Em 1988, reitores de uni­ver­si­dades da Europa reuni­ram-se em Bologna, cidade cuja área met­ro­pol­i­tana está situ­a­da entre as regiões históri­c­as da Emil­ia e da Romagna, na parte norte ori­en­tal da Italia, e que, ade­mais de sua importân­cia econômi­ca, políti­ca e cul­tur­al, por causa dessa local­iza­ção, serve de cap­i­tal da região admin­is­tra­ti­va denom­i­na­da de Emil­ia-Romagna. A cidade per­ten­cia aos domínios do papa­do, quan­do, nove­cen­tos antes dessa impor­tante reunião, em 1088, ali se instalou uma esco­la (schola) de edu­cação supe­ri­or, Studi­um Gen­erale, con­sti­tuin­do-se na mais anti­ga Uni­ver­si­dade europeia. O fasci­nante dessa esco­la é ter sido con­ce­bi­da e esta­b­ele­ci­da por estu­dantes, que se reu­ni­am, con­tratavam seus mestres, e, a pouco e pouco, foram dan­do margem à real­iza­ção de seu desen­ho. Ao lado dos estu­dos ini­ci­ais de artes, os supe­ri­ores de teolo­gia, dire­ito e med­i­c­i­na.

Já em Paris, lugar em que viria a ser insta­l­a­da a segun­da Uni­ver­si­dade, foram os mestres que se reuni­ram e, pon­do à dis­posição seus temas e cur­sos, lograram reunir em torno de suas class­es estu­dantes.

No princí­pio, o des­per­tar das Uni­ver­si­dades cor­re­spon­deu a esse movi­men­to de estu­dantes e mestres, que dese­javam con­sti­tuir um modo de apren­diza­gem, pesquisa e de dis­cussão de temas cor­re­spon­dentes à edu­cação supe­ri­or, isto é, que superassem a práti­ca edu­ca­cional que se encer­ra­va nos saberes e nas práti­cas téc­ni­cas, ou que se restringia aos temas da edu­cação bási­ca, fun­da­da num primeiro Renasci­men­to do que chamamos de Idade Média, no perío­do Car­olín­gio,  em que os saberes da Antigu­idade foram sis­tem­ati­za­dos na maneira das chamadas artes lib­erais – isto é, o triv­i­um e o quadriv­i­um-, assim chamadas de lib­erais porque lib­er­tas do con­strang­i­men­to das cor­po­rações de ofí­cio e dos liames ou dos com­pro­mis­sos estri­tos com as estru­turas de poder ecle­siás­ti­co e tem­po­ral, ao menos par­cial­mente.[1] Essa deter­mi­nação de liber­dade — dada pelo vín­cu­lo das Uni­ver­si­dades nascentes com a efer­vescên­cia das cidades, que tam­bém renasci­am, no perío­do que coin­cidia com a chama­da Refor­ma medieval (bus­ca de recu­per­ação de for­mas orig­i­nais ou autên­ti­cas de reli­giosi­dade, bem como de expressão de novas for­mas de vida indi­vid­ual e comum, novas exper­iên­cias ali­adas a um sen­ti­men­to de revivescên­cia das anti­gas) – rep­re­sen­ta­va já o primeiro de muitos para­dox­os a acom­pan­harem o movi­men­to uni­ver­sitário em toda a sua história. Liber­dade, em meio a uma for­ma de orga­ni­za­ção que espel­ha­va as cor­po­rações de ofí­cio. Autono­mia depen­dente ora dos poderes locais, fos­sem ecle­si­ais ou comu­nais, ora dos poderes que bus­cav­am cen­tralizar em torno de si todas as ener­gias ino­vado­ras, rep­re­sen­ta­dos pelo papa­do e pelo império.

As Uni­ver­si­dades ini­ci­am-se sob a ini­cia­ti­va de estu­dantes e mestres, que se reúnem, sem neces­si­dade de insti­tu­cional­iza­ção, sem um local especí­fi­co para o exer­cí­cio das leituras e da apren­diza­gem, sem patrocínio nem sequer auxílio econômi­co de qual­quer insti­tu­ição. Bas­ta­va que hou­vesse uma reunião de alunos e mestres, em lugares cuja memória se perdeu. Os espaços que hoje podem ser vis­i­ta­dos e cul­tua­dos, em ver­dade, cor­re­spon­dem a um segun­do momen­to, no cur­so dessa história que ain­da hoje se escreve, no qual a insti­tu­cional­iza­ção prevale­ceu, assim como a neces­si­dade de recon­hec­i­men­to e de instru­men­tal­iza­ção pelos poderes esta­b­ele­ci­dos, assim de títu­los, cer­ti­fi­ca­dos e recon­hec­i­men­to.

As Uni­ver­si­dades, por­tan­to, tornaram-se um suces­so tal, no seio de tan­tas con­tradições e para­dox­os, que ain­da vive­mos, quase mil anos após sua con­cepção e o iní­cio de sua exper­iên­cia, o mun­do que aju­daram a cri­ar e com o qual con­tin­u­am a inter­a­gir.

