No artigo a seguir, a advogada e jornalista Talitha Camargo da Fonseca analisa a conexão do cotidiano com a internet e seu potencial de violação dos direitos humanos.
A Cibercultura e afronta aos direitos fundamentais
A internet se tornou indispensável para grande parte da população. Quem diria que a tecnologia que mais amamos também pode nos levar a ruína.
Se analisássemos como a internet foi desenvolvida no pós-segunda grande guerra mundial, saberíamos que nossa tecnologia seria uma forma de poder. Um poder cada vez maior, como se fosse (ou de fato o seja) apenas uma busca pelo controle. É o que acontece quando procuramos controlar uns aos outros e nada mais. Estamos fadados à extinção a menos ao que tange parte de nossa liberdade. Liberdade de escolha e de formação de opinião por fundamentos realmente validados pela verdade histórica e cientifica.
Será que a cibercultura já nos implantou chips? Será que estão travestidos de smarphones que nos rasteiam pelos algoritimos do Google Maps e por pesquisas nos sites de busca? Ou ainda por curtidas e compartilhamentos em redes de sociabilidade que podem afetar drasticamente nosso humor, nossa popularidade e também nossa capacidade de interação entre o mundo real e virtual? Principalmente pelo alarmante número de casos registrados como ilícito digitais, principalmente relacionados aos crimes contra honra, como se a internet fosse uma terra sem leis.
O idealismo da cultura digital na década de sessenta era sobre começar com o reconhecimento da possível ignorância, e tentar imaginar uma maneira de superá-la com beleza e criatividade proporcionada pela luminosidade de ideias e afastando o ignorado, interconectando globalmente as pessoas.
Ocorre que tal luminosidade de ideias, também foi um tiro no escuro do descontrole da cultura em torno da tecnologia, para que ela não deixe de ser tão bonita e tão significativa, tão profunda e tão infinitamente criativa, tão cheia de potencial infinito e que nos impeça de cometer um homicídio da dignidade humana.
Falamos sobre a extinção dignidade humana, no sentido de não deixarmos de esperançar e produzir um futuro promissor e infinitamente criativo. Acreditamos ainda que a capacidade de pensar e exteriorizar seu pensamento é o melhor dom que o ser humano possui, e que um crime seria o cárcere de ideias quando elas podem ser amplamente difundidas como ocorre na internet.
No caso da realidade virtual, as pessoas descobriram uma nova linguagem. Elas viram como novas aventuras, nova intensidade, novo significado, novas maneiras de se conectar, imaginar e até mesmo criar os filhos. É uma bela visão, porém assombrada pelo lado manipulador do que ela pode se tornar, se já não o for. Norbert Wiener, um primeiros cientistas da computação, escreveu — “The Human Use Of Human Beings[1]” – publicado em 1954, descreveu a potencial criação de um sistema no qual coletaria dados das pessoas e daria um feedback a elas em tempo real a fim de colocá-las de forma potencial e estatística numa caixa de experimentos em um sistema compormental. Mas naquele momento, Wiener retratou apenas como um comportamento mental e tal futuro seria tecnologicamente inviável.
Ocorre que, com entusiasmo acreditamos na cibercultura e em seu acesso ilimitado e irrestrito para todos (sem imaginarmos o sustentáculos dessa igualdade tecnológica). Assim, a única solução plausível seria o modelo de publicidade. Desse modo o Google nasceu gratuito, mas com anúncios, o Facebook nasceu gratuito, mas com anúncios. E a lei de Moore, que determina que os computadores tornam-se cada vez mais eficientes e mais baratos, com algoritmos melhores e exercendo um controle de comportamento como Norton Wiener temia.
Deste modo, as redes sociais são verdadeiros impérios de modificação de comportamento. Assim como poderíamos treinar um cão para salivar usando somente um sino apenas com um símbolo, estão as redes sociais como meios de punição e recompensa. Temos a pequena emoção de quando alguém gostou (curtiu) e/ou compartilhou uma publicação; ou não gostaram disso e não ganhou a atenção devida, ou quando sofrem a super exposição da exposição. Distribuídos de tal forma que somos presos nesse ciclo, conforme reconhecido publicamente por muitos criadores do sistema, todos sabiam o que estava acontecendo.
Nesse ambiente comercial, há um novo tipo de diferença que se esquivou do mundo acadêmico durante algum tempo: se os estímulos positivos são mais efetivos que os negativos em diferenças circunstanciais; os estímulos negativos são mais baratos, são estímulos de barganha.
