No impor­tante arti­go a seguir, o Procu­rador de Justiça Jaques de Camar­go Pen­tea­do descreve a pan­demia e o con­torno da respos­ta e da respon­s­abil­i­dade da sociedade, em seus âmbitos moral, reli­gioso e jurídi­co, especi­fi­ca­mente referindo a neces­si­dade de providên­cias céleres do Esta­do para o cuida­do da pop­u­lação carcerária.

Cora­josa­mente, afir­ma ser “dev­er de todos pre­venir as doenças e tratar dos enfer­mos,”  com­petindo ao Esta­do realizar “a urgente con­fecção de plano inter­dis­ci­pli­nar para a pre­venção da pan­demia nos cárceres. Ime­di­ata­mente trans­ferir para um regime de prisão domi­cil­iar todos aque­les que, em situ­ação de risco pes­soal, preencherem os req­ui­si­tos legais para a trans­fer­ên­cia human­itária ao regime de custó­dia mais seguro para eles. Aos que não preencherem ess­es req­ui­si­tos e per­manecerem nas prisões, quan­do enfer­mos dev­erão rece­ber assistên­cia médi­ca inte­gral no cárcere ou no hos­pi­tal apro­pri­a­do.

Extrema­mente atu­al, o tex­to merece leitu­ra aten­ta e pon­der­ação.

 

Pan­demia — Pan­demônio – Pan­de­paz

Jaques de Camar­go Pen­tea­do(*)

 

Microscópi­co; quase invisív­el. Agres­si­vo, rápi­do, atre­v­i­do. Cru­el. Ata­ca sem piedade, estende-se por toda a Ter­ra com dinamis­mo cres­cente. Der­ru­ba cri­anças, jovens, adul­tos e idosos. Nocauteia médi­cos e enfer­meiros. Quan­do parece que pas­sou por uma região, todos se preparam para um novo e ful­mi­nante ataque. Trans­mu­da-se. Humil­ha.

Desnu­da os poderosos e faz bailar aos nos­sos olhos sur­pre­sos as ignorân­cias leg­isla­ti­vas, judi­ciárias e exec­u­ti­vas. Uns sem pro­postas, out­ros sem com­petên­cia e os últi­mos sem ciên­cia e sem decên­cia. Uma pan­demia.

Reinam a agi­tação, a bal­búr­dia e a des­or­dem. Um pan­demônio. Há pouco, está­va­mos lado a lado e, em vez de con­ver­sar­mos entre nós, nos encap­sulá­va­mos em nos­sos celu­lares e, ago­ra, pos­tos em dis­tan­ci­a­men­to social, quer­e­mos ficar jun­tos. Impera o medo, o des­en­can­to, o risco de depressão cole­ti­va, um pavor pelo que pen­sá­va­mos que fos­se uma civ­i­liza­ção. Há mui­ta tec­nolo­gia e quase nen­hu­ma humanidade.

Alguém está falan­do com todos nós ao mes­mo tem­po. Refle­ti­mos. Con­sciente ou incon­scien­te­mente quer­e­mos mel­ho­rar o que está bem e cor­ri­gir o fal­ho. Percebe­mos que não podemos con­tar com líderes estran­hos a nós mes­mos e que a solução pode estar em cada um nós, indi­vid­ual­mente e no con­jun­to. Reestru­tu­rar-se e recon­stru­ir o nos­so tem­po. Ago­ra. Fra­ter­nal­mente. Faz­er as pazes. Conosco e com os próx­i­mos. Uma pan­de­paz.

Preser­var a dig­nidade humana, prover as neces­si­dades da pes­soa e esta­b­ele­cer uma ordem jurídi­ca jus­ta, estáv­el e segu­ra.[1] Saber que Moral, Religião e Dire­ito são real­i­dades dis­tin­tas, mas não sep­a­radas. Impor­tam a sol­i­dariedade, a cari­dade e o bem comum.

