No artigo a seguir, Luiz Eduardo Outeiro Hernandes, Procurador da República, Pesquisador do CIDHSP, da Academia Paulista de Direito, e Mestre pela Universidade Católica de Brasília, analisa a importante questão da colisão entre direitos fundamentais, em tempo de pandemia.
Ao referir decisão recente e importante do Tribunal Constitucional Federal Alemão, que reconheceu a validade e a eficácia de decisão do Tribunal Administrativo de Hesse, no que concerne à necessidade de avaliar as consequências sociais da jurisprudência.
No caso examinado no artigo — extremamente importante para os debates atuais, no direito brasileiro — o Tribunal considerou que “se a proibição de reuniões nas igrejas fosse temporariamente suspensa conforme solicitado, um grande número de pessoas provavelmente se reuniria nas igrejas, especialmente durante as férias da Páscoa”, o que levaria a um aumento significativo de risco de contágio de “muitas pessoas, acarretando a sobrecarga da unidade de saúde no tratamento de casos graves e, na pior das hipóteses, a morte de pessoas.”
Leia a íntegra do artigo a seguir.
Colisões de direitos fundamentais e o combate à epidemia do novo COVID ‑19
Luiz Eduardo Camargo Outeiro Hernandes[1].
O COVID ‑19 traz à tona debates sobre colisões de direitos fundamentais e os casos estão surgindo perante o Poder Judiciário. Os direitos à liberdade de manifestação de pensamento e de livre circulação são postos em sopesamento nos casos das carreatas marcadas em todo o Brasil para a reabertura do comércio. Por outro lado, os direitos à liberdade de reunião e à liberdade religiosa são confrontados com o direito à saúde pública.
Essas colisões de direitos fundamentais no contexto da epidemia do novo COVID ‑19 já foram objetos de apreciações por juízes e tribunais. As decisões foram proferidas em caráter de tutelas de urgência e as prevalências dos argumentos nas decisões pendem ora para as prevalências dos direitos fundamentais que colidem com o direito à saúde pública, ora para a atribuição de maior peso a este último, o que tem gerado contradição entre as decisões e incoerência sistêmica.
É nesse contexto que surge a importância de analisar os argumentos das decisões para a melhor compreensão da questão, com o objetivo de possibilitar uma maior coerência argumentativa das decisões judiciais. A análise comparada da decisão de tribunal estrangeiro pode auxiliar no entendimento dos problemas constitucionais submetidos à apreciação jurisdicional e contribuir com a melhora na coerência dos argumentos das decisões. Dentre as decisões preferidas sobre o tema, escolheu-se as que analisaram os direitos à liberdade de manifestação de pensamento e de livre circulação, em como os direitos à liberdade de reunião e à liberdade religiosa, todos em colisões com o direito à saúde pública.
Em decisão de 28 de março de 2020, a Justiça Estadual de São Paulo decidiu medida de urgência, acerca do conflito entre o direito à liberdade de manifestação de pensamento e o direito à livre circulação, no caso da carreata marcada para a reabertura do comércio local. Segundo a decisão, “O direito à livre manifestação de pensamento não pode suplantar e nem colocar em risco demais direitos constitucionais. Por não ter caráter absoluto, há de ser exercido dentro dos limites legais e em consonância com os demais direitos e garantias fundamentais. A carreata em questão, embora em princípio não importe em contato pessoal entre os participantes, implicará em mobilização e movimentação humana altamente inviável e indesejável neste momento. É de se ponderar que a própria articulação dos serviços de policiamento ostensivo e de fiscalização de trânsito a fim de viabilizar o pretendido ato, já enseja contatos pessoais entre servidores públicos, aumentando o risco de contágio dada a alta escalabilidade viral do COVID ‑19”.
Constata-se na decisão que o argumento prevalente é no sentido de que o direito à liberdade de manifestação de pensamento não pode suplantar e nem colocar em risco demais direitos constitucionais. Trata-se de dar maior peso ao direito à saúde pública, que não pode ser restringido, limitado ou suprimido, quando em confronto com outro direito fundamental, por mais essencial que este também seja, sob pena de ferir de modo irremediável o núcleo essencial do direito em colisão.
