O Pro­fes­sor e Advo­ga­do Wil­son Ramos Fil­ho, Doutor em Dire­ito pela Uni­ver­si­dade Fed­er­al do ParanáUFPR, da qual foi Pro­fes­sor, real­iza impor­tante tra­bal­ho no Museu da Lava-Jato, do qual é Pres­i­dente do Con­sel­ho Curador, insti­tu­ição que foi cri­a­da por ini­cia­ti­va de juris­tas, jor­nal­is­tas e his­to­ri­adores .

Xixo, como é car­in­hosa­mente con­heci­do, recen­te­mente, redigiu o pre­fá­cio à pub­li­cação, pela Edi­to­ra Kot­ter, da com­pi­lação, elab­o­ra­da por Eduar­do Appio, do Relatório da Polí­cia Fed­er­al, elab­o­ra­do em apoio à Cor­reição do Con­sel­ho Nacional de Justiça — CNJ sobre a Oper­ação Lava Jato.

A seguir, pode ser lido o impor­tante Pre­fá­cio redigi­do por ele para a pub­li­cação.

O Relatório Enterrado — Anatomia de um Mecanismo e a Batalha pela Memória

Wilson Ramos Filho (Xixo)[1]

“Há doc­u­men­tos que tran­scen­dem sua natureza buro­cráti­ca para se tornarem artefatos históri­cos. São peças que, pela den­si­dade dos fatos que rev­e­lam e pela con­tro­vér­sia que catal­isam, obrigam uma nação a con­frontar as fis­sur­as em suas insti­tu­ições mais sagradas. O relatório da Polí­cia Fed­er­al, elab­o­ra­do em apoio à Cor­reição do Con­sel­ho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a Oper­ação Lava Jato e que o leitor tem em mãos na ínte­gra pela primeira vez impres­so em livro, é um dess­es doc­u­men­tos. Não se tra­ta de um libelo acusatório, tam­pouco de um vered­i­to final. É, antes de tudo, uma dis­se­cação metódi­ca, fria e fac­tu­al do que aparenta ser um desvio sistêmi­co de poder no coração do sis­tema de justiça brasileiro. Sua pub­li­cação não é um ato de revan­chis­mo pelos ami­gos que foram viti­ma­dos por um glá­dio que mais visa­va poder e lucro, mas um exer­cí­cio inadiáv­el de memória públi­ca e de higiene democráti­ca, essen­cial para com­preen­der como os instru­men­tos da lei podem ser con­tor­ci­dos até se trans­for­marem nes­tas armas políti­cas.

Para enten­der a mag­ni­tude do que descrevem as pági­nas do Relatório, é útil pen­sar na Oper­ação Lava Jato, em sua fase de Curiti­ba, não ape­nas como uma inves­ti­gação, mas como um “sis­tema” para­le­lo, à margem do arcabouço legal e con­sti­tu­cional. Este sis­tema pos­suía suas próprias regras, seus próprios mecan­is­mos finan­ceiros e, como os indí­cios sug­erem de for­ma con­tun­dente, seus próprios obje­tivos, que nem sem­pre con­ver­giam com o inter­esse públi­co ou com os dita­mes do dev­i­do proces­so legal. Este livro, ao traz­er à luz o relatório que anat­o­miza esse mecan­is­mo, não bus­ca a con­de­nação sumária de seus oper­adores, mas a reafir­mação ser­e­na e mil­i­tante de princí­pios con­sti­tu­cionais inego­ciáveis: a impar­cial­i­dade judi­cial, a sep­a­ração de poderes, a transparên­cia na gestão de recur­sos públi­cos e a respon­s­abil­i­dade dos agentes do Esta­do. O relatório é a evidên­cia; este livro é a praça públi­ca onde ela será, final­mente, exam­i­na­da.

