
O Professor e Advogado Wilson Ramos Filho, Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná — UFPR, da qual foi Professor, realiza importante trabalho no Museu da Lava-Jato, do qual é Presidente do Conselho Curador, instituição que foi criada por iniciativa de juristas, jornalistas e historiadores .
Xixo, como é carinhosamente conhecido, recentemente, redigiu o prefácio à publicação, pela Editora Kotter, da compilação, elaborada por Eduardo Appio, do Relatório da Polícia Federal, elaborado em apoio à Correição do Conselho Nacional de Justiça — CNJ sobre a Operação Lava Jato.
O Relatório Enterrado — Anatomia de um Mecanismo e a Batalha pela Memória
Wilson Ramos Filho (Xixo)[1]
“Há documentos que transcendem sua natureza burocrática para se tornarem artefatos históricos. São peças que, pela densidade dos fatos que revelam e pela controvérsia que catalisam, obrigam uma nação a confrontar as fissuras em suas instituições mais sagradas. O relatório da Polícia Federal, elaborado em apoio à Correição do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a Operação Lava Jato e que o leitor tem em mãos na íntegra pela primeira vez impresso em livro, é um desses documentos. Não se trata de um libelo acusatório, tampouco de um veredito final. É, antes de tudo, uma dissecação metódica, fria e factual do que aparenta ser um desvio sistêmico de poder no coração do sistema de justiça brasileiro. Sua publicação não é um ato de revanchismo pelos amigos que foram vitimados por um gládio que mais visava poder e lucro, mas um exercício inadiável de memória pública e de higiene democrática, essencial para compreender como os instrumentos da lei podem ser contorcidos até se transformarem nestas armas políticas.
Para entender a magnitude do que descrevem as páginas do Relatório, é útil pensar na Operação Lava Jato, em sua fase de Curitiba, não apenas como uma investigação, mas como um “sistema” paralelo, à margem do arcabouço legal e constitucional. Este sistema possuía suas próprias regras, seus próprios mecanismos financeiros e, como os indícios sugerem de forma contundente, seus próprios objetivos, que nem sempre convergiam com o interesse público ou com os ditames do devido processo legal. Este livro, ao trazer à luz o relatório que anatomiza esse mecanismo, não busca a condenação sumária de seus operadores, mas a reafirmação serena e militante de princípios constitucionais inegociáveis: a imparcialidade judicial, a separação de poderes, a transparência na gestão de recursos públicos e a responsabilidade dos agentes do Estado. O relatório é a evidência; este livro é a praça pública onde ela será, finalmente, examinada.
- A Gênese da Devassa: O Fio Desfiado em Curitiba
Toda estrutura, por mais monolítica que pareça, possui pontos de fragilidade. A fortaleza da 13ª Vara Federal de Curitiba, que por anos operou como o epicentro de um terremoto político e jurídico no Brasil, começou a revelar suas rachaduras não por um ataque externo, mas por um escrutínio interno. A chegada do juiz Eduardo Appio à titularidade da vara, em fevereiro de 2023, foi o catalisador involuntário de uma cadeia de eventos que culminaria na produção do relatório que se segue. Em seu curto período no cargo, Appio demonstrou uma disposição inédita para perscrutar a arquitetura financeira dos acordos da Lava Jato, um cofre até então intocável. Suas primeiras decisões e declarações públicas, posteriormente consolidadas em seu livro “Tudo Por Dinheiro”, sinalizaram uma ruptura com a cultura de deferência absoluta que protegia os métodos e as finanças da força-tarefa, provocando uma reação imediata e avassaladora.