Por sua vez, em decisão de 31 de março de 2020, o Tribunal Regional da 2ª Região decidiu pedido de suspensão de liminar, apresentado pela União, em face da decisão proferida pelo Juízo da 1ª Vara Federal de Duque de Caxias, que deferiu o pedido liminarmente formulado pelo Ministério Público Federal nos autos da ação civil pública nº 5002814–73.2020.4.02.5118.
Dentre outros pedidos, o Ministério Público Federal pretendia o reconhecimento da preponderância do direito à saúde pública sobre os direitos às liberdades religiosas e de cultos. Alegava que o Decreto nº10.292, de 25 de março de 2020, o qual incluiu os incisos XXXIX e XL ao artigo 3º, do Decreto 10.282, de 20 de março de 2020, definindo como serviços públicos e/ou atividade essenciais aquelas prestadas por entidades religiosas e as exercidas por unidades lotérica, exorbitou os limites de seu poder regulamentar.
Esses dispositivos normativos ponderaram em abstrato pelas prevalências dos direitos às liberdades religiosas e de cultos sobre a saúde pública, na medida em que teria estimulado a abertura de igrejas e a circulação de pessoas, deixando de observar as recomendações de isolamento social promovidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
A questão após ter recebido decisão em favor do direito à saúde em primeira instância, foi posta sob apreciação no âmbito do Tribunal Regional da 2ª Região. Na decisão, entendeu o órgão jurisdicional que não se tratava de “(…) controle jurisdicional da legalidade de atos normativos”, “(…) mas sim de intromissão indesejável do Poder Judiciário na atuação dos demais Poderes”. Com base neste argumento, a decisão do juízo de primeiro grau foi suspensa integralmente.
Ainda que se pudesse argumentar em parte em favor da decisão proferida na suspensão de liminar pelo Tribunal Regional da 2ª Região, o fato é que, quanto aos direitos às liberdades religiosas e de cultos, prevaleceu a preponderância em abstrato realizada pelo ato normativo impugnado em detrimento da saúde pública, sem amparo em dados científicos sobre a questão, ainda que se tenha consignado na decisão que “(…) os dispositivos suspensos pela decisão liminar se revestem de evidente caráter de cautela, o que se pode extrair da clara previsão de que as atividades religiosas de qualquer natureza só poderão ser efetivadas “obedecidas as determinações do Ministério da Saúde””.
Sobre o tema, é oportuno mencionar a decisão proferida em 10 de abril de 2020 por órgão jurisdicional do Tribunal Constitucional Federal Alemão (1 BvQ 28/20[2]). O Tribunal Constitucional Alemão indeferiu o pedido de medida provisória por meio do qual o requerente solicitava a emissão de uma ordem provisória para suspender até decisão final a decisão do Tribunal Administrativo de Hesse de 7 de abril de 2020 — 8 B 892 / 20.N — e o regulamento da Seção 1 (5) da Quarta Portaria de Combate à Corona Vírus do governo do estado de Hesse, que proíbe reuniões em igrejas, mesquitas, sinagogas e encontros de outras comunidades religiosas.
Na decisão impugnada, o Tribunal Administrativo de Hesse se baseou na avaliação de risco do Instituto Robert Koch, segundo a qual, nesta fase inicial da pandemia, é importante retardar a propagação da doença viral altamente infecciosa, impedindo contatos na medida do possível e a fim de não colapsar o sistema de saúde estadual com inúmeras mortes.
O requerente argumentou que o regulamento torna impossível para ele participar de uma cerimônia religiosa. Isso se aplicava tanto à participação semanal da Santa Missa (celebração da Eucaristia) quanto, em particular, aos cultos nas férias da Páscoa. O requerente considerou desproporcional a renúncia completa do direito fundamental à liberdade de crença em contraste com os direitos fundamentais à vida ou à integridade física.
Segundo o Tribunal, o pedido de ordem provisória deveria ser decidido com base na consideração das consequências (ver BVerfGE 91, 70 <74 f.>; 92, 126 <129 f.>; 93, 181 <186 f.>; 94, 334 <347> ; stRspr). Os motivos de uma decisão provisório devem ser tão sérios que tornam irredutível a emissão de uma ordem provisória. Ao considerar as consequências, os efeitos sobre todos os afetados pelos regulamentos controvertidos devem ser levados em conta, e não apenas as consequências para o requerente (cf. para leis formais BVerfGE 122, 342 <362>; 131, 47 <61>).