  1. A Gênese da Devas­sa: O Fio Des­fi­a­do em Curiti­ba

Toda estru­tu­ra, por mais monolíti­ca que pareça, pos­sui pon­tos de frag­ili­dade. A for­t­aleza da 13ª Vara Fed­er­al de Curiti­ba, que por anos oper­ou como o epi­cen­tro de um ter­re­mo­to políti­co e jurídi­co no Brasil, começou a rev­e­lar suas rachaduras não por um ataque exter­no, mas por um escrutínio inter­no. A chega­da do juiz Eduar­do Appio à tit­u­lar­i­dade da vara, em fevereiro de 2023, foi o catal­isador invol­un­tário de uma cadeia de even­tos que cul­mi­nar­ia na pro­dução do relatório que se segue. Em seu cur­to perío­do no car­go, Appio demon­strou uma dis­posição inédi­ta para per­scru­tar a arquite­tu­ra finan­ceira dos acor­dos da Lava Jato, um cofre até então intocáv­el. Suas primeiras decisões e declar­ações públi­cas, pos­te­ri­or­mente con­sol­i­dadas em seu livro “Tudo Por Din­heiro”, sinalizaram uma rup­tura com a cul­tura de defer­ên­cia abso­lu­ta que pro­te­gia os méto­dos e as finanças da força-tare­fa, provo­can­do uma reação ime­di­a­ta e avas­sal­ado­ra.

A respos­ta do sis­tema foi veloz e implacáv­el. O Tri­bunal Region­al Fed­er­al da 4ª Região (TRF‑4), a corte de apelação his­tori­ca­mente alin­ha­da à Lava Jato e sedi­a­da em Por­to Ale­gre, afas­tou Appio de suas funções de for­ma con­tro­ver­sa, com base em uma denún­cia de con­du­ta imprópria. A manobra, con­tu­do, rev­el­ou mais sobre a defen­si­va do mecan­is­mo do que sobre a supos­ta fal­ta do mag­istra­do. A pres­sa em neu­tralizar um juiz que começa­va a faz­er as per­gun­tas cer­tas sobre o din­heiro soou como um alarme em Brasília. A pro­va mais elo­quente dessa despro­porção veio meses depois, quan­do o próprio CNJ não ape­nas avo­cou para si o proces­so dis­ci­pli­nar con­tra Appio, retirando‑o da alça­da do TRF‑4, como tam­bém o arquiv­ou por fal­ta de jus­ta causa, con­sideran­do que as sus­peitas con­tra ele havi­am sido anu­ladas pelo Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al (STF).

O afas­ta­men­to de Appio, soma­do a um acú­mu­lo de mais de trin­ta recla­mações dis­ci­pli­nares con­tra mag­istra­dos e desem­bar­gadores lig­a­dos à Lava Jato, tornou a inação insus­ten­táv­el. Foi nesse cenário de con­fla­gração insti­tu­cional que a Cor­rege­do­ria Nacional de Justiça, sob a lid­er­ança do min­istro Luis Felipe Salomão, deu o pas­so deci­si­vo. Em maio de 2023, foi instau­ra­da a Cor­reição Extra­ordinária para inspe­cionar o fun­ciona­men­to da 13ª Vara Fed­er­al e da 8ª Tur­ma do TRF‑4. A cor­reição não era mais uma for­mal­i­dade, mas uma respos­ta insti­tu­cional a indí­cios cres­centes de irreg­u­lar­i­dades sistêmi­cas.

Para dar o suporte téc­ni­co e inves­tiga­ti­vo a essa empre­ita­da, a Cor­rege­do­ria req­ui­si­tou o auxílio da Polí­cia Fed­er­al. É aqui que emerge a figu­ra cen­tral por trás dos acha­dos téc­ni­cos do relatório: o del­e­ga­do Élzio Vicente da Sil­va. Foi ele quem coor­de­nou a equipe que forneceu a espin­ha dor­sal inves­tiga­ti­va para a análise do CNJ. A metodolo­gia foi exaus­ti­va, envol­ven­do a análise de proces­sos judi­ci­ais no sis­tema eletrôni­co, a req­ui­sição de doc­u­men­tos finan­ceiros à Petro­bras e a out­ros órgãos, e a real­iza­ção de oiti­vas. Essa colab­o­ração con­feriu ao doc­u­men­to final a cred­i­bil­i­dade de um inquéri­to poli­cial, distinguindo‑o de uma mera revisão admin­is­tra­ti­va e empre­stando-lhe o peso da pro­va mate­r­i­al. O episó­dio rev­ela que o apara­to aparente­mente invencív­el da Lava Jato era, na ver­dade, extrema­mente frágil ao escrutínio inter­no. A reação agres­si­va e ime­di­a­ta a um úni­co juiz dis­si­dente não demon­stra­va força, mas um medo que­bradiço da transparên­cia, espe­cial­mente no que diz respeito às suas oper­ações finan­ceiras. A ten­ta­ti­va de silen­ciar um críti­co saiu espetac­u­lar­mente pela cula­tra, des­en­cade­an­do a audi­to­ria insti­tu­cional que o sis­tema tan­to bus­ca­va evi­tar.