A resposta do sistema foi veloz e implacável. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF‑4), a corte de apelação historicamente alinhada à Lava Jato e sediada em Porto Alegre, afastou Appio de suas funções de forma controversa, com base em uma denúncia de conduta imprópria. A manobra, contudo, revelou mais sobre a defensiva do mecanismo do que sobre a suposta falta do magistrado. A pressa em neutralizar um juiz que começava a fazer as perguntas certas sobre o dinheiro soou como um alarme em Brasília. A prova mais eloquente dessa desproporção veio meses depois, quando o próprio CNJ não apenas avocou para si o processo disciplinar contra Appio, retirando‑o da alçada do TRF‑4, como também o arquivou por falta de justa causa, considerando que as suspeitas contra ele haviam sido anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O afastamento de Appio, somado a um acúmulo de mais de trinta reclamações disciplinares contra magistrados e desembargadores ligados à Lava Jato, tornou a inação insustentável. Foi nesse cenário de conflagração institucional que a Corregedoria Nacional de Justiça, sob a liderança do ministro Luis Felipe Salomão, deu o passo decisivo. Em maio de 2023, foi instaurada a Correição Extraordinária para inspecionar o funcionamento da 13ª Vara Federal e da 8ª Turma do TRF‑4. A correição não era mais uma formalidade, mas uma resposta institucional a indícios crescentes de irregularidades sistêmicas.
Para dar o suporte técnico e investigativo a essa empreitada, a Corregedoria requisitou o auxílio da Polícia Federal. É aqui que emerge a figura central por trás dos achados técnicos do relatório: o delegado Élzio Vicente da Silva. Foi ele quem coordenou a equipe que forneceu a espinha dorsal investigativa para a análise do CNJ. A metodologia foi exaustiva, envolvendo a análise de processos judiciais no sistema eletrônico, a requisição de documentos financeiros à Petrobras e a outros órgãos, e a realização de oitivas. Essa colaboração conferiu ao documento final a credibilidade de um inquérito policial, distinguindo‑o de uma mera revisão administrativa e emprestando-lhe o peso da prova material. O episódio revela que o aparato aparentemente invencível da Lava Jato era, na verdade, extremamente frágil ao escrutínio interno. A reação agressiva e imediata a um único juiz dissidente não demonstrava força, mas um medo quebradiço da transparência, especialmente no que diz respeito às suas operações financeiras. A tentativa de silenciar um crítico saiu espetacularmente pela culatra, desencadeando a auditoria institucional que o sistema tanto buscava evitar.
- A Arquitetura do Desvio: O Conluio, a Fundação e o Dinheiro
O coração do relatório pulsa em torno de duas expressões que, no vocabulário contido do mundo jurídico, soam como um trovão: “gestão caótica” e “possível conluio”. A investigação da Corregedoria, amparada pela apuração da Polícia Federal, concluiu que o controle dos bilhões de reais oriundos de acordos de leniência e colaboração premiada na 13ª Vara de Curitiba era caótico. Contudo, o documento vai além, sugerindo que esse caos não era fruto de mera incompetência administrativa, mas de um padrão de conduta deliberado que, consistentemente, beneficiava uma agenda particular e extralegal. O ponto culminante dessa agenda foi a tentativa de desviar cerca de R$ 2,5 bilhões para a criação de uma fundação de direito privado, gerida pelos próprios procuradores da força-tarefa.
A engenharia financeira para esse desvio, conforme detalhada no relatório, foi uma complexa triangulação internacional:
- O Acordo nos Estados Unidos: O Departamento de Justiça dos EUA (DOJ) impôs uma multa bilionária à Petrobras por práticas de corrupção que enganaram investidores no mercado americano. O ponto crucial, apontado pelo relatório, é que as provas que fundamentaram essa multa foram, em grande parte, fornecidas pela própria força-tarefa da Lava Jato, por meio de uma cooperação informal que contornou os canais diplomáticos e os tratados de assistência jurídica mútua (MLATs). Em solo americano, a Lava Jato apresentou a Petrobras como a grande vilã, garantindo a aplicação de uma penalidade maciça.
- O Retorno do Dinheiro: Estranhamente o DOJ concordou que 80% do valor da multa — aproximadamente R$ 2,5 bilhões na época — fossem remetidos ao Brasil. No entanto, em vez de o dinheiro ser destinado ao Tesouro Nacional, como seria a praxe para reparar o Estado brasileiro, os recursos foram depositados em uma conta judicial vinculada e controlada pela 13ª Vara Federal de Curitiba, que até então, segundo o que se pode apurar até hoje, trabalhou em função de interesses do país doador.
