Em impor­tante depoi­men­to ao jor­nal O Esta­do de S. Paulo, o jurista Roque Antônio Car­raz­za, Pro­fes­sor Tit­u­lar de Dire­ito Trib­utário da Pon­tif­í­cia Uni­ver­si­dade Católi­ca de São Paulo — PUC.SP, crit­i­ca a refor­ma trib­utária aprova­da no plenário da Câmara dos Dep­uta­dos, como Emen­da Con­sti­tu­cional, no dia seis de jul­ho de 2023, sobre­tu­do por seu caráter de negação do fed­er­al­is­mo brasileiro. Para o Acadêmi­co Tit­u­lar da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, a refor­ma aca­ba por tornar o Brasil um Esta­do unitário.

Leia, a seguir, a entre­vista à jor­nal­ista Beat­riz Bul­la.

Pro­fes­sor tit­u­lar da Fac­ul­dade de Dire­ito da PUC-SP e jurista refer­ên­cia no estu­do de Dire­ito Trib­utário, o advo­ga­do Roque Anto­nio Car­raz­za faz sérias críti­cas à pro­pos­ta de refor­ma trib­utária em votação na Câmara dos Dep­uta­dos nes­ta quin­ta-feira, 6. Para o espe­cial­ista no assun­to, a refor­ma igno­ra a Con­sti­tu­ição pois “aca­ba com a fed­er­ação”, ben­e­fi­cia ape­nas a indús­tria e o setor finan­ceiro e não dev­e­ria ser apre­ci­a­da de for­ma apres­sa­da no Con­gres­so. “Vale aqui, a sabedo­ria pop­u­lar, bem traduzi­da no provér­bio ‘quem decide depres­sa se arrepende deva­gar’”, afir­ma o trib­u­tarista, nes­sa entre­vista ao Estadão.

Car­raz­za, que é autor de diver­sos livros sobre o assun­to, como o Cur­so de Dire­ito Con­sti­tu­cional Trib­utário, que está em sua 34ª edição, tam­bém afir­ma que é uma “maciça pro­pa­gan­da enganosa” a ideia de que todos pagarão menos impos­tos e diz que a ideia de um impos­to sobre val­or agre­ga­do dual é fal­sa, pois a União terá mais poder que Esta­dos e municí­pios.

“Esse sub­sti­tu­ti­vo, a pre­tex­to de veic­u­lar uma refor­ma trib­utária necessária e lou­váv­el, encer­ra um ver­dadeiro pro­je­to de poder, qual seja, o de sub­me­ter os Esta­dos, os municí­pios e o Dis­tri­to Fed­er­al, ao jugo da União, trans­for­man­do o Brasil, na práti­ca, em um esta­do unitário”, afir­ma Car­raz­za.

Mudança foi ante­ci­pa­da pelo dep­uta­do Aguinal­do Ribeiro em entre­vista ao ‘Estadão’

O sr. é bas­tante críti­co à atu­al refor­ma trib­utária em votação na Câmara. Qual o prin­ci­pal prob­le­ma?

As nor­mas jurídi­cas mais impor­tantes se encon­tram na Con­sti­tu­ição. De fato, ela é a Lei Maior, a matriz de todas as man­i­fes­tações nor­ma­ti­vas do Esta­do. Em matéria trib­utária, a Con­sti­tu­ição brasileira foi extrema­mente min­u­ciosa. Graças à Con­sti­tu­ição, nós con­tribuintes só podemos ser trib­u­ta­dos den­tro dos parâmet­ros con­sti­tu­cionais. Muito bem. No sub­sti­tu­ti­vo da PEC 45, que o dep­uta­do Arthur Lira (PP-AL) quer aprovar o mais rap­i­da­mente pos­sív­el, foi esque­ci­da essa ideia fun­da­men­tal.

Mas a dis­cussão sobre a refor­ma está colo­ca­da há décadas e a base do tex­to vem sendo dis­cu­ti­da no Con­gres­so des­de 2019. Isso não seria sufi­ciente?

