O artigo a seguir, de autoria de Alfredo Attié, Titular da Cadeira San Tiago Dantas da Academia Paulista de Direito, publicado, originalmente em Terra Tavares, na contribuição quinzenal do autor a esse periódico, analisa a mensagem inicial de Joe Biden, Presidente dos Estados Unidos, ressaltando sua referência a Santo Agostinho e a implicação da adesão a seu conceito de amor.
Biden e Agostinho
Alfredo Attié
Titular da Cadeira San Tiago Dantas e Presidente da Academia Paulista de Direito, Doutor em Filosofia da USP, exerce a função de desembargador no Tribunal de Justiça de SP
Dentre os inúmeros rituais da prática política norte-americana, o da transmissão da Presidência reveste-se de um encanto superior. Os americanos nos legaram não apenas a instituição do presidencialismo, mas conseguiram alçá-lo a importância muito superior à da monarquia. Esse apuro na constituição de uma tradição talvez se deva à novidade da república norte-americana, que surge no final dos Setecentos vinculada à paixão da independência, palavra fundamental para compreender o projeto do Iluminismo.
Nesse momento de passagem do poder, em que ele se reafirma por meio de um juramento que um Presidente faz independentemente de seu antecessor, há uma diferença essencial no que diz respeito aos Países que, tendo adotado o Presidencialismo a partir do exemplo estadunidense, como o Brasil, figuram a sucessão presidencial por meio de um gesto de transmissão de uma pessoa a outra, pela entrega da faixa. Para os norte-americanos, há apenas a Constituição e a promessa solene, diante de representante do poder judicial, que representa a perenidade republicana comparada à transição constante do poder executivo, que George Washington voluntariamente inaugurou.
Como se trata de valores sacramentais, as palavras formulares e as do discurso presidencial possuem muita relevância. O discurso é aguardado com ansiedade, pois cabe ao líder político norte-americano curar as feridas da vida — demonstrando sua compreensão da condição humana, e remetendo aos poderes curativos dos monarcas do Antigo Regime –, expressar confiança e empenho na capacidade de resiliência daqueles a que lhe cabe conduzir e servir, “uma Nação sob Deus,” diz a promessa de fidelidade (pledge of allegiance), recitada pelos estudantes norte-americanos nas escolas públicas.
À maneira do sermão, o Presidente escolhe as palavras que encarnem os valores específicos a que dará maior peso, em sua gestão transitória. Joe Biden inspirou-se em Agostinho de Hipona – o filósofo da síntese entre as tradições judaico-cristã e heleno-romana -, e selecionou os princípios de “união e amor.” O amor é o aspecto mais inovador da mensagem presidencial, e chega em momento propício, prometendo energia para resolver os impasses de um Mundo novamente dividido.
Agostinho foi essencial na história da filosofia, precisamente por causa de sua habilidade de conciliação de diferentes visões de mundo, que pareciam inconciliáveis em sua época, numa divergência ainda mais profunda do que a aquela que nos separa, hoje. Ele realizou a síntese de tradições tão dissimilares religiosas e laicas, de sagrado e profano, por meio de uma nova concepção filosófica e política, embasada na ideia de amor como fundamento da unidade social.
Em tempos de fanatismo religioso e político, Biden soube escolher o caminho de uma ação terapêutica, cuja energia curativa não despreza a presença dos desafios e problemas, agudizados pela pandemia, na desigualdade profunda e na crise ambiental, questões que, aliadas à crise de governança, têm levado ao deslocamento forçado de povos no mundo contemporâneo. Líderes e representantes de vários Países não têm sabido lidar com os anseios de seus povos e as exigências de adaptação a uma nova era, em despreparo que põe em xeque conquistas civilizacionais, como a democracia e os direitos humanos.
O princípio do amor Biden foi buscar no filósofo das passagens entre o divino e o humano, que o aponta como motor dos relacionamentos humanos, nos âmbitos terreno e sagrado. As cidades divina e humana não são pontos extremos de exclusão. Estão conectadas porque o amor é o fundamento da humanidade e de sua relação com a divindade, que encaminha em direção ao outro, ao diferente: impulso da adesão humana a um projeto social e político, que tem na troca sua configuração essencial. Essa relação de reciprocidade não se limita aos interesses humanos e à satisfação de desejos imediatos, contingentes. A presença do divino reforça e reconfigura essa relação, levando‑a a uma transcendência capaz de fixar objetivos melhores e mais nobres para a vida comum, assim como de resolver conflitos, por meio do acolhimento de todas as vozes, a inclusão verdadeiramente de todos.
Por coincidência, recentemente, outro líder político notável contemporâneo, o Papa Francisco também lembrou Agostinho, ao citar Hannah Arendt, sua leitora e intérprete. O amor, nessa leitura, aparece como elemento que dá liga à convivência humana, no percurso de sua redenção. Os seres humanos se buscam para realizar juntos objetivos que não alcançariam na solidão. Essa aproximação não é mero contrato para concretizar desejos exclusivos. Exige a presença e o cuidado de todos, da comunidade humana, verdadeiro sentido da comunicação e da construção de bens, valores e projetos comuns. Há um bem maior, que é indicado por uma paixão que vai além do egoísmo, e que une a humanidade, vencendo os desafios das divergências e das dificuldades da condição humana.
Nos vários discursos da cerimônia de posse, além da crítica severa aos atos de vandalismo contra o Capitólio, ressaltou-se a potência do esforço coletivo, calcado no amor dos valores compartilhados, uma energia capaz de vencer ilusões e mentiras.
A invasão insana e brutal dos bárbaros da democracia de seus símbolos apontava para uma era de obscurantismo. Talvez encontre resposta, esperança e remédio na mensagem firme da união e do amor, na superação do fanatismo que, sabemos, pode ser capaz de travar o processo civilizacional de busca da felicidade.