  1. A Arquite­tu­ra do Desvio: O Con­luio, a Fun­dação e o Din­heiro

O coração do relatório pul­sa em torno de duas expressões que, no vocab­ulário con­ti­do do mun­do jurídi­co, soam como um tro­vão: “gestão caóti­ca” e “pos­sív­el con­luio”. A inves­ti­gação da Cor­rege­do­ria, ampara­da pela apu­ração da Polí­cia Fed­er­al, con­cluiu que o con­t­role dos bil­hões de reais ori­un­dos de acor­dos de leniên­cia e colab­o­ração pre­mi­a­da na 13ª Vara de Curiti­ba era caóti­co. Con­tu­do, o doc­u­men­to vai além, sug­erindo que esse caos não era fru­to de mera incom­petên­cia admin­is­tra­ti­va, mas de um padrão de con­du­ta delib­er­a­do que, con­sis­ten­te­mente, ben­e­fi­ci­a­va uma agen­da par­tic­u­lar e extrale­gal. O pon­to cul­mi­nante dessa agen­da foi a ten­ta­ti­va de desviar cer­ca de R$ 2,5 bil­hões para a cri­ação de uma fun­dação de dire­ito pri­va­do, geri­da pelos próprios procu­radores da força-tare­fa.

A engen­haria finan­ceira para esse desvio, con­forme detal­ha­da no relatório, foi uma com­plexa tri­an­gu­lação inter­na­cional:

  1. O Acor­do nos Esta­dos Unidos: O Depar­ta­men­to de Justiça dos EUA (DOJ) impôs uma mul­ta bil­ionária à Petro­bras por práti­cas de cor­rupção que enga­naram investi­dores no mer­ca­do amer­i­cano. O pon­to cru­cial, apon­ta­do pelo relatório, é que as provas que fun­da­men­taram essa mul­ta foram, em grande parte, forneci­das pela própria força-tare­fa da Lava Jato, por meio de uma coop­er­ação infor­mal que con­tornou os canais diplomáti­cos e os trata­dos de assistên­cia jurídi­ca mútua (MLATs). Em solo amer­i­cano, a Lava Jato apre­sen­tou a Petro­bras como a grande vilã, garan­ti­n­do a apli­cação de uma penal­i­dade maciça.
  2. O Retorno do Din­heiro: Estran­hamente o DOJ con­cor­dou que 80% do val­or da mul­ta — aprox­i­mada­mente R$ 2,5 bil­hões na época — fos­sem remeti­dos ao Brasil. No entan­to, em vez de o din­heiro ser des­ti­na­do ao Tesouro Nacional, como seria a praxe para reparar o Esta­do brasileiro, os recur­sos foram deposi­ta­dos em uma con­ta judi­cial vin­cu­la­da e con­tro­la­da pela 13ª Vara Fed­er­al de Curiti­ba, que até então, segun­do o que se pode apu­rar até hoje, tra­bal­hou em função de inter­ess­es do país doador.
  3. A Ten­ta­ti­va de Apro­pri­ação: Com os recur­sos sob con­t­role judi­cial local, a força-tare­fa, lid­er­a­da por Deltan Dal­lagnol, cos­tur­ou com a Petro­bras um “Acor­do de Assunção de Com­pro­mis­sos”. Este acor­do pre­via a cri­ação de uma fun­dação pri­va­da, com sede em Curiti­ba, que seria respon­sáv­el por gerir ess­es R$ 2,5 bil­hões. O relatório apon­ta que a manobra con­tou com a par­tic­i­pação do então juiz Sér­gio Moro, que teria ini­ci­a­do o pro­ced­i­men­to para dire­cionar os fun­dos, e foi pos­te­ri­or­mente homolo­ga­da pela juíza Gabriela Hardt.

