Em importante artigo, Leonardo Godoy Drigo examina as implicações jurídicas do mais recente ato de um governo que se compraz em contrariar a Constituição brasileira.
Leia o texto na íntegra, a seguir.
Corte de Orçamento para a Ciência é juridicamente válido? Pode ser revertido? Leonardo Godoy Drigo[1]
“Aos anúncios do regime/ Seguem como sombras/ Os rumores./ Os governantes urram/ O povo murmura.” Bertold Brecht, 1936
Foi amplamente divulgada na imprensa de grande circulação a notícia de que o Governo Federal propôs alteração de orçamento destinado à ciência e tecnologia, para 2022, com diminuição de 87% sobre o valor global inicialmente previsto[2], gerando forte dissidência de cientistas e pesquisadores e manifestação negativa do próprio Ministro de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovações[3]. Em termos políticos, é um desastre. Em termos de regular desenvolvimento de atividades e programas científicos, um obstáculo praticamente intransponível. Em termos sociais, uma declaração de morte para mais centenas ou, quiçá, milhares de brasileiras e brasileiros que, em meio a uma pandemia, terão ainda menos recursos de tecnologia e de ciências para auxílio no controle e tratamento da moléstia.
E em termos jurídicos?
- O CORTE (ESVAZIAMENTO) NO ORÇAMENTO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO É JURIDICAMENTE VÁLIDO?
Pois bem. Juridicamente, ciência, tecnologia e inovação constituem objetos de normas constitucionais que disciplinam a ordem social no Estado. Trata-se do quanto preveem os artigos 218 a 219‑B, da Constituição Federal, segundo os quais, dentre outras determinações, encontra-se que o “Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação” (art. 218, “caput”), que tal espécie de pesquisas “receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público” (art. 218, § 1º), já que a função preponderante dessas atividades é a “solução dos problemas brasileiros” (art. 218, § 2º). Ainda, tamanha a relevância do tema que cabe ao Estado incentivar o próprio mercado interno nacional, para que, por meio de atividades de tecnologia e inovação, sejam implementados “o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País” (art. 219, “caput”).
Ora, não há normas constitucionais meramente figurativas, destituídas de eficácia. Não quando se está, como hoje se pretende, diante de um Estado Democrático de Direito, no qual todo o poder emana do povo e encontra-se plasmado em determinações constitucionais. Nesse caso, pois, entende-se que a Constituição estabelece direitos invioláveis, atribuídos “como ‘patrimônio inviolável’ de seus titulares”[4] e, sob tal condição, devem ser sempre efetivados em sua máxima medida possível. Além disso, trata-se de sólida e tradicional lição da doutrina jurídica brasileira a compreensão de que o Administrador Público, jungido ao ordenamento jurídico-constitucional, seus valores e suas finalidades normativamente estipulados, somente possui poderes na estrita medida e para o estrito cumprimento de seus deveres jurídicos e em favor da realização do interesse público[5].
Logo, uma lei que, partindo da Administração Pública Federal e que prevê corte orçamentário de 87% para o campo da ciência, tecnologia e inovação, já simplesmente (a) porque representa risco de paralisação de atividades científicas regulares e desaceleração ou, igualmente, paralisação do desenvolvimento do país, (b) porque representa risco à promoção do bem-estar da população, do desenvolvimento socioeconômico e da solução dos problemas brasileiros, é inconstitucional. Não tem validade alguma.
Mas, ainda que assim não fosse, se não houvesse os argumentos de técnica jurídica, bastaria uma análise funcional de filosofia ou de ciências política e social para se concluir que, considerado o direito como instrumento humano de regulação social e, dessa forma, não apenas originado na sociedade, nas relações sociais que lhe conformam, mas também voltado para a alteração e normatização de conflitos e problemas sociais em geral, não se poderia ter como juridicamente válida uma lei que estipulasse, em plena pandemia de um vírus altamente contagioso e altamente letal, o corte de verbas para ciência e tecnologia em um país já afetado de maneira tão lamentável e com mais de 600.000 mortos, como o Brasil.
Em outras palavras, o Direito, que vem da sociabilidade humana e volta à sociabilidade humana suas respostas normativas, não pode, justamente, ser criado de costas para os problemas atuais que a sociedade enfrenta. Não pode o Direito esvaziar a proteção aos direitos humanos mais comezinhos, tais como dignidade, saúde, igualdade, todos efetivados mediante o desenvolvimento atual das técnicas científica e tecnológica, em um momento no qual a sociedade clama por respostas a uma crise pandêmica letal e de proporções calamitosas.
