da anti­ga Ordem dos Dire­itos, mes­mo de suas ambigu­idades. A Anti­ga Ordem fala­va em dire­itos, e ess­es ora opos­i­tores a inter­pre­tam como sendo dire­itos de exclu­sivi­dade, priv­ilé­gios obti­dos por origem, fil­i­ação, cor­po­ração e din­heiro; dizia de liber­dades, o que inter­pre­tam como liber­dades econômi­cas de explo­ração e opressão, livre ini­cia­ti­va de esta­b­ele­cer, com a uti­liza­ção de meios téc­ni­cos e tec­nolo­gia, novas for­mas de explo­ração e opressão social, assim como a per­manên­cia das relações de sub­al­ternidade no âmbito do tra­bal­ho e da vida social; fala­va de igual­dade, e a inter­pre­tam como igual­dade for­mal, sem con­se­quên­cias de trans­for­mação nem mudança, mera garan­tia de que as coisas con­tin­uar­i­am a ser como sem­pre foram, ou, no diz­er de George Orwell, alguns serem mais iguais do que out­ros; dizia mes­mo de frater­nidade, e inter­pre­tam como sendo a cari­dade e a tol­erân­cia de alguns, basea­d­os em seus princí­pios par­tic­u­lares de ordem reli­giosa e cul­tur­al, de imporem val­ores a todos os demais, exigin­do sua con­ver­são e sub­mis­são a for­mas de vida diver­sas daque­las que os car­ac­ter­i­zam e jus­ti­fi­cam meios diver­sos de relação com a natureza e os out­ros, com os bens nat­u­rais e cul­tur­ais; dizia de segu­rança, e a inter­pre­tam como sendo o dire­ito de alguns con­tra todos os out­ros de usar a vio­lên­cia e mes­mo o ain­da inal­cança­do monopólio do uso legí­ti­mo da vio­lên­cia pelo Esta­do, para que pos­sam oprim­ir os demais, con­dená-los a viv­er nos espaços per­iféri­cos do Mun­do, ten­do como inimi­gos os que os dev­e­ri­am pro­te­ger. E assim por diante.

O que agra­va tal oposição é o fato de, numa ordem flu­i­da, as infor­mações e a edu­cação cir­cu­larem de modo desigual, per­mitin­do que as fal­sas notí­cias e as fal­sas con­cepções de fatos e de mun­do per­turbem a com­preen­são da maio­r­ia, que é lev­a­da a dar suporte a pro­je­tos políti­cos e a regimes anti­con­sti­tu­cionais (antagôni­cos mes­mo da Ordem dos Dire­itos e de sua con­sagração nas Con­sti­tu­ições), assim como a ações jurídi­cas de guer­ra (law­fare e ativis­mo judi­cial), em que são visa­dos defen­sores dos dire­itos e dos inter­ess­es da maio­r­ia. Por­tan­to, gov­er­nos ilegí­ti­mos ocu­pam a esfera públi­ca e a trans­for­mam em instru­men­to da preser­vação dos anti­gos dire­itos, inter­pre­ta­dos como priv­ilé­gio de poucos, com suporte de juris­tas, agentes do Esta­do, setores soci­ais e reli­giosos, cor­po­rações nacionais e inter­na­cionais, sis­temas de edu­cação nacionais e estrangeiros de suporte de desigual­dade.

Sim, a vida está fora de equi­líbrio. Mas o Mun­do e, espe­cial­mente, o Brasil pas­sam por um evi­dente proces­so de dev­as­tação ambi­en­tal, em que os mecan­is­mos de con­t­role não fun­cionam (ou sequer querem fun­cionar, nem pare­cem aptos a fun­cionar), na imple­men­tação de anti-políti­cas públi­cas, que favore­cem e incen­ti­vam a destru­ição, por meio de queimadas e invasões de áreas pro­te­gi­das.  O caso das queimadas é ape­nas um dos tan­tos casos, em que se reti­ra a pro­teção para pos­si­bil­i­tar o avanço de ativi­dades insus­ten­táveis. O caso do mangue, out­ro. Sequer o novo Códi­go Flo­rest­lal (já é ruim con­statar ter pas­sa­do uma refor­ma noci­va, ape­sar de tan­tos protestos) é respeita­do. Que diz­er da Con­sti­tu­ição e dos trata­dos inter­na­cionais.

Enfim, essa nova onda de destru­ição é irre­ver­sív­el e pode sig­nificar o fim do Brasil e do Mun­do que con­hece­mos. Porque não se tratará mais de lutar para despoluir rios, por exem­p­lo, mas só de lamen­tar não exi­s­tirem mais flo­restas e matas nati­vas.

É o pior regime de todos os tem­pos. o “Regime Anti­con­sti­tu­cional” brasileiro, o Regime Rea­cionário de preser­vação de priv­ilé­gios inter­na­cional, como os ten­ho chama­do, implan­ta­dos com base em men­ti­ras e mera entre­ga de tudo à explo­ração mais mesquin­ha pri­va­da.

É a vio­lação de dire­itos e deveres irrestri­ta. Como se estivésse­mos assistin­do, no fun­do de uma cav­er­na, aos filmes de Reg­gio inúmeras vezes, estáti­cos, apáti­cos, sem esboçar reação, hip­no­ti­za­dos pelo anda­men­to das músi­cas de Phillip Glass, que nos embal­am como pri­sioneiros ata­dos uns aos out­ros, desam­para­dos e  impo­tentes diante dos mon­stros ger­a­dos pelas som­bras da desumanidade.