- A Tentativa de Apropriação: Com os recursos sob controle judicial local, a força-tarefa, liderada por Deltan Dallagnol, costurou com a Petrobras um “Acordo de Assunção de Compromissos”. Este acordo previa a criação de uma fundação privada, com sede em Curitiba, que seria responsável por gerir esses R$ 2,5 bilhões. O relatório aponta que a manobra contou com a participação do então juiz Sérgio Moro, que teria iniciado o procedimento para direcionar os fundos, e foi posteriormente homologada pela juíza Gabriela Hardt.
O documento atribui papéis específicos aos atores-chave. Sérgio Moro é apontado como o responsável por instaurar, em 2016, um procedimento sigiloso para direcionar os valores dos acordos à Petrobras, tratando a estatal como “vítima” para todos os fins e, assim, pavimentando o caminho para o arranjo futuro. Deltan Dallagnol é descrito como o arquiteto da fundação, que teria atuado como representante do Estado brasileiro em negociações com os EUA e a Petrobras, assumindo um papel para o qual não possuía investidura legal. As conversas de Dallagnol com a organização Transparência Internacional sobre a governança do fundo revelam o quão avançado estava o planejamento. Por fim, a juíza Gabriela Hardt foi quem homologou o acordo, um ato que, segundo o relatório, foi praticado com base em comunicações informais, fora dos autos, e sem a devida cautela, violando seus deveres funcionais de prudência e imparcialidade.
A concretização do plano foi frustrada no último instante por uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Em março de 2019, o ministro Alexandre de Moraes, em resposta a uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 568) ajuizada pela então Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, suspendeu liminarmente o acordo, afirmando que o Ministério Público Federal havia exorbitado de suas funções constitucionais. A intervenção do STF, e não do TRF‑4, foi o freio de emergência que impediu o que o relatório descreve como um desvio bilionário.
Fica claro que a fundação não era apenas uma tentativa de apropriação indébita. Era um movimento estratégico para criar uma base de poder permanente, com financiamento privado, politicamente independente e isolada de qualquer controle governamental ou judicial. A missão declarada da fundação, que incluía a “formação de lideranças e do aperfeiçoamento das práticas políticas”, é explicitamente política, não judicial. A posterior migração de Moro e Dallagnol para a política partidária é citada no relatório como um indício da convergência entre os objetivos da fundação e as ambições pessoais de seus criadores. Tratava-se da transição de uma força-tarefa judicial temporária para um ator político perpétuo, financiado por um fluxo de dinheiro paralelo obtido por meio de um arranjo único e juridicamente questionável com um governo estrangeiro. Foi uma tentativa de converter poder judicial transitório em influência política e financeira permanente, um movimento de audácia sem precedentes na história republicana do Brasil.
Ator(es) | Ação Descrita no Relatório | Irregularidade Apontada | Fonte |
Força-Tarefa da Lava Jato (MPF-PR) / Deltan Dallagnol | Cooperou informalmente com o DOJ dos EUA, fornecendo provas contra a Petrobras. | Contornou tratados oficiais de cooperação jurídica (MLATs), atuando fora de seu mandato legal. | |
Departamento de Justiça (DOJ) dos EUA | Multou a Petrobras com base nas informações recebidas e concordou em repatriar 80% do valor. | A legalidade da cooperação informal e a subsequente destinação dos fundos são questionadas. | |
Juiz Sérgio Moro / 13ª Vara Federal de Curitiba | Instaurou processo sigiloso para repassar valores de acordos à Petrobras, tratando a empresa como “vítima”. | Agiu de ofício em matéria cível, sem o devido processo legal, e elegeu a Petrobras como vítima universal, ignorando outras partes lesadas. | |
Força-Tarefa / Petrobras | Firmaram um “Acordo de Assunção de Compromissos” para criar uma fundação privada com os R$ 2,5 bilhões. | O MPF não tem atribuição para criar ou gerir fundações privadas com recursos públicos ou de multas. A Petrobras concordou em desviar para um fundo privado dinheiro que deveria ressarcir a própria empresa ou a União. | |
Juíza Gabriela Hardt | Homologou o acordo que criava a fundação. | Decidiu com base em informações informais (“fora dos autos”), sem a devida cautela e análise, validando um ato extralegal. | |