Os clientes desses impérios de modificações de comportamento estão num ciclo muito rápido. Comerciantes em alta frequência recebem feedback de suas despesas ou quaisquer que sejam suas atividades se não estão gastando. Nesse ínterim, o indivíduo vive em uma sociedade virtual plural com suas diversidades culturais, valorativas, de conhecimento, padrões sociais e maneiras de agir, conforme o espelho da nossa realidade física.
Nesse contexto podemos pensar que a conduta humana virtual acaba por ser influenciada diretamente por aqueles que encontram-se conectados ou seja, na forma de vestir ou nas ambições materiais e profissionais, ou ainda nos lugares a frequentar e tendo uma falsa ideia de reconhecimento pelas ações individuais que se difundem em meio ao coletivo virtual por meio de fatos sociais.
Do ponto de vista de Durkheim, a expressão fato social: “é empregada correntemente para designar mais ou menos todos os fenômenos que se dão no interior da sociedade, por menos que apresentem, com uma certa generalidade, algum interesse social[2]”.
Sobre esses fatos exteriores à vontade individual, Durkheim, explicita que: “uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele[3].”
Assim fica claro que a prática de fatos sociais é inerente ao cotidiano humano pelo fato de conviver com outros indivíduos e praticar ações das mais simples possíveis às mais complexas, que também são praticadas pelos outros e que tornam-se uma necessidade para o convívio coletivo.
Muitas vezes o indivíduo não quer também se adequar à maneira de agir da sociedade contudo, ir contra a maneira de agir coletiva cria reações sociais pelo fato da fuga aos padrões cotidianos preestabelecidos. A sociedade o censura de forma que nem todas as ações que o indivíduo gostaria de adotar são factíveis no cotidiano (Durkheim) acrescenta que: esses tipos de conduta ou de pensamento não apenas são exteriores ao indivíduo, como também são dotados de uma força imperativa e coercitiva em virtude da qual se impõem a ele, quer ele queira, quer não[4].
É aí que vem a coação social. O indivíduo é psicologicamente coagido a determinadas condutas ou pontos de vista e, uma vez que fuja a esses padrões existe uma censura objetiva que parte da sociedade para com ele, excluindo‑o do grupo social ou ainda a censura subjetiva onde o medo impera no subconsciente individual reprimindo‑o a determinadas práticas por não querer ser excluído ou visto negativamente pelo grupo social em que convive ainda que virtualmente.
Sendo hoje incontestável porém, que a maior parte de nossas ideias e de nossas tendências não seja elaborada por nós mas nos vem de fora, elas só podem penetrar em nós impondo-se.
Nesse prisma, tem-se ainda que os indivíduos são moldados a viver na sociedade de maneira a seguir padrões impostos coercitivamente a eles ou de maneira objetiva pela censura direta da sociedade, ou de maneira subjetiva pela censura que ele mesmo faz de seus atos (e aí entra a questão do medo de ser excluído dos grupos sociais), ou pela censura imposta de maneira mais persuasiva ou seja, fruto de concepções cristalizadas no direito onde sanções podem ser aplicadas pelo fato do descumprimento de uma lei (é o caso de matar alguém, quando o indivíduo vai responder criminalmente inclusive com a privação de sua liberdade).
Essa modulação já é imposta ao indivíduo desde seu nascimento de forma que, segundo Durkheim: […] “basta observar a maneira como são educadas as crianças. Quando se observam os fatos tais como são e tais como sempre foram, salta aos olhos que toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente[5]”. Ou seja, desde que nasce o indivíduo começa a ser moldado para viver na sociedade seguindo certos padrões.
Talvez por esse motivo tem-se hoje uma sociedade em que os indivíduos passam boa parte do tempo assistindo programas de televisão que conduzem sua maneira de ver o mundo de forma a não se manifestar subitamente pelas formas de governo que muitas vezes acabam por explorar sua forma de viver com a cobrança ou estipulação de altos impostos que posteriormente acabam por ir para mãos erradas.
O exemplo do parágrafo anterior é bem significativo pois, quando individualmente a pessoa é roubada ela reage ao crime ou vai à delegacia de polícia registrar o fato enfim, imediatamente ela reage. Já quando a ação é perante uma coletividade, o medo de agir da mesma forma e ser censurado o reprime, fruto do maniqueísmo que lhe é imposto cotidianamente através das informações veiculadas nos meios de comunicação que lhe impõem a submissão e espera que um líder tome a frente e comande um movimento em resposta aos abusos cometidos contra ela.