A pan­demia é sistêmi­ca e a reação deve ser sistêmi­ca. O ser moral ombreia-se com os que estão ao seu lado. Ama-se a Deus sobre todas as coisas e ao próx­i­mo como a si mes­mo. O dire­ito tem por cen­tro e sujeito a pes­soa humana, sabe‑a por­ta­do­ra de um val­or tran­scen­dente, car­ente da pro­visão de bens e cuida­dos necessários à sua for­mação e con­ser­vação. De paz. Da tran­quil­i­dade da ordem das coisas. Espe­cial­mente em face dos vul­neráveis.

Vul­neráveis que, na pan­demia, com o pan­demônio, não sobre­viverão se ficarem sós. Pre­cisam de nós. Ape­sar de nós mes­mos, em uma tare­fa comum. Cabe­mos todos, menos os pre­con­ceitos. Temos deveres por viv­er nesse tem­po e nes­sa ter­ra. Deveres para com os nos­sos próx­i­mos e, estes, são os que estão jun­tos de nós, em nos­so sis­tema social. Sis­tema social com muitos sub­sis­temas e, den­tre eles, um dos mais vul­neráveis, o pen­i­ten­ciário.

Mil­hares e mil­hares, amon­toa­d­os, sub­ju­ga­dos, sem assistên­cia moral, reli­giosa e jurídi­ca. Trit­u­ra­dos por máquinas de pio­rar pes­soas. Mais cedo ou mais tarde a serem despe­ja­dos na comu­nidade que, invari­avel­mente, os rejeitará. Lá, no cárcere, esperan­do a pan­demia. No cír­cu­lo vicioso que não cos­tu­mamos olhar ou desprezamos. Prestes a explodir. Eles não podem vir até nós. Temos que ir até eles. Esta­mos todos jun­tos.

A ordem moral impõe a sol­i­dariedade; a reli­giosa que vis­ite­mos os encar­cer­a­dos, de algu­ma for­ma, com mis­er­icór­dia e, a jurídi­ca, que man­ten­hamos a reprovação de con­du­tas even­tual­mente con­trárias ao Dire­ito, mas con­serve­mos o respeito pela pes­soa humana, com a sua dig­nidade e tit­u­lar­i­dade de todos os demais dire­itos, sal­vo a liber­dade de loco­moção. De todos os seres humanos, soltos ou não. Aman­do as pes­soas e dete­s­tando os males. Sair do pan­demônio para a pan­de­paz.

É dev­er de todos pre­venir as doenças e tratar dos enfer­mos. Ao Esta­do com­pete a urgente con­fecção de plano inter­dis­ci­pli­nar para a pre­venção da pan­demia nos cárceres. Ime­di­ata­mente trans­ferir para um regime de prisão domi­cil­iar todos aque­les que, em situ­ação de risco pes­soal, preencherem os req­ui­si­tos legais para a trans­fer­ên­cia human­itária ao regime de custó­dia mais seguro para eles. Aos que não preencherem ess­es req­ui­si­tos e per­manecerem nas prisões, quan­do enfer­mos dev­erão rece­ber assistên­cia médi­ca inte­gral no cárcere ou no hos­pi­tal apro­pri­a­do.

A recon­strução de nos­sa civ­i­liza­ção, segun­do a Moral, a Religião e o Dire­ito, recomen­da esse con­jun­to mín­i­mo de providên­cias para que sejamos humanos e jus­tos.

 

(*) Advo­ga­do e Con­sul­tor – OAB/SP,  Mestre e Doutor em Dire­ito – USP, e Procu­rador de Justiça aposen­ta­do — MPSP

 

[1] Jaques de Camar­go Pen­tea­do, A Dig­nidade Humana e a Justiça Penal. In: Jorge Miran­da e Mar­co Anto­nio Mar­ques da Sil­va (Orgs.). Trata­do Luso-Brasileiro da Dig­nidade Humana, 2ª ed., São Paulo, Quarti­er Latin do Brasil, 2009, v. I, p. 885–913.