A meu ver, não está sendo obser­va­do o dev­i­do proces­so leg­isla­ti­vo de refor­ma con­sti­tu­cional. As PECs devem ser exam­i­nadas pela Comis­são de Con­sti­tu­ição e Justiça e, depois, aprovadas pela Comis­são Espe­cial no pra­zo de quarenta sessões. Ora, aprova­da dessa for­ma foi a PEC 45 e, não, o sub­sti­tu­ti­vo, que é, em rig­or, uma nova PEC. Somente essa injuridi­ci­dade, a meu ver, invi­a­bi­liza a sua aprovação.

Por que a ideia de que a Con­sti­tu­ição é a Lei Maior foi igno­ra­da no tex­to atu­al?

Na práti­ca, ela aca­ba com a fed­er­ação. A refor­ma trib­utária, se aprova­da da maneira como está pos­ta no sub­sti­tu­ti­vo da PEC 45, reti­rará autono­mia finan­ceira dos Esta­dos, dos municí­pios e do Dis­tri­to Fed­er­al. Ora, a autono­mia finan­ceira é o pres­su­pos­to necessário para a existên­cia das autono­mias políti­ca e jurídi­ca.

Vale aqui lem­brar que o princí­pio fed­er­a­ti­vo é “cláusu­la pétrea”, ou seja, não pode ser amesquin­hado, muito menos aboli­do, nem mes­mo por meio de emen­da con­sti­tu­cional.

A cri­ação de um IVA dual, com o IBS des­ti­na­do a Esta­dos e municí­pios, não resolve essa questão?

O fal­so IBS dual será arrecada­do pela União e, depois, por ela repas­sa­do. No entan­to, a União poderá, sob pre­tex­tos vários, como quase sem­pre acon­tece, retardá-los, espe­cial­mente para as pes­soas políti­cas gov­er­nadas por inte­grantes de par­tidos políti­cos de oposição ao gov­er­no cen­tral. Sem autono­mia finan­ceira, essas pes­soas políti­cas terão que ped­in­char as beness­es da União para sobre­viv­er. Serão, na práti­ca, reduzi­das à condição de meros ter­ritórios fed­erais, a exem­p­lo dos que exi­s­ti­ram até serem aboli­dos com o adven­to da atu­al Con­sti­tu­ição.

E nem se diga que haverá fun­dos e câmaras de com­pen­sação para garan­tir tais repass­es. O assun­to será reg­u­la­do por uma lei com­ple­men­tar nacional, vota­da, pois, pelo Con­gres­so. As reuniões que se fiz­erem, com base nes­sa lei com­ple­men­tar nacional, terão, de um lado, a União e, do out­ro, os rep­re­sen­tantes dos mais de 5.500 Municí­pios, dos 27 Esta­dos e do Dis­tri­to Fed­er­al. O sub­sti­tu­ti­vo, não indi­ca se todos terão voz e voto ou, no caso de serem ape­nas alguns, o modo como serão escol­hi­dos. Não é pre­ciso grande esforço int­elec­tu­al para se con­cluir que a União assumirá o total domínio do assun­to, o que fatal­mente entrará em rota de col­isão com os pos­tu­la­dos da Fed­er­ação brasileira.

O sr. tam­bém argu­men­ta que a refor­ma dá à União uma “caixa vazia”. O que isso sig­nifi­ca?

O sub­sti­tu­ti­vo descon­sti­tu­cional­iza parte do nos­so sis­tema trib­utário. Os con­tribuintes, na atu­al Con­sti­tu­ição, encon­tram as regras-matrizes dos trib­u­tos que podem ser obri­ga­dos a supor­tar. Tro­can­do a ideia em miú­dos, as com­petên­cias trib­utárias das pes­soas políti­cas se encon­tram sem­pre lim­i­tadas na Con­sti­tu­ição por um ver­bo e um com­ple­men­to — exem­p­lo: auferir rendi­men­tos, prestar serviços, adquirir imóv­el. Graças a isso, os con­tribuintes sabem, de antemão, que, para serem com­peli­dos a pagar o impos­to sobre a ren­da, dev­erão auferir rendi­men­tos, para serem com­peli­dos a pagar o ISS, prestar serviços, para serem com­peli­dos a pagar o ITBI, adquirir um imóv­el, e assim por diante.