Supremo Tribunal Federal (STF) / Min. Alexandre de Moraes | Suspendeu o acordo e a criação da fundação. | Ação corretiva que impediu a consumação do desvio, afirmando que o MPF exorbitou de suas funções. | 7 |
III. A Batalha Institucional: O Relatório no Fogo Cruzado do Judiciário
A chegada do relatório ao plenário do Conselho Nacional de Justiça desencadeou uma batalha institucional de proporções raras. O CNJ, órgão de controle externo do Judiciário, transformou-se em uma arena onde duas visões antagônicas sobre a justiça e o legado da Lava Jato colidiram frontalmente. De um lado, o corregedor Luis Felipe Salomão, autor do relatório, defendeu com firmeza os achados da investigação, propondo a abertura de processos disciplinares e o afastamento dos magistrados implicados para garantir a lisura das apurações. Do outro, o presidente do CNJ e do STF, ministro Luís Roberto Barroso, opôs uma resistência igualmente vigorosa, enxergando na correição um movimento de retaliação contra a operação e uma ameaça à independência de juízes que combateram a corrupção. A tensão atingiu o ápice quando Barroso classificou publicamente a decisão de Salomão de afastar os magistrados como “ilegítima e arbitrária”, expondo um racha profundo no topo do Judiciário brasileiro.25
Essa divisão ideológica refletiu-se diretamente nas votações do plenário. A decisão de abrir Processos Administrativos Disciplinares (PADs) contra a juíza Gabriela Hardt, o juiz Danilo Pereira Júnior e os desembargadores do TRF‑4, Carlos Eduardo Thompson Flores e Loraci Flores de Lima, foi aprovada por uma maioria apertada, com placares como 10 a 5. Os votos não seguiram uma lógica puramente técnica, mas espelharam uma falha geológica que percorre o Judiciário brasileiro sobre os limites do ativismo judicial e os métodos da cruzada anticorrupção.
A saga do afastamento e da recondução dos magistrados ilustra a intensidade da pressão política. Salomão determinou o afastamento cautelar para, segundo ele, resguardar a ordem pública e o andamento das investigações. A decisão foi contestada por Barroso e por parte do conselho. Em um primeiro momento, o plenário revogou o afastamento de Hardt e Pereira Júnior, mas manteve o dos desembargadores do TRF‑4. Meses depois, em uma nova reviravolta, o CNJ determinou a reintegração destes últimos, citando como justificativas a conclusão de etapas importantes da instrução processual e, curiosamente, a necessidade de força de trabalho para lidar com a calamidade climática no Rio Grande do Sul, sede do tribunal.30 Essa sequência de idas e vindas demonstra o precário equilíbrio de forças e a politização do debate dentro do conselho.
O que se viu no CNJ foi a transformação de um órgão de controle administrativo em um campo de batalha político pela narrativa histórica. O debate extrapolou as infrações disciplinares específicas para se tornar uma disputa sobre dois projetos para o futuro da magistratura no Brasil: um que busca impor freios ao ativismo judicial e responsabilizar seus excessos, e outro que o defende como uma ferramenta necessária, ainda que heterodoxa, no combate à grande corrupção. O relatório tornou-se um símbolo, e a luta por sua aprovação foi, na essência, uma luta pelo controle da memória da Lava Jato e pela definição das fronteiras institucionais do poder judicial na democracia brasileira.
- O Pântano da PGR: O Silêncio, o Risco e o Futuro da Investigação
Após sobreviver à batalha no CNJ e ser aprovado pelo plenário em junho de 2024, o relatório entrou em sua fase mais perigosa. Conforme determina a lei, por conter indícios de crimes como peculato e corrupção, que extrapolam a esfera administrativa, o documento foi remetido à Procuradoria-Geral da República (PGR), órgão com a atribuição constitucional para investigar e processar criminalmente as autoridades mencionadas. Desde então, o robusto dossiê repousa nas gavetas da PGR, sob a gestão do procurador-geral Paulo Gonet, em um silêncio que, com o passar dos meses, se tornou ensurdecedor.
A inação de Gonet é intrigante. Enquanto a PGR tem se mostrado ativa em outros casos, inclusive recorrendo de decisões do STF que anulam processos da Lava Jato ou beneficiam seus alvos, sua paralisia diante do relatório do CNJ é notória. Organizações da sociedade civil, como a Rede Lawfare Nunca Mais, chegaram a protocolar representações cobrando uma atitude, mas sem sucesso. A questão que se impõe é se este silêncio representa mera inércia burocrática ou uma estratégia deliberada de deixar que o tempo e a complexidade política do caso o condenem ao esquecimento, resultando em uma impunidade por asfixia administrativa.
