No pre­sente arti­go, o espe­cial­ista em dire­ito admin­is­tra­ti­vo e sanea­men­to Wladimir Anto­nio Ribeiro expli­ca a neces­si­dade de reg­u­la­men­tação ade­qua­da do novo mar­co do sanea­men­to e de um debate efe­ti­va­mente téc­ni­co, que supere pre­con­ceitos.

Leia a seguir.

MAIS UMA VEZ OS DECRETOS DO SANEAMENTO

Wladimir Anto­nio Ribeiro*

“No dia 12 de jul­ho de 2023, foram edi­ta­dos os decre­tos n.ºs11.598 e 11.599, que revog­a­ram os decre­tos n.ºs 11.466 e 11.467, pub­li­ca­dos em abril de 2023. A final­i­dade é reg­u­la­men­tar a leg­is­lação em razão de temas urgentes, incor­po­ra­dos ao Mar­co do Sanea­men­to pela Lei nº 14.026, de 15 de jul­ho de 2020. Dois aspec­tos pre­cisam ser ressalta­dos.

O primeiro é que o proces­so de reg­u­la­men­tação não acabou.

O Mar­co do Sanea­men­to Bási­co (Lei nº 11.445, de 2007), como ensi­na a mel­hor téc­ni­ca, foi reg­u­la­men­ta­do por ape­nas um decre­to: o Decre­to nº 7.217, de 2010 – sendo que o proces­so de reg­u­la­men­tação con­sum­iu quarenta meses de debates e nego­ci­ações, geran­do tex­to con­sen­su­al e de ele­va­da qual­i­dade téc­ni­ca.

Con­tu­do, em razão das mudanças pro­movi­das pela Lei nº 14.026/2020, o Decre­to nº 7.217/2010 está defasa­do e pre­cisa ser sub­sti­tuí­do – pelo que novo decre­to deve ser elab­o­ra­do ao lon­go deste e do próx­i­mo ano, com prováv­el pub­li­cação em 2025. Porém, havia questões que não pode­ri­am aguardar, por isso a  edição dos decre­tos men­ciona­dos no iní­cio.

De out­ro lado, por meio de debates e estu­dos, a Agên­cia Nacional de Águas e Sanea­men­to Bási­co – ANA está amadure­cen­do onze nor­mas de refer­ên­cia, que vão dis­ci­pli­nar aspec­tos fun­da­men­tais do sanea­men­to bási­co. Logo, os próx­i­mos anos serão de muito debate e, ain­da, os decre­tos de 12 de jul­ho não encer­ram, ape­nas fazem parte de proces­so ain­da no iní­cio.

 Segun­do aspec­to é que os decre­tos pub­li­ca­dos pouco mod­i­ficaram os ante­ri­ores. O Decre­to nº 11.598/2023 prati­ca­mente repro­duz o Decre­to nº 11.466/2023, e o Decre­to 11.599/2023 faz o mes­mo em relação ao Decre­to 11.467/2023. Este tex­to anal­isa essas peque­nas, mas rel­e­vantes, mudanças, que podem ser resum­i­das em qua­tro temas: (i) com­pro­vação da capaci­dade econômi­co-finan­ceira; (ii) con­tratos pro­visórios; (iii) prestação dire­ta region­al­iza­da; e (iv) exer­cí­cio iso­la­do da tit­u­lar­i­dade por Municí­pio que inte­gra estru­tu­ra de prestação region­al­iza­da.

No que se ref­ere à com­pro­vação da capaci­dade econômi­co-finan­ceira do presta­dor em cumprir com as metas de uni­ver­sal­iza­ção, foi man­ti­da a reaber­tu­ra do pra­zo, cujo obje­ti­vo é reparar o pre­juí­zo cau­sa­do pelo atra­so na pub­li­cação do Decre­to nº 10.710, que ocor­reu em 31 de maio de 2021, mais de oito meses depois da data-lim­ite fix­a­da em lei.

A com­pro­vação, como no decre­to de abril, con­tin­ua abrangen­do toda a área de prestação dos serviços, não ape­nas a dis­ci­plina­da por con­tra­to – será avali­a­da, assim, a efe­ti­va real­i­dade econômi­co-finan­ceira do presta­dor, que não pode ser reduzi­da a ape­nas uma amostra, práti­ca que falsea­va os resul­ta­dos.

Nesse tema, o essen­cial do decre­to de abril foi man­ti­do, e as mudanças se resumem a duas: (i) o requer­i­men­to a ser apre­sen­ta­do pelo presta­dor até o dia 31 de dezem­bro de 2023 pode pre­v­er out­ros instru­men­tos, não ape­nas con­tratos (art. 10, caput, II, do Decre­to nº 11.498/2023) e, ain­da, (ii) que a com­pro­vação não é um req­ui­si­to, mas, — como pre­vê a lei –, condição para a eficá­cia dos instru­men­tos de del­e­gação da prestação dos serviços ou de seus adi­ta­men­tos.

Em resumo: os con­tratos e out­ros instru­men­tos são váli­dos, e adi­ta­men­tos podem se cel­e­bra­dos a qual­quer momen­to, porém, em alguns casos, os efeitos depen­dem de o presta­dor obter a com­pro­vação da capaci­dade econômi­co-finan­ceira de cumprir com metas.