O doc­u­men­to atribui papéis especí­fi­cos aos atores-chave. Sér­gio Moro é apon­ta­do como o respon­sáv­el por instau­rar, em 2016, um pro­ced­i­men­to sig­iloso para dire­cionar os val­ores dos acor­dos à Petro­bras, tratan­do a estatal como “víti­ma” para todos os fins e, assim, pavi­men­tan­do o cam­in­ho para o arran­jo futuro. Deltan Dal­lagnol é descrito como o arquite­to da fun­dação, que teria atu­a­do como rep­re­sen­tante do Esta­do brasileiro em nego­ci­ações com os EUA e a Petro­bras, assu­min­do um papel para o qual não pos­suía investidu­ra legal. As con­ver­sas de Dal­lagnol com a orga­ni­za­ção Transparên­cia Inter­na­cional sobre a gov­er­nança do fun­do rev­e­lam o quão avança­do esta­va o plane­ja­men­to. Por fim, a juíza Gabriela Hardt foi quem homol­o­gou o acor­do, um ato que, segun­do o relatório, foi prat­i­ca­do com base em comu­ni­cações infor­mais, fora dos autos, e sem a dev­i­da cautela, violan­do seus deveres fun­cionais de prudên­cia e impar­cial­i­dade.

A con­cretiza­ção do plano foi frustra­da no últi­mo instante por uma decisão do Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al. Em março de 2019, o min­istro Alexan­dre de Moraes, em respos­ta a uma Arguição de Des­cumpri­men­to de Pre­ceito Fun­da­men­tal (ADPF 568) ajuiza­da pela então Procu­rado­ra-Ger­al da Repúbli­ca, Raquel Dodge, sus­pendeu lim­i­n­ar­mente o acor­do, afir­man­do que o Min­istério Públi­co Fed­er­al havia exor­bita­do de suas funções con­sti­tu­cionais. A inter­venção do STF, e não do TRF‑4, foi o freio de emergên­cia que impediu o que o relatório descreve como um desvio bil­ionário.

Fica claro que a fun­dação não era ape­nas uma ten­ta­ti­va de apro­pri­ação indébi­ta. Era um movi­men­to estratégi­co para cri­ar uma base de poder per­ma­nente, com finan­cia­men­to pri­va­do, politi­ca­mente inde­pen­dente e iso­la­da de qual­quer con­t­role gov­er­na­men­tal ou judi­cial. A mis­são declar­a­da da fun­dação, que incluía a “for­mação de lid­er­anças e do aper­feiçoa­men­to das práti­cas políti­cas”, é explici­ta­mente políti­ca, não judi­cial. A pos­te­ri­or migração de Moro e Dal­lagnol para a políti­ca par­tidária é cita­da no relatório como um indí­cio da con­vergên­cia entre os obje­tivos da fun­dação e as ambições pes­soais de seus cri­adores. Trata­va-se da tran­sição de uma força-tare­fa judi­cial tem­porária para um ator políti­co per­pé­tuo, finan­cia­do por um fluxo de din­heiro para­le­lo obti­do por meio de um arran­jo úni­co e juridica­mente ques­tionáv­el com um gov­er­no estrangeiro. Foi uma ten­ta­ti­va de con­vert­er poder judi­cial tran­sitório em influên­cia políti­ca e finan­ceira per­ma­nente, um movi­men­to de audá­cia sem prece­dentes na história repub­li­cana do Brasil.

 

 

Ator(es) Ação Descri­ta no Relatório Irreg­u­lar­i­dade Apon­ta­da Fonte
Força-Tare­fa da Lava Jato (MPF-PR) / Deltan Dal­lagnol Cooper­ou infor­mal­mente com o DOJ dos EUA, fornecen­do provas con­tra a Petro­bras. Con­tornou trata­dos ofi­ci­ais de coop­er­ação jurídi­ca (MLATs), atuan­do fora de seu manda­to legal.
Depar­ta­men­to de Justiça (DOJ) dos EUA Mul­tou a Petro­bras com base nas infor­mações rece­bidas e con­cor­dou em repa­tri­ar 80% do val­or. A legal­i­dade da coop­er­ação infor­mal e a sub­se­quente des­ti­nação dos fun­dos são ques­tion­adas.
Juiz Sér­gio Moro / 13ª Vara Fed­er­al de Curiti­ba Instau­rou proces­so sig­iloso para repas­sar val­ores de acor­dos à Petro­bras, tratan­do a empre­sa como “víti­ma”. Agiu de ofí­cio em matéria cív­el, sem o dev­i­do proces­so legal, e elegeu a Petro­bras como víti­ma uni­ver­sal, igno­ran­do out­ras partes lesadas.
Força-Tare­fa / Petro­bras Fir­maram um “Acor­do de Assunção de Com­pro­mis­sos” para cri­ar uma fun­dação pri­va­da com os R$ 2,5 bil­hões. O MPF não tem atribuição para cri­ar ou gerir fun­dações pri­vadas com recur­sos públi­cos ou de mul­tas. A Petro­bras con­cor­dou em desviar para um fun­do pri­va­do din­heiro que dev­e­ria ressar­cir a própria empre­sa ou a União.
Juíza Gabriela Hardt Homol­o­gou o acor­do que cri­a­va a fun­dação. Decid­iu com base em infor­mações infor­mais (“fora dos autos”), sem a dev­i­da cautela e análise, val­i­dan­do um ato extrale­gal.
Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al (STF) / Min. Alexan­dre de Moraes Sus­pendeu o acor­do e a cri­ação da fun­dação. Ação cor­re­ti­va que impediu a con­sumação do desvio, afir­man­do que o MPF exor­bitou de suas funções. 7

