O pre­sente arti­go, pub­li­ca­do orig­i­nal­mente em A Ter­ra é Redon­da, dis­cute o tema do racis­mo cul­tur­al, decor­rente da for­mação ecu­ca­cional, na sociedade brasileira, que con­tin­ua a pro­duzir cenas deploráveis, na imposição de uma ide­olo­gia de suprema­cia que atrav­es­sa atos e palavras.

Racismo e Odiosa Inversão da Realidade

Alí­pio de Souza Fil­ho (*)

Na sociedade brasileira, uma edu­cação cúm­plice do racis­mo ou ela própria racista for­ma indi­ví­du­os cujas ações racis­tas não podem ser con­sid­er­adas como even­tu­ais ou “por exces­so”

Por toda parte, o racis­mo con­tin­ua pro­duzin­do cenas intol­eráveis. No Brasil, e não é recente, cenas diárias expres­sam o hor­ror racista exis­tente na sociedade, prin­ci­pal­mente con­tra pes­soas negras. Se o racis­mo, em seu cerne, ampara-se numa con­strução ide­ológ­i­ca que é, em si mes­ma, uma dis­torção da ver­dade, ao pro­duzir a val­o­ração de seres humanos a par­tir da cor de sua pele e out­ros traços físi­cos, hier­ar­quizan­do-os, dis­crim­i­nan­do-os, ocorre tam­bém de ações racis­tas, e não rara­mente, bus­carem pro­duzir inver­sões dos fatos, tor­nan­do-se base de out­ra vio­lên­cia: a inver­são da real­i­dade.

Casos recentes, de muitos iguais que se repetem no país, ocor­ri­dos em São Paulo e em Por­to Ale­gre, são par­a­dig­máti­cos das inver­sões do hor­ror racista. No primeiro caso, uma assis­tente social negra é acu­sa­da de fur­to por vende­dores e segu­ranças de uma loja em shop­ping da cidade e, diante da revol­ta e protesto face à fal­sa acusação, os acu­sadores pedi­am “cal­ma” à assis­tente social, acusando‑a tam­bém de “estar ner­vosa”. No segun­do caso, um moto­boy negro, após levar uma faca­da no pescoço, por golpe des­feri­do por um sen­hor bran­co, é ele alge­ma­do e vio­len­ta­mente joga­do em viatu­ra poli­cial, ain­da que sob o protesto de pes­soas que acom­pan­haram todo o caso e teste­munhavam aos poli­ci­ais que o moto­boy tin­ha sido agre­di­do, não poden­do, pois, ser trata­do como agres­sor.  Bus­can­do escapar da vio­len­ta agressão, o moto­boy reti­ra das mãos do seu agres­sor a arma com a qual este des­feriu o golpe. Ao chegarem à cena, o que veem os poli­ci­ais? Um homem negro, segu­ran­do uma faca, em con­ten­da na rua com um sen­hor bran­co, que esta­va em calça­da de pré­dio onde reside. E a con­clusão faz-se ime­di­a­ta: “homem negro ata­ca homem bran­co”. O moto­boy foi vio­len­ta­mente cer­ca­do por poli­ci­ais, alge­ma­do e con­duzi­do a algu­ma del­e­ga­cia na caçam­ba de viatu­ra estatal. O sen­hor bran­co pôde entrar em sua casa, vestir-se e só depois seguir para a mes­ma del­e­ga­cia, na mes­ma viatu­ra poli­cial, porém, no inte­ri­or do veícu­lo, aco­moda­do em assen­to e ao lado dos poli­ci­ais. Nesse caso, os poli­ci­ais tam­bém pedi­ram “cal­ma” ao moto­boy negro e, vio­len­ta­mente, orde­navam que o rapaz não resis­tisse à sua con­dução força­da e agres­si­va.