Já os temas dos con­tratos pro­visórios (pre­vis­tos pelo art. 11‑B, § 8º, da Lei 11.445/2007), e da prestação dire­ta region­al­iza­da  (que pos­sui fun­da­men­to na Con­sti­tu­ição, na for­ma como inter­pre­ta­da pelo STF) rece­ber­am idên­ti­co trata­men­to: foi excluí­da a sua reg­u­la­men­tação por decre­to fed­er­al.

Isso impli­ca que cada tit­u­lar, ou enti­dade que exerça a tit­u­lar­i­dade (caso, por exem­p­lo, das regiões met­ro­pol­i­tanas, aglom­er­ações urbanas e micror­regiões), terá a liber­dade de reg­u­la­men­tar essas for­mas de prestação de serviço e, ain­da, como, nes­sas situ­ações, será obser­va­da a  leg­is­lação fed­er­al, em espe­cial o princí­pio da uni­ver­sal­iza­ção.

Os Decre­tos n.ºs 11.466 e 11.467, que foram revo­ga­dos em jul­ho de 2023, dis­pun­ham que o con­tra­to pro­visório e a prestação dire­ta region­al­iza­da dev­e­ri­am ser for­mal­iza­dos e aten­der a out­ros req­ui­si­tos, como a incor­po­ração de metas, sendo que, com fun­da­men­to no princí­pio da uni­ver­sal­iza­ção, pre­vi­am ain­da que estavam condi­ciona­dos à com­pro­vação, pelo presta­dor, de capaci­dade econômi­co-finan­ceira em cumprir com as metas.

Ess­es tex­tos foram suprim­i­dos, ou seja, não con­stam dos Decre­tos n.ºs 11.598 e 11.599. Porém, não sig­nifi­ca que os tit­u­lares ou as estru­turas de prestação region­al­iza­da podem uti­lizar livre­mente, e sem obser­var qual­quer condi­cio­nante, os insti­tu­tos do con­tra­to pro­visório ou da prestação dire­ta. A dis­ci­plina local que ven­ha a ser ado­ta­da, ape­sar de não mais vin­cu­la­da a um mod­e­lo fed­er­al, deve esclare­cer como o dis­pos­to na leg­is­lação fed­er­al, espe­cial­mente quan­to à  uni­ver­sal­iza­ção, vai ser aten­di­do em cada um dess­es casos.

Acres­cente-se que a prestação dire­ta foi obje­to de pare­cer da Advo­ca­cia Ger­al da União (AGU), acom­pan­ha­da em suas con­clusões por pare­cer da Procu­rado­ria Ger­al da Repúbli­ca, pro­feri­dos no âmbito da Ação Dire­ta de Incon­sti­tu­cional­i­dade nº 7.335-PB – ambas as man­i­fes­tações são pelo arquiv­a­men­to da ação. Com isso, ten­do em vista o prestí­gio e poder vin­cu­lante do pare­cer da AGU, é cer­to que o fato de Municí­pio pos­suir prestação dire­ta não pode causar difi­cul­dade no aces­so a recur­sos fed­erais ou, ain­da, no rece­bi­men­to de apoio fed­er­al na mod­e­lagem de parce­ria públi­co-pri­va­da.

Por fim, os novos decre­tos dis­põem que, caso o Municí­pio pre­ten­da exercer a tit­u­lar­i­dade de for­ma iso­la­da, além de autor­iza­ção da estru­tu­ra de gov­er­nança a que este­ja inte­gra­do, será necessária, tam­bém, que leg­is­lação estad­ual pre­ve­ja a pos­si­bil­i­dade dessa autor­iza­ção. Dito de out­ra for­ma: os decre­tos de jul­ho de 2023 enten­dem que a decisão do leg­is­lador estad­ual, de implan­tar a region­al­iza­ção, impli­ca na necessária atu­ação con­jun­ta dos Municí­pios, sal­vo se o mes­mo leg­is­lador tam­bém ten­ha pre­vis­to a pos­si­bil­i­dade de Municí­pio inte­grante da region­al­iza­ção exercer atu­ação iso­la­da.

A quase total­i­dade da leg­is­lação estad­ual sobre region­al­iza­ção pre­vê o exer­cí­cio iso­la­do da tit­u­lar­i­dade por Municí­pio, des­de que autor­iza­do pelo cole­gia­do interfed­er­a­ti­vo. Aliás, a prestação iso­la­da é comum nos arran­jos region­ais, como é exem­p­lo o caso da Região Met­ro­pol­i­tana do Rio de Janeiro que, em água e esgo­to, pos­sui seis presta­dores difer­entes.

Do quadro final, a prin­ci­pal con­se­quên­cia é que hou­ve a paci­fi­cação do setor de sanea­men­to bási­co, afa­s­tan­do a tur­bulên­cia políti­ca que o cer­ca­va no primeiro semes­tre de 2023. Há o con­sen­so de que os inves­ti­men­tos são necessários e devem ser incen­ti­va­dos, sejam eles públi­cos, sejam eles pri­va­dos. E que, daqui por diante, as questões ain­da mere­cem debates, até porque o debate é nat­ur­al da democ­ra­cia e da evolução cien­tí­fi­ca. Porém, debate téc­ni­co e con­stru­ti­vo.”

 

Wladimir Anto­nio Ribeiro é advo­ga­do, head da área de sanea­men­to do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azeve­do Mar­ques – Sociedade de Advo­ga­dos. Grad­u­a­do em Dire­ito pela Uni­ver­si­dade de São Paulo e mestre em Dire­ito Con­sti­tu­cional pela Uni­ver­si­dade de Coim­bra.