O IBS não está estru­tu­ra­do dessa for­ma. O sub­sti­tu­ti­vo não lhe apon­ta nem o ver­bo nem o com­ple­men­to. Dá de pre­sente à União uma ver­dadeira “caixa vazia”, na qual o leg­is­lador com­ple­men­tar nacional tudo poderá colo­car. O IBS poderá ser exigi­do de quem vender mer­cado­rias, de quem prestar serviços, de quem ced­er onerosa­mente o dire­ito de uso de um bem, de quem realizar um arren­da­men­to mer­can­til, etc. O con­tribuinte ficará sob o jugo da inse­gu­rança e da incerteza, porque não lhe será garan­ti­do o dire­ito de deixar de recol­her trib­u­to que este­ja fora dos parâmet­ros con­sti­tu­cionais.

Deploro a maciça pro­pa­gan­da enganosa que está sendo fei­ta, no sen­ti­do de que, com a refor­ma, todos pagarão menos trib­u­tos. Não é ver­dade. Só as indús­trias e o setor finan­ceiro serão ben­e­fi­ci­a­dos com a refor­ma. O setor agropecuário, que é o grande respon­sáv­el pelo equi­líbrio da nos­sa bal­ança econômi­ca, será alta­mente oner­a­do. O mes­mo ocor­rerá com o setor com­er­cial. Isso para não falar do setor de serviços, que empre­ga a maior parte da nos­sa mão de obra e responde pela maior parte do nos­so PIB.

Atual­mente, o setor de serviços paga, em média, a títu­lo de ISS, 3% do preço de cada serviço presta­do. Se a refor­ma trib­utária vin­gar, o ISS será aboli­do e o setor pagará, a títu­lo de IBS, 25% do preço de cada serviço presta­do. O gov­er­no fed­er­al argu­men­ta que, com os descon­tos, o mon­tante do trib­u­to chegará, em média, a 10% do preço de cada serviço presta­do, o que, diga-se de pas­sagem, é uma falá­cia, porque o setor, não poden­do abater os gas­tos com mão de obra, terá pou­cas deduções a faz­er. Mas, mes­mo que se aceite a ver­são ofi­cial, o cer­to é que 10% rep­re­sen­tam mais do que o trip­lo dos 3% que o setor paga.

A pre­tex­to de ala­van­car a indus­tri­al­iza­ção do País, serão prej­u­di­ca­dos todos os out­ros setores da econo­mia nacional. E, pior, os con­tribuintes pes­soas físi­cas serão ain­da mais oner­a­dos pela já insu­portáv­el car­ga fis­cal.

Além da questão sobre o IBS, há out­ros pon­tos que reforçam o poder da União, na avali­ação do sr.?

O sub­sti­tu­ti­vo tam­bém pre­vê que o impos­to sele­ti­vo incidirá sobre bens e serviços prej­u­di­ci­ais à saúde e ao meio ambi­ente, nos ter­mos da lei ordinária que a União vier a edi­tar. O leg­is­lador ordinário poderá, por­tan­to, reg­u­lar o assun­to como lhe aprou­ver, já que o sub­sti­tu­ti­vo não fixa parâmet­ros para que sejam apon­ta­dos tais bens e serviços nocivos.

Não é difí­cil perce­ber que, com esse ver­dadeiro “cheque em bran­co”, a União terá poderes para con­tro­lar quase todos os trib­u­tos do País, cujo mon­tante ultra­pas­sa 90% da arrecadação nacional, o que, sem dúvi­da, é alta­mente cen­suráv­el.

Esse sub­sti­tu­ti­vo, a pre­tex­to de veic­u­lar uma refor­ma trib­utária necessária e lou­váv­el, encer­ra um ver­dadeiro pro­je­to de poder, qual seja, o de sub­me­ter os Esta­dos, os municí­pios e o Dis­tri­to Fed­er­al, ao jugo da União, trans­for­man­do o Brasil, na práti­ca, em um esta­do unitário.