O cotid­i­ano tem rev­e­la­do: na sociedade brasileira, uma edu­cação cúm­plice do racis­mo ou ela própria racista for­ma indi­ví­du­os cujas ações racis­tas não podem ser con­sid­er­adas como even­tu­ais ou “por exces­so”. A eficá­cia dessa edu­cação tem sido tal que é o ser dess­es indi­ví­du­os, com menor ou maior con­sciên­cia, que age inteiro e per­ma­nen­te­mente, ampara­do no con­venci­men­to da justeza daqui­lo que pen­sam e fazem. Como nos exem­p­los aci­ma, vende­dores, segu­ranças e poli­ci­ais tratam com racis­mo pes­soas negras, sem que cog­item come­ter erros, praticar injustiças, dis­crim­i­nação ou não levar em con­sid­er­ação a ver­dade. Não se con­segue dis­sua­di-los que estão erra­dos, que pro­movem ou são cúm­plices de fal­sas acusações e ofen­sas à dig­nidade do out­ro, que prati­cam ou aceitam racis­mo.

A bru­tal­i­dade da eficá­cia do racis­mo inter­nal­iza­do é taman­ha que (cenas mostram!) os agres­sores (seja vende­dores, segu­ranças pri­va­dos, porteiros, seja poli­ci­ais etc.) não escu­tam, não se inter­rogam e mes­mo sequer são capazes da sen­si­bil­i­dade de ouvir o deses­per­a­do ape­lo dos agre­di­dos. Agem bru­tal­mente, fazen­do valer as con­vicções de um odioso racis­mo, que não se deixa deter por nen­hum ape­lo, e que se sus­ten­ta na inver­são da real­i­dade: o vio­len­ta­do pas­sa rap­i­da­mente à condição de vio­len­ta­dor (o agre­di­do pelo racis­mo tor­na-se aque­le que é “ner­voso”, “defende-se agres­si­va­mente”, “gri­ta”, “protes­ta”, “perde a lin­ha”, “perde a razão”…) e perde, assim, o dire­ito à indig­nação e o dire­ito a exi­gir reparação moral e jurídi­ca pelos danos cau­sa­dos pela dis­crim­i­nação racista.

Indifer­entes à revol­ta e ao ape­lo dos vio­len­ta­dos, os agentes do racis­mo cotid­i­ano procu­ram tam­bém aniquilar aqui­lo que res­ta aos que sofrem a vio­lên­cia racista: gri­tar, protes­tar, con­tes­tar; como se, face ao ultra­je de sua dig­nidade, os vio­len­ta­dos ain­da guardassem algu­ma esper­ança de que seus gri­tos pos­sam ser escu­ta­dos. Gri­tos que o racis­mo procu­ra calar, desautor­izar, estigma­ti­zan­do-os como “desar­ra­zoa­d­os” e, diz-se tam­bém, covarde­mente, “despro­por­cionais ao ocor­ri­do”. Ao tem­po que provo­ca a dor, o racis­mo procu­ra invalidá-la e silen­ciá-la: não pode haver protesto, gri­to pela dor provo­ca­da pela humil­hação, pelo sen­ti­men­to de opressão, pela mar­gin­al­iza­ção e tam­bém (como em muitos casos) crim­i­nal­iza­ção dos pas­sos e atos de pes­soas negras nas diver­sas situ­ações de sua cir­cu­lação e par­tic­i­pação soci­ais.

Acred­i­ta-se que o gri­to humano é sig­no do deses­pero, mas, de fato, é um dos sig­nif­i­cantes da deman­da por pro­teção, face ao nos­so desam­paro ontológi­co como criat­uras de uma espé­cie sem uma “espé­cie nat­ur­al” a qual se agar­rar para exi­s­tir, como são os casos de todas as demais; o que nos tor­na depen­dentes do out­ro semel­hante para chegar­mos à condição de humanos; somente por esse out­ro temos aces­so à lin­guagem pro­pri­a­mente humana para o viv­er qual­i­ficáv­el como humano.

