Na pre­sente resen­ha, o Doutor Alber­to Ful­vio Luchi, Advo­ga­do paulista, espe­cial­ista em Dire­ito Públi­co e em Dire­ito Admin­is­tra­ti­vo, Árbi­tro da Câmara de Comér­cio Brasil-Italia, mem­bro Pesquisador da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito e Asso­ci­a­do de Arru­da Alvim & Tereza Alvim Advo­ca­cia e Con­sul­to­ria Jurídi­ca, fala de sua exper­iên­cia de leitu­ra de Mon­tesquieu, livro lança­do em 2018/2019.

Alber­to Luchi pub­li­cou tam­bém impor­tante arti­go em Poli­fo­nia: Revista Inter­na­cional da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, que pode ser lido aqui.

Leia a resen­ha do livro Mon­tesquieu, a seguir.

 

Sobre o “Mon­tesquieu” de Alfre­do Attié[1]

Alber­to Ful­vio Luchi

 

Insti­gar a pen­sar para que cada um tire sua con­clusões e man­i­feste sua opinião. Este é o moti­vo que con­duz os filó­so­fos a escreverem e com­porem tex­tos e pen­sa­men­tos acer­ca de um tema. Esta é a pro­pos­ta fun­da­men­tal da obra “Mon­tesquieu – Tópi­ca das Paixões – Esti­lo Moral­iste”, de Alfre­do Attié.

Pro­fes­sor Doutor em Filosofia da Uni­ver­si­dade de São Paulo, é desem­bar­gador do Tri­bunal de Justiça do Esta­do de São Paulo. É o atu­al Pres­i­dente da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito (APD) e tit­u­lar da Cadeira San Tia­go Dan­tas.

O nobre e tal­en­toso filó­so­fo jurista (mais do que jurista filó­so­fo, na humilde opinião deste tam­bém leitor) con­segue ala­van­car uma releitu­ra da obra de Mon­tesquieu, ain­da que de maneira breve (o tex­to pos­sui cer­ca de 200 pági­nas insti­gantes, mas com uma pro­fun­di­dade e análise ímpar), sobre os pen­sa­men­tos de um autor fale­ci­do há quase 300 anos e que influ­en­ciou a con­strução de Esta­do con­ce­bi­da atual­mente.

Tra­ta-se de uma obra de viés literário, políti­co e filosó­fi­co. Literário porque anal­isa o esti­lo – aliás, pecu­liar, que exige grande atenção do leitor em relação ao filó­so­fo ilu­min­ista. Políti­co porque sua obra tra­ta de anal­is­ar, à época em que vivera, o poder e a relação entre essas pes­soas, que o detêm por um lado e que a ele se sub­me­tem, por out­ro. Filosó­fi­co porque Mon­tesquieu foi um pen­sador e trouxe bases para o pen­sa­men­to e a maneira de se expres­sar e de trans­mi­ti-lo.

Mas por que anal­is­ar a obra de Mon­tesquieu, já que fale­ci­do há tan­to tem­po? Sim­ples­mente porque a influên­cia de sua obra ecoa des­de a sua con­cepção ou cri­ação. Como afir­ma­do há pouco, a con­cepção de Esta­do e seus órgão ou poderes foram deter­mi­nantes em sua época e foram a base da orga­ni­za­ção de muitas nações (inclu­sive a brasileira), emb­o­ra a con­cepção de Mon­tesquieu ten­ha sido dis­tor­ci­da, segun­do o autor do livro.

E em razão dessa influên­cia, ain­da que de for­ma equiv­o­ca­da, tra­ta-se de uma obra atu­al e de leitu­ra obri­gatória. Alfre­do Attié bus­ca res­gatar a orig­i­nal­i­dade da inter­pre­tação de sua obra, ain­da que crit­i­ca­da por juris­tas e cien­tis­tas políti­cos. Mas sua intenção é de traz­er a lit­er­al­i­dade e real intenção de Mon­tesquieu.

 

Mas a leitu­ra fei­ta pelo autor inevi­tavel­mente pas­sa pela análise do esti­lo ado­ta­do por Mon­te­quieu, que em sua essên­cia é o da liber­dade. E a escol­ha desse esti­lo, nas palavras de Alfre­do Attié, “cor­re­sponde a toma­da de uma posição políti­ca, para desen­har novos cam­in­hos”.

Assim como o esti­lo, o pro­je­to políti­co de Mon­tesquieu é o da liber­dade. Não se tra­ta de um pen­sa­men­to orig­i­nal na medi­da em que Mon­tesquieu faz a leitu­ra de seus influ­en­ci­adores, com Fontaigne, La Rochefou­cauld, Locke e prin­ci­pal­mente Hobbes.

Como homem de sua época, Mon­tesquieu bus­cou nes­sas fontes e out­ras mais a base para a con­strução de sua obras e pen­sa­men­tos.