 

III. A Batal­ha Insti­tu­cional: O Relatório no Fogo Cruza­do do Judi­ciário

A chega­da do relatório ao plenário do Con­sel­ho Nacional de Justiça des­en­cadeou uma batal­ha insti­tu­cional de pro­porções raras. O CNJ, órgão de con­t­role exter­no do Judi­ciário, trans­for­mou-se em uma are­na onde duas visões antagôni­cas sobre a justiça e o lega­do da Lava Jato col­idi­ram frontal­mente. De um lado, o cor­rege­dor Luis Felipe Salomão, autor do relatório, defend­eu com firmeza os acha­dos da inves­ti­gação, pro­pon­do a aber­tu­ra de proces­sos dis­ci­pli­nares e o afas­ta­men­to dos mag­istra­dos impli­ca­dos para garan­tir a lisura das apu­rações. Do out­ro, o pres­i­dente do CNJ e do STF, min­istro Luís Rober­to Bar­roso, opôs uma resistên­cia igual­mente vig­orosa, enx­er­gan­do na cor­reição um movi­men­to de retal­i­ação con­tra a oper­ação e uma ameaça à inde­pendên­cia de juízes que com­bat­er­am a cor­rupção. A ten­são atingiu o ápice quan­do Bar­roso clas­si­fi­cou pub­li­ca­mente a decisão de Salomão de afas­tar os mag­istra­dos como “ilegí­ti­ma e arbi­trária”, expon­do um racha pro­fun­do no topo do Judi­ciário brasileiro.25

Essa divisão ide­ológ­i­ca refletiu-se dire­ta­mente nas votações do plenário. A decisão de abrir Proces­sos Admin­is­tra­tivos Dis­ci­pli­nares (PADs) con­tra a juíza Gabriela Hardt, o juiz Dani­lo Pereira Júnior e os desem­bar­gadores do TRF‑4, Car­los Eduar­do Thomp­son Flo­res e Loraci Flo­res de Lima, foi aprova­da por uma maio­r­ia aper­ta­da, com placares como 10 a 5. Os votos não seguiram uma lóg­i­ca pura­mente téc­ni­ca, mas espel­haram uma fal­ha geológ­i­ca que per­corre o Judi­ciário brasileiro sobre os lim­ites do ativis­mo judi­cial e os méto­dos da cruza­da anti­cor­rupção.

A saga do afas­ta­men­to e da recon­dução dos mag­istra­dos ilus­tra a inten­si­dade da pressão políti­ca. Salomão deter­mi­nou o afas­ta­men­to caute­lar para, segun­do ele, res­guardar a ordem públi­ca e o anda­men­to das inves­ti­gações. A decisão foi con­tes­ta­da por Bar­roso e por parte do con­sel­ho. Em um primeiro momen­to, o plenário revo­gou o afas­ta­men­to de Hardt e Pereira Júnior, mas man­teve o dos desem­bar­gadores do TRF‑4. Meses depois, em uma nova revi­ra­vol­ta, o CNJ deter­mi­nou a rein­te­gração destes últi­mos, citan­do como jus­ti­fica­ti­vas a con­clusão de eta­pas impor­tantes da instrução proces­su­al e, curiosa­mente, a neces­si­dade de força de tra­bal­ho para lidar com a calami­dade climáti­ca no Rio Grande do Sul, sede do tri­bunal.30 Essa sequên­cia de idas e vin­das demon­stra o precário equi­líbrio de forças e a poli­ti­za­ção do debate den­tro do con­sel­ho.