Quan­do a cri­ança humana cho­ra ao nascer, e todos querem ouvir esse choro, faz-nos saber que está viva. No nasci­men­to, o choro do bebê equiv­ale ao primeiro gri­to humano, para lem­brar, aos demais humanos adul­tos vivos, que chegou ao mun­do um novo ser, que ele está vivo, mas que, fora da vida intraute­ri­na, encon­tra-se em total desam­paro. Pre­cis­ará de um out­ro humano que o tome ao seu encar­go, até que pos­sa viv­er por “con­ta própria”, o que nun­ca o será tão com­ple­ta­mente que pos­sa, em algu­ma hora, o ser vivente o out­ro dis­pen­sar. A filó­so­fa Judith But­ler tem uma boa saca­da sobre o assun­to, que gos­to de remem­o­rar: nos­sa dependên­cia ontológ­i­ca ao out­ro acom­pan­ha-nos do nasci­men­to à sepul­tura. E é mes­mo assim! Emb­o­ra, como tam­bém obser­va a filó­so­fa estadunidense, o out­ro que pode cor­re­spon­der a algum amparo que neces­si­ta­mos sem­pre, é, simul­tane­a­mente, por sua ausên­cia ou por seus atos, aque­le que pode cor­re­spon­der tam­bém à nos­sa morte. A nos­sa dependên­cia primária (ontológ­i­ca) ao out­ro é tam­bém nos­sa vul­ner­a­bil­i­dade, que pode, em cer­tas condições, ser muitís­si­mo exac­er­ba­da. [i]  Sobre o gri­to humano, assim pen­sou o psi­canal­ista Jacques Lacan: na situ­ação de infân­cia, o gri­to não é mero “sinal”, mas algo inscrito num sis­tema sim­bóli­co, onde a lin­guagem já está insti­tuí­da e o ser humano nela imer­so; o gri­to assume a função sig­nif­i­cante de aludir a algu­ma coisa que fal­ta;  e dirá: “o gri­to é feito para que se tome con­hec­i­men­to dele, até mes­mo para que, mais-além, se o relate a um out­ro”.[ii] O que aqui é dito sobre o gri­to na situ­ação de infân­cia encon­trará seus equiv­a­lentes (metafóri­cos ou não) na vida adul­ta de todos – e até o últi­mo sus­piro.

Pois bem, porque somos essa criatu­ra do desam­paro e dependên­cia (ao out­ro) ontológi­cos, e porque, na lin­guagem humana, o gri­to assume a função sig­nif­i­cante de se referir, entre out­ras coisas, à fal­ta de algu­ma pro­teção (amparo, acol­hi­men­to), quan­do ocorre desse out­ro agir com dis­crim­i­nações exclu­dentes, mar­gin­al­izantes, como na situ­ação de racis­mo, gri­ta­mos! É que a que­bra do “pacto ontológi­co” de pro­teção entre seres humanos e entre estes e out­ros seres vivos é ato que aban­dona o out­ro à situ­ação de desam­paro e, pois, ao risco de ver agravadas vul­ner­a­bil­i­dades iner­entes à condição humana – na situ­ação de racis­mo, como em out­ras, o protesto do gri­to não é “ner­vo­sis­mo”, mas expressão da capaci­dade de indig­nação preser­va­da, que, como tal, veic­u­la deman­da de pro­teção e recla­ma dire­itos igual­itários.

Nas situ­ações de vio­lên­cia, como no racis­mo, quan­do seres humanos protes­tam, gri­tam, não é cor­re­to nem jus­to que se peça “cal­ma”, pois, na situ­ação de opressão racista, a cólera tor­na-se a denún­cia da inver­são da real­i­dade, da negação da ver­dade e, pois, denún­cia de uma injustiça. O sen­ti­men­to de opressão vivi­do pelas pes­soas negras na situ­ação da dis­crim­i­nação racista é aumen­ta­do com “ape­los” à “cal­ma”, “ape­los” para que evitem o “ner­vo­sis­mo”. No fun­do, pede-se ao vio­len­ta­do que con­sin­ta sua sub­mis­são e pede-se o seu silên­cio.

No gri­to antir­racista, o que se bus­ca é ser ouvi­do quan­to a uma ver­dade sequestra­da e ocul­ta­da na inver­são dos fatos. E às vezes (ou em tan­tas vezes) o que se bus­ca é até mes­mo evi­tar a morte, em sociedades nas quais ser negro, ou mestiço ou mes­mo bran­co, mas, prin­ci­pal­mente, per­ten­cente às chamadas class­es pop­u­lares, é viv­er sob a som­bra da morte aonde se vai. Ações das polí­cias mil­itares nos esta­dos brasileiros não per­mitem pen­sar difer­ente­mente quan­do se com­param dados sobre “morte”, por class­es soci­ais e ori­gens étni­cas, a cada vez que essas polí­cias real­izam o que chamam suas “oper­ações”. O hor­ror-pâni­co à polí­cia mil­i­tar por parte dos moradores de bair­ros pop­u­lares nas diver­sas cidades do país não é sem razão: ao que parece, uma polí­cia con­ven­ci­da em trans­for­mar o ato de matar em ver­dadeira políti­ca de “segu­rança públi­ca”. Diante dos con­stantes medos e inse­gu­rança cau­sa­dos pelo racis­mo assas­si­no, prat­i­ca­do tam­bém por agentes do esta­do, o gri­to é um alarme, um pedi­do de socor­ro!