O dire­ito tam­bém é fator deter­mi­nante na obra de Mon­tesquieu, ten­do em vista que fora mag­istra­do durante uma parcela de sua vida. Mas cabe ano­tar que a pre­sente obra procurou se focar no esti­lo literário e nos pen­sa­men­tos políti­co e filosó­fi­co do autor ilu­min­ista. Não se tra­ta de uma obra jurídi­ca ded­i­ca­da aos profis­sion­ais do dire­ito. Qual­quer pes­soa ou ser pen­sante pode – e deve – se debruçar sobre estes escritos.

O livro, em sín­tese, é com­pos­to por uma apre­sen­tação ger­al da obra, qua­tro capí­tu­los e as refer­ên­cias bib­li­ográ­fi­cas uti­lizadas pelo autor.

O primeiro capí­tu­lo abor­da a for­mação de Mon­tesquieu, sua for­mação ini­cial como pes­soa, ten­do estu­da­do entre os oratis­tas como o Padre Bernard Lamy, Richard Simon e Nico­las Male­branche. A pro­dução e o pen­sa­men­to de Mon­tesquieu, segun­do o autor des­ta obra, partem da ideia de que “A razão prim­i­ti­va deri­va das paixões: ela é exte­ri­or aos entes (mes­mo aos inteligentes), pois é pos­sív­el achar relações entre ambos (assim como estes as con­stituem entre si), que se chamam leis e, uma vez que as leis cor­rem – comu­ni­cam-se (derivam) – da natureza de tais ente, a razão é pre­sa de seus capri­chos e fan­tasias”.

Emb­o­ra Mon­tesquieu estivesse lig­a­do ao Oratório, teve uma edu­cação de base “human­ista” e “lib­er­al” do pon­to de vista reli­gioso, com ênfase na ciên­cia, segun­do os estu­diosos que anal­is­aram a vida e a obra de Mon­tesquieu (L. Des­graves, R. Shack­el­ton e M. C. Igle­sias).

O mes­mo capí­tu­lo fala da influên­cia e análise das obras de Espinosa e Hobbes por Mon­tesquieu. Este últi­mo, segun­do o autor, teria sido toma­do como con­tem­porâ­neo por Mon­tesquieu, mas com análise críti­ca à sua obra, apon­tan­do erros e o ver­dadeiro sen­ti­do da obra do filó­so­fo e políti­co inglês. Mas há um pon­to em que Mon­tesquieu e Hobbes se tocam, no que se ref­ere às paixões. Ain­da nes­ta eta­pa da obra, anal­isa-se o con­tex­to históri­co e social do qual adveio Mon­tesquieu.

Já o segun­do capí­tu­lo se des­ti­na à análise do esti­lo a que chegou e se moldou Mon­tesquieu. Esta parte faz uma breve mas ded­i­ca­da análise dos diver­sos esti­los literários: o ensaio, a for­ma moral­iste (esti­lo próx­i­mo da arte dos sofis­tas e retores da Antigu­idade), as séries e os ensaios breves, estes ado­ta­do por Mon­tesquieu. Os ensaios breves pos­suem qua­tro mod­os: as fábu­las, os car­ac­teres, as máx­i­mas e os pen­sa­men­tos. Há um para­le­lo sobre os esti­los bar­ro­co e clás­si­co, não ape­nas da lit­er­atu­ra mas tam­bém da arte, da maneira como um se con­trapõe ou se opõe ao out­ro. O autor tam­bém faz uma breve reflexão sobre o maneiris­mo, “uti­liza­do para o preenchi­men­to do que se diz ser uma lacu­na, na ter­mi­nolo­gia da ciên­cia da lit­er­atu­ra, um denom­i­nador comum para todas as tendên­cias literárias opostas ao clas­si­cis­mo (…)”.

O ter­ceiro capí­tu­lo tra­ta pro­pri­a­mente da obra de Mon­tesquieu e suas ponderações/conclusões sobre a políti­ca, espe­cial­mente, que foi o prin­ci­pal cam­po de análise do filó­so­fo. Mon­tesquieu foi tido como aris­totéli­co (clás­si­co), mas não com­par­til­ha a con­cepção dos temas essen­ci­ais da referi­da esco­la. Sua pro­dução, por out­ro lado, não é ape­nas retóri­ca, mas tam­bém poéti­ca ante a pre­sença de ele­men­tos fic­cionais. Muitos criticaram sua obra, por exem­p­lo, Voltaire, os jesuí­tas e os jansenistas. Mas sem enten­der que Mon­tesquieu, ao invés de quer­er tratar de cer­tos assun­tos em sua obra, pre­tendia, na ver­dade, exam­i­nar ou obser­var fatos e desen­har ou traçar princí­pios.

Mas a intenção de Mon­tesquieu não era de tornar algo ver­dadeiro ou imutáv­el, ou mes­mo dog­máti­co, mas sim fazem o leitor descon­fi­ar daqui­lo, inda­gan­do se era ver­dadeiro ou fal­so. As paixões con­duzem a nar­ra­ti­va de Mon­tesquieu.