Partindo da compreensão de que o direito do consumidor é um direito humano de terceira geração e consoante com os ensinamentos de Bobbio compreende-se que, a violação de um direito do consumidor é também uma violação aos direitos humanos visto que um é expressão do outro, sendo que quando se assegura ou reconhece tais direitos, através de uma sistemática legal estabelecida, verifica-se um reforço a tal entendimento.
Ada Pellegrini Grinover em A Marcha do Processo, expressa: “ao contrário, os interesses sociais são comuns a um conjunto de pessoas, e somente estas. Interesses espalhados e informais à tutela de necessidades coletivas, sinteticamente referíveis à qualidade de vida. Interesses de massa, que comportam ofensas de massa e que colocam em contraste grupos, categorias, classes de pessoas. Não mais se trata de um feixe de linhas paralelas, mas de um leque de linhas que convergem para um objeto comum e indivisível. Aqui se inserem os interesses dos consumidores, ao ambiente, dos usuários de serviços públicos, dos investidores, dos beneficiários da previdência social e de todos aqueles que integram uma comunidade compartilhando de suas necessidades e de seus anseios.[6]”
Enfatizando a importância dos direitos humanos Schiefer, esclarece que “os direitos humanos têm um lugar considerável na consciência política e jurídica contemporânea. Implicam, com efeito, um estado de direito e o respeito das liberdades fundamentais sobre as quais repousa toda democracia”[7].
Dessa forma, a liberdade de escolha, diante de estímulos constantes de propagandas, pode-se considerar uma afronta ao Direito do Consumidor, que está integrando o rol dos direitos fundamentais sendo expressão dos Direitos Humanos, o Estado Democrático de Direito deve assegurar e proteger tais direitos garantindo-os a todos de forma igualitária, o que existe no ordenamento jurídico brasileiro devidamente assegurado na Constituição Federal de 1988 na Lei nº 8.078/90 e legislação complementar onde o legislador brasileiro, compreendendo que a violação aos direitos dos consumidores é uma violação aos direitos humanos, tratou de assegurar e dar proteção a tais direitos.
E ainda a super exposição da exposição, pela teoria do limites (grifo nosso), que surgiu detalhando que os deritos fundamentais surgem no final no século XVIII, como uma forma de retrição de poder do Estado, vindo a proteger os indivíduos em face do poder do Estado. Eis que temos o surgimento de um paradoxo: os direitos fundamentais sugem para limitar o poder do Estado. Entretanto, o Estado deve exercer atos que limitam os direitos fundamentais.
Não seria a internet, como uma nova forma de poder, poder de controle também de ter uma limitação? Ou o Estado Virtual é inlegislável por manter seus provedores em Estados diversos?
Pensemos ainda que existam ações que saem da maneira individual de agir, é o caso de ir trabalhar. Independente do indivíduo fazer essa ação ela continuará existindo para os outros indivíduos que fazem parte da sociedade, nascendo os fatos sociais mais relevantes dotados de imperatividade ocasionada por uma consciência coletiva de modulação de comportamentos por meio de feedback imediatos, de uma sociedade integralmente conectada entre o rápido e o rapidíssimo, que leve ao consumo desregulado e a subjetividade das relações sociais.
Afinal, a hipertecnologia tem estabelecido um sistema de patrulha e controle nunca antes visto na história da humanidade, galgamos a prima facie tecnológica e nos desnudamos na proteção a vida privada, divindade humana, respeito ao consumidor – principalmente em relação a sua saúde mental, já que o tempo todo estamos sendo abordados pelo mercado – pelo sistema de consumo de materiais, ideias, noticias falsas e verdadeiras, curtidas, compartilhamentos e superexposição.
Notas:
[1] Wiener, N. The Human Ouse Of Human Beings: Cybernertics and Society, ed. 1968, original de 1954.
[2] Durkhiem, Émile. As Regras do Método Sociológico. trad, brasileira, 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[3] Durkheim. op. cit.
[4] id. ibid.
[5] id.ibid.
[6] Grinover, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto/ Ada Pellegrini Grinover…[et. al.] — 7ª. Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. P.8.
[7] Schiefer, Uyára. Sobre os direitos fundamentais da pessoa humana. Revista Persona. Disponível em http://revistapersona.com.ar/Persona28/28Schiefer.htm. Acesso em: 02/09/2019 14:49.
Talitha Camargo da Fonseca é jornalista e advogada, com pós-graduação em Direito Público pela Universidade Anhanguera Uniderp.