Nos­sa época, todavia, vive uma instante em que é necessário retomar a val­oriza­ção dessa exper­iên­cia, mas sobre­tu­do bus­car faz­er renascer o espíri­to pio­neiro, de bus­ca do saber e da recon­sti­tu­ição do que somos — nos­sa condição humana indi­vid­ual e comum -, por meio do exer­cí­cio da pesquisa, do estu­do, mas sobre­tu­do pela aber­tu­ra à par­tic­i­pação de quem quer que dese­je e se con­sidere apto a enfrentar os desafios de saber e de quer­er super­ar a con­sciên­cia dos lim­ites de saber — as dúvi­das e inda­gações que super­am as respostas, e a paixão de desven­dar novos mun­dos e de explo­rar os cam­in­hos já son­da­dos por out­ros e no pas­sa­do, para solu­cionar prob­le­mas con­cre­tos da humanidade, mas tam­bém para se aven­tu­rar pelo uni­ver­so do que, aparente­mente, mostra-se inútil, porque exerci­ta em nós mes­mos o aspec­to mais essen­cial de ser­mos humanos, ultra­pas­san­do as fron­teiras que con­stan­te­mente nos impo­mos, pela neces­si­dade de segu­rança e amparo, em meio à diví­cia e com­plex­i­dade do mun­do, das coisas e pes­soas que nos cer­cam, e com quem trava­mos uma relação cri­ado­ra.

Um Renasci­men­to do espíri­to do saber e do faz­er que são desin­ter­es­sa­dos das bases mate­ri­ais que, no momen­to pre­sente, pare­cem sig­nificar mais embaraços do que poten­cial­i­dades. Faz­er muito com o dese­jo, e desen­har muito com os instru­men­tos pro­visórios que pro­duz­i­mos no cur­so de uma quête infini­ta.

Renasci­men­to da uni­ver­si­dade como local de poiesis, por­tan­to, invenção e con­strução de saberes e de novas relações humanas e reais, sem des­cu­rar do que é pro­pri­a­mente prax­is da difí­cil existên­cia e con­vivên­cia cotid­i­ana e de seus prob­le­mas.

A Acad­e­mia Paulista de Dire­ito con­cebe-se, pois, como o espaço e o tem­po dessa exper­iên­cia orig­i­nal ren­o­va­da. Porque entende que o mun­do que vive­mos é care­cente dessa ativi­dade, que se desen­volve de modo sim­ples, para, com meios escas­sos, engen­har grandes coisas, mudanças e trans­for­mações notáveis, per­mitin­do a imag­i­nação de novas pos­si­bil­i­dades, novos mod­os de orga­ni­za­ção, out­ros mun­dos, out­ras maneiras de cul­ti­var e civ­i­lizar.

É nesse aspec­to que diz de sua par­tic­i­pação efe­ti­va no proces­so civ­i­liza­cional, par­tic­u­lar­mente ini­ci­a­do, quan­to ao dire­ito, com a fun­dação dos cur­sos de ciên­cias jurídi­cas e soci­ais, no Brasil, no cur­so da ter­ceira déca­da do Sécu­lo XIX, per­pet­uan­do-se pelo segun­do movi­men­to uni­ver­sitário, já na ter­ceira e na quar­ta décadas do Sécu­lo XX, e durante todo o cur­so desse Sécu­lo.

Renasci­men­to desse impul­so uni­ver­sitário, cada vez mais, porém aut­en­ti­ca­mente ago­ra, aber­to à par­tic­i­pação democráti­ca de uma sociedade que nova­mente dese­ja expres­sar novos mod­os de existên­cia indi­vid­ual e social, com liber­dade e sol­i­dariedade.

A Acad­e­mia Paulista de Dire­ito — com o tra­bal­ho impor­tante de seus Acadêmi­cos e Acadêmi­cas, com o impul­so dos ACADEMIA PESQUISA, Cen­tros, Núcleos e Insti­tu­tos de Pesquisa, Estu­dos, Par­tic­i­pação e Exten­são à Sociedade, ini­ci­a­dos em agos­to de 2017, dos pesquisadores e pesquisado­ras, que começaram seu tra­bal­ho em 2018 e 2019, assim tam­bém dos Cur­sos, cujo empreendi­men­to se ini­cia em 2020, sua Poli­fo­nia Revista Inter­na­cional da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, ini­ci­a­da em jun­ho de 2018, suas pub­li­cações, a se ini­cia­rem em 2020, seus even­tos, com destaque para os Con­gres­sos Inter­na­cionais da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, ini­ci­a­dos em dezem­bro de 2018, bem como suas sele­tas parce­rias nacionais e inter­na­cionais, ini­ci­adas em agos­to de 2017, e imple­men­tadas a par­tir de 2019 – enfim, em seu con­jun­to de ativi­dades, mis­são e pro­je­tos, quer realizar e rep­re­sen­tar esse espíri­to, con­sti­tuin­do-se como uma Uni­ver­si­dade, nesse sen­ti­do pre­ciso, que recu­pera práti­cas e ideias, mas as ren­o­va, para se ade­quar ao pre­sente e desen­har novos futur­os.[2]

A Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, dou­ta e pru­dente mes­tra no tril­har de um cam­in­ho orig­i­nal: em bus­ca do futuro por meio da perquir­ição do pas­sa­do e aten­ta aos dese­jos e neces­si­dades do pre­sente.

 

Alfre­do Attié Jr
Tit­u­lar da Cadeira San Tia­go Dan­tas
Pres­i­dente da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito

 

[1] O triv­i­um cor­re­spon­dia aos estu­dos ini­ci­ais de gramáti­ca, retóri­ca e lóg­i­ca (ou dialéti­ca). O quadriv­i­um, aos estu­dos de arit­méti­ca e geome­tria,  bem como a suas apli­cações na com­preen­são das noções de har­mo­nia espa­cial e tem­po­ral, respec­ti­va­mente, a astrono­mia e a músi­ca.

[2] Leia mais sobre a Acad­e­mia Paulista de Dire­ito: sua mis­são, o sig­nifi­ca­do de acad­e­mia e poli­fo­nia de sím­bo­los, seus ACADEMIA PESQUISA, sua Revista, sua história, sua sede, seus cur­sos.

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