O espanto que pode gerar a propositura de tal medida legislativa, em tudo e por tudo inconstitucional, então, surge justamente da consideração de que “o direito opera onde fala e onde não fala. (…) O direito se esparrama sobre tudo, até mesmo quando é negado e omitido”[6]. Quer isso dizer que a retirada deliberada de praticamente todo o orçamento para ciência, tecnologia e inovação no país serve a um propósito bastante claro, que é destinar verbas públicas a outros fins que não a saúde ou o bem-estar da população, como determinado expressamente na Constituição Federal. É destinar dinheiro para que os interesses que ainda mantém o atual governo no poder sejam atendidos, principalmente capital financeiro internacional e, no mercado interno, capitais bancários, do agronegócio e de exportação de bens primários. Aliás, sob tal perspectiva, é inegável que o capitalismo estrutura e é estruturado pelo direito e a imensa maioria do povo sente os efeitos deletérios de tal conformação da sociabilidade atual em seu cotidiano cada vez mais miserável.
E, se assim o é, o que se pode fazer? Pode-se reverter a determinação de uma lei de orçamento? Como? Quem pode?
- O corte (esvaziamento) no orçamento da ciência, tecnologia e inovação, é juridicamente reversível?
Em primeiro lugar, é inegável que o processo legislativo tem como protagonista central, na ordem constitucional brasileira, os parlamentares. Assim, desde pronto, caberia aos congressistas, deputados federais e senadores, (a) apontarem ao Poder Executivo o descalabro da medida proposta e sua inadequação jurídica tanto às normas constitucionais quanto à realidade brasileira atual e, por fim, (b) não aprovarem a medida sugerida.
Não se olvide que, quando se pensa em democracia, geralmente o que se tem em mente, num primeiro momento, é a atuação dos representantes do povo, ou seja, justamente aqueles que foram eleitos para cargos políticos no Poder Legislativo. Logo, caberia a esses representantes do povo fazer valer os direitos do povo, inclusive mediante a demonstração de que o corte ou esvaziamento orçamentário proposto, na medida em que descumpre de maneira patente a Constituição e num momento de pandemia global, pode configurar, inclusive, crime de responsabilidade do Presidente da República, nos termos em que preconiza a Constituição Federal, em seu art. 85, “caput” (atentar contra a própria Constituição) e inciso III (atentar contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais).
Em segundo lugar, contudo, e muito mais importante, figura-se entender a possibilidade que a soberania popular abre ao exercício direto do poder político ao próprio povo. Com efeito, o art. 1ª, parágrafo único, da Constituição Federal, apresenta o fundamento e o titular exclusivo de todo o poder político no Brasil, com a seguinte dicção, clássica já desde sua formulação parcial inicial, por Rousseau: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
Indicar “os termos da Constituição”, antes de restringir a soberania popular, implica, antes, a possibilidade de intervenção popular em todo e qualquer aspecto do exercício do poder político no qual a Constituição não vedou expressamente tal intervenção. Implica, especialmente, a possibilidade real e efetiva de que o próprio povo, no Brasil, tome as rédeas das medidas necessárias para a efetivação de seus direitos fundamentais onde e como for que os mesmos se encontrem negados ou efetivados em menor medida do que deveriam.
E não se trata aqui, como pode parecer, da simples defesa de maiores mobilizações populares nas ruas em prol da pressão política sobre os representantes. Não apenas. Trata-se de evidenciar interpretações jurídicas relativas à soberania popular que permitem, efetivando as normas constitucionais, acesso direito do povo aos meios e procedimentos institucionais de exercício do poder político.
Assim, não é porque o art. 14, da Constituição Federal, por exemplo, determinou que a soberania popular será exercida mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular que somente tais instrumentos estejam disponíveis ou que somente estejam disponíveis nas formas em que a própria Constituição houve por bem prever expressamente alguns casos para sua utilização. Não! A interpretação da soberania popular que é mais consentânea com o conteúdo atual do Estado Democrático de Direito é aquela que não restringe o soberano, aquela que permite ao soberano popular aquilo que ele próprio não se vetou em 05 de outubro de 1988.