A monar­quia não era o regime de prefer­ên­cia de Mon­tesquieu, segun­do o autor, mas era a pas­sagem necessária para a real­iza­ção do pro­je­to que bus­ca­va: a liber­dade. O filó­so­fo francês dese­jou que o leitor apre­ci­asse sua obra mais céle­bre, O Espíri­to das Leis, como uma relação dire­ta à out­ra obra de sua auto­ria, as Car­tas Per­sas. Percebe­mos essa asso­ci­ação entre uma e out­ra obra através do encadea­men­to da filosofia, da moral, da políti­ca, da história e do dire­ito com a ficção, esta últi­ma pre­sente na segun­da obra men­ciona­da.

Mon­tesquieu faz a abor­dagem da riqueza, avalian­do o comér­cio (ter­mo este que pode ser sub­sti­tuí­do por mer­ca­do) como noci­vo quan­do deixa de pro­duzir riqueza para todos e o faz para a dom­i­nação e aumen­to da riqueza de poucos, que assim fazem por meio da força. A hon­ra é uma força políti­ca, ao pas­so que o comér­cio é mar­gin­al. “O comér­cio não é liber­dade nem segu­rança, mas sat­is­fação de dese­jos que não são, por definição, públi­cos. Seu úni­co bene­fí­cio políti­co é a paz, mas ela não se gen­er­al­iza, não alcança os par­tic­u­lares”.

Assun­to que não pode­ria ser neg­li­gen­ci­a­do na obra de Mon­tesquieu é a questão da religião. Para ele, tratam-se de ape­nas con­sel­hos. De cer­ta maneira a tra­ta com iro­nia. Mon­tesquieu anal­isa a natureza humana (e as leis que dela derivam) a par­tir da obser­vação das obras de Thomas Hobbes e John Locke.

 

O autor con­tin­ua a nar­ra­ti­va de sua análise sobre o autor francês acer­ca dos regimes políti­cos sob o viés das paixões: monar­quia-hon­ra, repúbli­ca aris­tocráti­ca-con­tenção, repúbli­ca democráti­ca-vir­tude e despo­tismo-medo. Out­ro regime é o do comér­cio, sob a paixão da ambição/insatisfação. Nen­hum deles tol­era a paixão chama­da liber­dade, que é o ver­dadeiro propósi­to da obra de Mon­tesquieu. “O livro, com efeito, não tem­ati­za as leis senão pela medi­ação de seu espíri­to”.

Por fim, o quar­to capí­tu­lo faz uma con­clusão sobre o des­ti­no ou escopo da obra de Mon­tesquieu, fazen­do um exce­lente para­le­lo com a arte: a pro­dução deste se assemel­ha ou se aprox­i­ma do cubis­mo, cujo expoente maior é o pin­tor espan­hol Pablo Picas­so, que viria a nascer somente após mais de um sécu­lo. Fala tam­bém sobre os praz­eres bus­ca­dos pelo ser humano.

A obra é de uma riqueza sin­gu­lar, pois faz uma análise pro­fun­da e difer­ente do que ocorre com a inter­pre­tação – diga-se, cor­riqueira ou mes­mo “vul­gar” – das lições de Mon­tesquieu. Não deixa de ser uma obra filosó­fi­ca, pois abor­da a visão de um intér­prete, de grande respeito, sobre a obra do filó­so­fo e políti­co francês.

E a obra não deixa de ser atu­al porque advém de um autor que se sobrepôs ao seu tem­po, como Leonar­do da Vin­ci era extrema­mente avança­do em relação à sua época. Nos­sa her­ança históri­ca e con­sti­tu­cional se pau­ta nos diz­eres e lições de Mon­tesquieu.

Vive­mos uma época de efer­vescên­cia políti­ca e ide­ológ­i­ca, tan­to no Brasil como no mun­do. E a obra do autor res­ga­ta uma clás­si­co da lit­er­atu­ra e da políti­ca (e mes­mo do dire­ito) para chamar a atenção de que as for­mas de par­tic­i­pação políti­ca estão se deixan­do pelas paixões – rai­va, medo e intol­erân­cia – inco­er­ente com a condição de nos­so Esta­do de Dire­ito, que pri­ma pela diver­si­dade e tol­erân­cia.

A obra de Mon­tesquieu parece ser de difí­cil leitu­ra, mas deve ser vista como uma obra de ficção e lit­er­atu­ra, como o próprio autor sug­ere, movi­do pela liber­dade (não ape­nas de con­teú­do mas tam­bém da for­ma). Ele não quer ser enten­di­do como doutri­nador ou dog­máti­co, mas sim como um provo­cador ou insti­gador do pen­sa­men­to humano, fazen­do com que as pes­soas pensem e se man­i­festem.

Con­forme as palavras do filó­so­fo jurista, “ficamos inteligentes dialo­gan­do com as pes­soas, e não com máquinas ou ani­mais”. Vale a leitu­ra.

 

[1] Alfre­do Attié. Mon­tesquieu. Lis­boa: Chi­a­do, 2018.