O que se viu no CNJ foi a trans­for­mação de um órgão de con­t­role admin­is­tra­ti­vo em um cam­po de batal­ha políti­co pela nar­ra­ti­va históri­ca. O debate extrapolou as infrações dis­ci­pli­nares especí­fi­cas para se tornar uma dis­pu­ta sobre dois pro­je­tos para o futuro da mag­i­s­tratu­ra no Brasil: um que bus­ca impor freios ao ativis­mo judi­cial e respon­s­abi­lizar seus exces­sos, e out­ro que o defende como uma fer­ra­men­ta necessária, ain­da que het­ero­doxa, no com­bate à grande cor­rupção. O relatório tornou-se um sím­bo­lo, e a luta por sua aprovação foi, na essên­cia, uma luta pelo con­t­role da memória da Lava Jato e pela definição das fron­teiras insti­tu­cionais do poder judi­cial na democ­ra­cia brasileira.

  1. O Pân­tano da PGR: O Silên­cio, o Risco e o Futuro da Inves­ti­gação

Após sobre­viv­er à batal­ha no CNJ e ser aprova­do pelo plenário em jun­ho de 2024, o relatório entrou em sua fase mais perigosa. Con­forme deter­mi­na a lei, por con­ter indí­cios de crimes como pec­u­la­to e cor­rupção, que extrap­o­lam a esfera admin­is­tra­ti­va, o doc­u­men­to foi remeti­do à Procu­rado­ria-Ger­al da Repúbli­ca (PGR), órgão com a atribuição con­sti­tu­cional para inves­ti­gar e proces­sar crim­i­nal­mente as autori­dades men­cionadas. Des­de então, o robus­to dos­siê repousa nas gave­tas da PGR, sob a gestão do procu­rador-ger­al Paulo Gonet, em um silên­cio que, com o pas­sar dos meses, se tornou ensur­de­ce­dor.

A inação de Gonet é intri­g­ante. Enquan­to a PGR tem se mostra­do ati­va em out­ros casos, inclu­sive recor­ren­do de decisões do STF que anu­lam proces­sos da Lava Jato ou ben­e­fi­ci­am seus alvos, sua par­al­isia diante do relatório do CNJ é notória. Orga­ni­za­ções da sociedade civ­il, como a Rede Law­fare Nun­ca Mais, chegaram a pro­to­co­lar rep­re­sen­tações cobran­do uma ati­tude, mas sem suces­so. A questão que se impõe é se este silên­cio rep­re­sen­ta mera inér­cia buro­cráti­ca ou uma estraté­gia delib­er­a­da de deixar que o tem­po e a com­plex­i­dade políti­ca do caso o con­den­em ao esquec­i­men­to, resul­tan­do em uma impunidade por asfix­ia admin­is­tra­ti­va.

Essa par­al­isia ali­men­ta o risco mais letal para toda a inves­ti­gação: a pos­si­bil­i­dade de que a PGR, ao invés de ofer­e­cer denún­cia per­ante o STF (foro com­pe­tente para jul­gar os impli­ca­dos), decline de sua atribuição e remeta o caso para a primeira instân­cia, mais especi­fi­ca­mente para o Tri­bunal Region­al Fed­er­al da 4ª Região. Tal decisão seria o equiv­a­lente a entre­gar a inves­ti­gação aos próprios inves­ti­ga­dos. O TRF‑4 não é ape­nas a corte de apelação de Curiti­ba, mas a casa insti­tu­cional de desem­bar­gadores que foram eles mes­mos alvos dos proces­sos dis­ci­pli­nares no CNJ por sua atu­ação na Lava Jato. Um con­fli­to de inter­ess­es dessa mag­ni­tude rep­re­sen­taria o enter­ro defin­i­ti­vo e for­mal do caso.

A Procu­rado­ria-Ger­al da Repúbli­ca, con­ce­bi­da para ser a guardiã máx­i­ma da lei e a pro­mo­to­ra final da ação penal con­tra crimes fed­erais de alta com­plex­i­dade, fun­ciona, neste caso, como um poten­cial “fire­wall” insti­tu­cional, um pon­to de arquiv­a­men­to do sis­tema. Sua inér­cia serve obje­ti­va­mente aos inter­ess­es das poderosas fig­uras do Judi­ciário e do Min­istério Públi­co impli­cadas no relatório. O proces­so demon­stra uma vul­ner­a­bil­i­dade críti­ca no sis­tema de freios e con­trape­sos brasileiro: mes­mo quan­do um órgão de con­t­role de alto nív­el como o CNJ cumpre seu papel, inves­ti­ga e pro­duz um relatório fun­da­men­ta­do, todo o esforço pode ser cur­to-cir­cuita­do pela inação estratég­i­ca do chefe do Min­istério Públi­co. O acu­sador final da Repúbli­ca se trans­for­ma, na práti­ca, em seu arquiv­ista final.