Logo, perfeitamente se poderia manejar um projeto de iniciativa popular de revogação da proposta de corte orçamentário, por exemplo. Não há vedação constitucional alguma e, inclusive, o art. 61, § 2º, da Constituição Federal, que versa sobre um modelo possível de iniciativa popular no âmbito da União, não determina o conteúdo do projeto a ser apresentado. Esse projeto teria tramitação perante o Congresso Nacional e, com a pressão popular a seu favor, obrigaria a realização, pelo menos, de debates públicos e sérios sobre o tema, envolvendo toda a sociedade na decisão política.
Poder-se-ia também, por outro lado, provocar o Congresso Nacional, mediante exercício de simples direito de petição (art. 5º, XXXIV, “a”, Constituição Federal), para que convoque plebiscito sobre o corte orçamentário, ou seja, para que haja consulta ao povo sobre a legitimidade, ou não, do esvaziamento orçamentário proposto pelo Governo Federal, no exercício da competência prevista no art. 49, XV, da Constituição Federal.
Lembre-se, por oportuno, que o direito de petição pode ser exercido, nos termos constitucionais, para defesa de direitos ou contra abuso de poder e que seu conteúdo implica também direito de apreciação e de decisão fundamentada[7]. Ou seja, exercido referido direito de petição pelo povo perante o Congresso Nacional, somente se poderia indeferir o pleito mediante decisão expressa e fundamentada, passível, pois, de controle judicial posterior.
O que importa não são os exemplos concretos, mas a ideia premente de que a hermenêutica jurídica deve prestigiar a possibilidade de participação do povo soberano diretamente no exercício do poder político e que o povo pode, sim, reverter medidas governamentais quaisquer que prejudiquem seu bem-estar, sua saúde, seu desenvolvimento livre e sua dignidade. Com Paulo Bonavides, enfim, afirmamos
“Mas se Povo e Sociedade reagirem, a noite terá fim. A Nação amanhecerá. E com liberdade, democracia e Estado social, concretizando, assim, valores que foram o sonho das gerações passadas, mas que a truculência dos golpes de Estado e o pesadelo das ditaduras dissiparam, sobretudo o pesadelo das ‘ditaduras constitucionais’, as mais difíceis de combater e expulsar do poder.”[8]
- Conclusão
O esvaziamento orçamentário da área de ciência, tecnologia e inovação é medida inconstitucional, criminosa (no mínimo, infração político-administrativa ou crime de responsabilidade), e que pode agravar a situação pandêmica atual e tornar ainda mais miserável e insalubre a já triste realidade brasileira.
A reversão de tal medida deve ser esperada dos representantes do povo, deputados federais e senadores, simplesmente porque representantes do povo, mas se deve afirmar, sempre, que o único soberano no Brasil, o único titular absoluto do poder político é o próprio povo. E, nessa esteira de raciocínio, devem ser disponibilizados ao soberano instrumentos jurídicos aptos a ensejarem a reversão política da medida de esvaziamento orçamentário e controlar efetiva e diretamente o exercício do poder político.
Basta encarar de frente o dever de realizar a soberania popular no Brasil.
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Notas
[1] Mestre em direito constitucional pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela PUC/SP. Bacharel em Filosofia pela PUC/SP. Assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Autor da obra “O povo no poder”, pela Paco Editorial.
[2] Conferir, por exemplo: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/10/4954322-governo-bolsonaro-corta-87-da-verba-para-ciencia-e-tecnologia.html. Acesso em 18/10/2021.
[3] Conferir: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/10/10/interna_politica,1312737/pontes-sobe-o-tom-e-diz-que-corte-na-ciencia-e-falta-de-consideracao.shtml. Acesso em 18/10/2021.
[4] ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. Traducción de Marina Gascón. Madrid: Trotta, 1995, p. 51. (traduzimos).
[5] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.68.
[6] MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao estudo do direito. 6ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2019, p. 09.
[7] Nesse sentido, confira-se PIEROTH, Bodo. SHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. Tradução de António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 478/480.
[8] Teoria constitucional da democracia participativa. Por um direito constitucional de lute e resistência. Por uma nova hermenêutica. Por uma repolitização da legitimidade. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 187.
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Referências Bibliográficas
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. Por um direito constitucional de lute e resistência. Por uma nova hermenêutica. Por uma repolitização da legitimidade. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2008.
MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao estudo do direito. 6ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2019.
PIEROTH, Bodo. SHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. Tradução de António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2012.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. Traducción de Marina Gascón. Madrid: Trotta, 1995.