O racis­mo é uma práti­ca que vio­la o igual val­or da dig­nidade das pes­soas, pois parte de princí­pios de hier­ar­quiza­ção e dis­crim­i­nação do ser dos indi­ví­du­os, por pre­tendi­dos per­tenci­men­tos ao que o próprio racis­mo inven­tou como existin­do: as “raças”; ao que acres­cen­tou a ideia (ide­ológ­i­ca) de “supe­ri­or­i­dade racial”, com o que – por edu­cação racista, sob a batu­ta da ide­olo­gia da supe­ri­or­i­dade racial – são prat­i­cadas dis­crim­i­nações, humil­hações, ofen­sas, injúrias, pri­van­do pes­soas de liber­dade e dire­itos, por con­sid­er­ações em relação ao que seri­am suas ori­gens e/ou per­tenci­men­tos étni­co-raci­ais.

Utopizar uma sociedade sem racis­mo é condição para sair­mos do apri­sion­a­men­to na imag­i­nação social de nos­sas sociedades, pri­vadas de imag­i­nar que out­ra real­i­dade é pos­sív­el, pelo monopólio da ide­olo­gia da “supe­ri­or­i­dade racial” ou pelo monopólio da ide­olo­gia tout court, que col­o­niza o imag­inário social e a mente de muitos.

 

(*)Ali­pio DeS­ousa Fil­ho. Pro­fes­sor Tit­u­lar de Teo­ria Social do Insti­tu­to Humanitas/UFRN e pro­fes­sor do Pro­gra­ma de Pós-Grad­u­ação em Filosofia (Éti­ca e Filosofia Política)/UFRN, é doutor em Soci­olo­gia pela Uni­ver­si­dade de Paris-Sor­bonne (2000). Dire­tor do Human­i­tas — Insti­tu­to de Estu­dos Integrados/UFRN (2019–2022), foi cri­ador, em 2007, da revista Bagoas: estu­dos gays (EDUFRN) e seu edi­tor até 2019. Entre out­ros tra­bal­hos, é autor dos livros Medos, mitos e cas­ti­gos (Cortez, 1995; 2001) Respon­s­abil­i­dade int­elec­tu­al e ensi­no uni­ver­sitário (EdUFRN, 2000), Les métis­sages brésiliens (Paris, PUS, 2003), Brésil: Terre des métis­sages (Saar­brück­en, Press­es Uni­ver­si­taires Europeennes, 2011), Tudo é con­struí­do! Tudo é revogáv­el! A teo­ria con­stru­cionista críti­ca nas ciên­cias humanas (Cortez Edi­to­ra, 2017; com tradução para o inglês, pub­li­ca­da pela edi­to­ra Peter Lang, Oxford, 2019), coor­ga­ni­zador e autor de capí­tu­lo do livro Car­tografias de Fou­cault (Autên­ti­ca, 2008) e coau­tor do livro Que é ide­olo­gia? (Lis­boa, Esco­lar Edi­to­ra, 2016), autor de arti­gos e ensaios pub­li­ca­dos em per­iódi­cos ou como capí­tu­los de livros, resul­ta­dos de estu­dos e par­tic­i­pações em con­gres­sos nacionais e inter­na­cionais. Prin­ci­pal atu­ação: Teo­ria Con­stru­cionista Críti­ca; Descon­stru­cionis­mo Críti­co; Teo­ria da Ide­olo­gia; Teo­ria da Sujeição e da Dessu­jeição; Filosofia Políti­ca do Recon­hec­i­men­to (Dire­itos Humanos); Estu­dos Gays

 

Notas


[i] BUTLER, Judith. Deshac­er el género. Barcelona: Paidós, 2012, p.35–66

[ii] LACAN, Jacques. O sem­i­nário – livro 4: a relação de obje­to. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, pp.182–199