Con­clusão: Para que o Esta­do de Dire­ito Não Seja uma Ficção

A pub­li­cação na ínte­gra do relatório da Polí­cia Fed­er­al e da Cor­rege­do­ria do CNJ é um ato de resistên­cia. Resistên­cia con­tra o esquec­i­men­to sele­ti­vo, con­tra a nor­mal­iza­ção do abu­so insti­tu­cional e con­tra a nar­ra­ti­va de que os fins nobres da luta con­tra a cor­rupção jus­ti­fi­cam quais­quer meios. Este doc­u­men­to é uma fer­ra­men­ta para que cidadãos, acadêmi­cos, jor­nal­is­tas e juris­tas pos­sam con­duzir sua própria autóp­sia de um sis­tema que, em nome do bem, fler­tou perigosa­mente com o arbítrio.

A saga da Lava Jato, ilu­mi­na­da pelas som­bras que este relatório pro­je­ta, é uma lição amar­ga sobre os peri­gos da justiça mes­siâni­ca. Ela demon­stra como a ban­deira da anti­cor­rupção pode ser, ela mes­ma, cor­romp­i­da pelo poder sem con­t­role, pela ambição políti­ca e pelo despre­zo às garan­tias fun­da­men­tais que sus­ten­tam uma democ­ra­cia con­sti­tu­cional. O mecan­is­mo aqui descrito — a coop­er­ação inter­na­cional à margem da lei, a gestão opaca de recur­sos bil­ionários, o con­luio entre acu­sadores e jul­gadores, a ten­ta­ti­va de cri­ar uma estru­tu­ra de poder per­pé­tua e pri­va­da — não é um artefa­to históri­co. É uma pos­si­bil­i­dade latente em qual­quer sis­tema de justiça.

Com­preen­der ess­es méto­dos é o primeiro e mais cru­cial pas­so para con­stru­ir os anti­cor­pos insti­tu­cionais que impeçam sua recor­rên­cia. A defe­sa da Con­sti­tu­ição e do Esta­do de Dire­ito não é um esta­do pas­si­vo de con­formi­dade, mas uma luta ati­va e diária. Este livro, ao recusar que um doc­u­men­to des­ta importân­cia per­maneça enter­ra­do nos escan­in­hos de Brasília, é uma arma vital nes­sa luta. É um con­vite para que a memória prevaleça sobre a amnésia, e para que a Repúbli­ca não se esqueça de que, quan­do a lei se cur­va aos home­ns, o Esta­do de Dire­ito se tor­na pouco mais que uma ficção.”

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[1] Doutor em Dire­ito pela Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná (1998) e Pós-Doutor jun­to à EHESS de Paris (2009), Mestre em Dire­ito pela Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná (1996). Atual­mente é Pro­fes­sor aposen­ta­do na Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná, Pro­fes­sor Cat­e­dráti­co em Dire­ito do Tra­bal­ho no Mestra­do em Dire­itos Fun­da­men­tais e Democ­ra­cia nas Fac­ul­dades Integradas do Brasil, Pro­fes­sor Con­vi­da­do na Uni­ver­si­dad Pablo de Ola­vide e Pro­fes­sor Cat­e­dráti­co Tit­u­lar do Cen­tro Uni­ver­sitário Vale Iguaçu. Advo­ga­do de sindi­catos de tra­bal­hadores há 30 anos, no Paraná e em San­ta Cata­ri­na, ten­do inte­gra­do o cole­ti­vo jurídi­co da CUT Nacional des­de a sua fun­dação. Autor de livros e arti­gos ded­i­ca­dos aos dire­itos soci­ais, sindi­cal­is­mo e dire­ito do tra­bal­ho. Coor­de­na o Grupo de Pesquisa Tra­bal­ho e Reg­u­lação no Esta­do Con­sti­tu­cional. Pres­i­dente do Con­sel­ho Curador do Museu da lava Jato.