O Tribunal ponderou que, se a proibição de reuniões nas igrejas fosse temporariamente suspensa conforme solicitado, um grande número de pessoas provavelmente se reuniria nas igrejas, especialmente durante as férias da Páscoa. Para fundamentar a decisão, foi utilizada a avaliação de risco relevante do Instituto Robert Koch de 26 de março de 2020. Segundo a avaliação, haveria um aumento significativamente no risco de contrair o vírus, o contágio de muitas pessoas, acarretando a sobrecarga da unidade de saúde no tratamento de casos graves e, na pior das hipóteses, a morte de pessoas, embora isso pudesse ter sido evitado de maneira constitucionalmente admissível se uma reclamação constitucional tivesse êxito em proibir os cultos.
Para o órgão jurisdicional do Tribunal Constitucional Federal Alemão, atualmente, em um exame de proporcionalidade, a proteção contra esses perigos à vida e aos membros devem prevalecer sobre os direitos às liberdades religiosas e de cultos, apesar da interferência extremamente séria na liberdade de crença.
O Tribunal Constitucional Federal Alemão argumentou que a invasão extremamente séria à liberdade de crença para a proteção da saúde e da vida é atualmente justificável porque a regulamentação de 17 de março de 2020 e, portanto, a proibição de reuniões nas igrejas, é limitada até 19 de abril de 2020. Isso garante que o regulamento seja atualizado, levando em consideração novos desenvolvimentos na pandemia. A cada atualização da regulamentação, um exame rigoroso da proporcionalidade deve ser realizado com vistas à invasão extremamente séria à liberdade de culto associada a uma proibição de culto e deve ser examinado se, em vista de novos conhecimentos, por exemplo, sobre as formas de disseminação do vírus ou o risco de sobrecarregar o sistema de saúde, será possível relaxar a proibição de cultos nas igrejas sob condições possivelmente estritas e provavelmente também limitadas regionalmente. Por fim, o mesmo se aplica a outras comunidades religiosas, que são afetadas pela proibição administrativa.
Como se pode perceber, o órgão jurisdicional do Tribunal Constitucional Federal Alemão considerou os riscos inerentes à decisão com base em dados científicos e argumentou que “a invasão extremamente séria à liberdade de crença para a proteção da saúde e da vida” era justificável em razão da limitação temporal da medida e frente a necessidade de uma contínua reapreciação da proporcionalidade da proibição com base em novos dados e conhecimentos sobre a epidemia, que permitissem uma atualização das normas regulamentares.
Para tanto, condições ainda deveriam ser apreciadas como os riscos ligados às formas de disseminação do vírus ou o risco de sobrecarregar o sistema de saúde, que determinariam um relaxamento da proibição de forma gradual no espaço e no tempo. Com essas considerações, é possível constatar que tanto às limitações ao direito fundamental de crença e ao direito fundamental de culto quanto às supressões destas estão submetidas às condições objetivas e aos exames de suas proporcionalidades.
A decisão do órgão jurisdicional do Tribunal Constitucional Federal Alemão no caso 1 BvQ 28/20, pode auxiliar os juízes e tribunais brasileiros a realizarem o sopesamento no caso de colisões de direitos fundamentais no contexto da epidemia do novo COVID ‑19 e contribuir para uma maior coerência argumentativa. Por conseguinte, evitasse uma multiplicação de decisões judiciais contraditórias e com base em argumentos sem o devido respaldo em dados científicos necessários para ao exercício do sopesamento das questões constitucionais tão relevantes postas sob apreciação.
[1]Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília – UCB. Pesquisador do Centro Internacional de Direitos Humanos de São Paulo, vinculado à Cadeira San Tiago Dantas, da Academia Paulista de Direito (CIDHSP/APD). Procurador da República. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6913781486162587
[2]https://www.bundesverfassungsgericht.de/SharedDocs/Pressemitteilungen/DE/2020/bvg20-024.html