Essa paralisia alimenta o risco mais letal para toda a investigação: a possibilidade de que a PGR, ao invés de oferecer denúncia perante o STF (foro competente para julgar os implicados), decline de sua atribuição e remeta o caso para a primeira instância, mais especificamente para o Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Tal decisão seria o equivalente a entregar a investigação aos próprios investigados. O TRF‑4 não é apenas a corte de apelação de Curitiba, mas a casa institucional de desembargadores que foram eles mesmos alvos dos processos disciplinares no CNJ por sua atuação na Lava Jato. Um conflito de interesses dessa magnitude representaria o enterro definitivo e formal do caso.
A Procuradoria-Geral da República, concebida para ser a guardiã máxima da lei e a promotora final da ação penal contra crimes federais de alta complexidade, funciona, neste caso, como um potencial “firewall” institucional, um ponto de arquivamento do sistema. Sua inércia serve objetivamente aos interesses das poderosas figuras do Judiciário e do Ministério Público implicadas no relatório. O processo demonstra uma vulnerabilidade crítica no sistema de freios e contrapesos brasileiro: mesmo quando um órgão de controle de alto nível como o CNJ cumpre seu papel, investiga e produz um relatório fundamentado, todo o esforço pode ser curto-circuitado pela inação estratégica do chefe do Ministério Público. O acusador final da República se transforma, na prática, em seu arquivista final.
Conclusão: Para que o Estado de Direito Não Seja uma Ficção
A publicação na íntegra do relatório da Polícia Federal e da Corregedoria do CNJ é um ato de resistência. Resistência contra o esquecimento seletivo, contra a normalização do abuso institucional e contra a narrativa de que os fins nobres da luta contra a corrupção justificam quaisquer meios. Este documento é uma ferramenta para que cidadãos, acadêmicos, jornalistas e juristas possam conduzir sua própria autópsia de um sistema que, em nome do bem, flertou perigosamente com o arbítrio.
A saga da Lava Jato, iluminada pelas sombras que este relatório projeta, é uma lição amarga sobre os perigos da justiça messiânica. Ela demonstra como a bandeira da anticorrupção pode ser, ela mesma, corrompida pelo poder sem controle, pela ambição política e pelo desprezo às garantias fundamentais que sustentam uma democracia constitucional. O mecanismo aqui descrito — a cooperação internacional à margem da lei, a gestão opaca de recursos bilionários, o conluio entre acusadores e julgadores, a tentativa de criar uma estrutura de poder perpétua e privada — não é um artefato histórico. É uma possibilidade latente em qualquer sistema de justiça.
Compreender esses métodos é o primeiro e mais crucial passo para construir os anticorpos institucionais que impeçam sua recorrência. A defesa da Constituição e do Estado de Direito não é um estado passivo de conformidade, mas uma luta ativa e diária. Este livro, ao recusar que um documento desta importância permaneça enterrado nos escaninhos de Brasília, é uma arma vital nessa luta. É um convite para que a memória prevaleça sobre a amnésia, e para que a República não se esqueça de que, quando a lei se curva aos homens, o Estado de Direito se torna pouco mais que uma ficção.”
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[1] Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1998) e Pós-Doutor junto à EHESS de Paris (2009), Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1996). Atualmente é Professor aposentado na Universidade Federal do Paraná, Professor Catedrático em Direito do Trabalho no Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia nas Faculdades Integradas do Brasil, Professor Convidado na Universidad Pablo de Olavide e Professor Catedrático Titular do Centro Universitário Vale Iguaçu. Advogado de sindicatos de trabalhadores há 30 anos, no Paraná e em Santa Catarina, tendo integrado o coletivo jurídico da CUT Nacional desde a sua fundação. Autor de livros e artigos dedicados aos direitos sociais, sindicalismo e direito do trabalho. Coordena o Grupo de Pesquisa Trabalho e Regulação no Estado Constitucional. Presidente do Conselho Curador do Museu da lava Jato.