
Em importante contribuição ao aprimoramento da prática forense e judicial, com implicações teóricas bem salientadas, Merivaldo Muniz traz a Breves Artigos reflexão essencial sobre a Teoria dos Recursos.
Leia, a seguir, o artigo.
“Decisão Monocrática primitiva, seguida de Decisão Colegiada dos Embargos Declaratórios: problemas que suscita: Princípio do Paralelismo das Formas e Esgotamento de Instância para fins de viabilização dos Recursos Excepcionais”
Marivaldo Muniz[1]
O homem forense, seja ele magistrado, promotor de justiça, advogado, procurador, em seu cotidiano, não raro, depara-se com a necessidade de proferir decisões, emitir pareceres ou advogar perante os Tribunais Superiores, seja no palco processual civil, seja no processual penal.
Nessa empreitada, é inarredável não se confrontar com dificuldades. A primeira delas diz respeito à fonte ou às fontes de disciplina dos recursos excepcionais. Nisso, é possível sustentar que há uma Teoria Geral dos Recursos Excepcionais, cuja aplicação é comum no processo penal e no processo civil, que se abebera de quatro fontes distintas, duas normativas e duas jurisprudenciais.
No cenário normativo, temos como fonte o CPC de 2015, cujas regras também se aplicam ao processo penal (art. 638 do Código de Processo Penal). Temos ainda o artigo 28 da Lei nº 8.038/1990, que continua disciplinando o prazo para o agravo contra decisão negativa de admissibilidade de recurso excepcional, a teor da Súmula nº 699 do STF e do artigo 1.072, IV, do CPC que não o revogou, sendo, pois, uma exceção à regra geral de disciplina temporal do referido recurso.
No campo jurisprudencial, o Colendo Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal moldam os pressupostos especiais dos recursos excepcionais em seus acórdãos e súmulas. Nesse passo, houve uma tentativa do legislador do Código de Processo Civil de 2015 de combater a chamada jurisprudência defensiva, as cláusulas de barreira, mas isso é infrutífero, pois a vida forense é milímoda, não se podendo esgotar os problemas que surgem nos julgamentos; é dinâmica, exigindo novas soluções, conforme o julgador confronta essas situações antes não enfrentadas.
A antiga arguição de relevância ganhou outro nome (prequestionamento) e palavras como cotejo analítico, repercussão geral conquistaram seu espaço na fixação dos pressupostos jurisprudenciais ou normativos.
Neste momento, o interesse volta-se para uma situação singular que ocorre nos julgamentos monocráticos dos Tribunais de Justiça, Federais ou mesmo do STJ e do STF e que foram muito bem expostos em dois recursosrelatados pela Ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, cuja solução também há de se destacar adiante.
No caso concreto enfrentado no Recurso Especial nº 1.100.398 — RJ (2008/0233354–0), a indagação era de qual recurso seria cabível contra um julgamento que se iniciou unipessoal e se complementou, por força de embargos declaratórios, por decisão colegiada. No caso concreto, a parte inconformada lançou mão do agravo interno. Estaria correto isso?
Nancy Andrighi assim destacou o problema:
“Esta Terceira Turma já enfrentou uma hipótese muito parecida com a presente, por ocasião do julgamento do RMS nº 24.965 (de minha relatoria, DJe de 28/05/2008). Naquela oportunidade ocorreu o mesmo que neste processo: o TJ/PR indeferiu o writ por decisão unipessoal do relator, e, depois, julgou no colegiado os embargos de declaração interpostos contra aquela decisão. A diferença foi que a parte, nesse precedente, em vez de impugnar a decisão por agravo interno, como ocorreu no processo sub judice , interpôs diretamente o recurso em mandado de segurança, dirigido ao STJ. Colocava-se, então, a questão de saber se houve esgotamento de instância. No julgamento desse recurso, ressaltei que os embargos de declaração não geram uma nova decisão sobre a causa, mas meramente uma complementação da decisão anterior. Há, portanto, grave equívoco do Tribunal ao proferir a primeira decisão, sobre o mérito, unipessoalmente, e a segunda, que meramente a esclarece, no colegiado. Ao fazê-lo, o Tribunal impossibilita a identificação da natureza do decisum , dificultando sobremaneira a decisão acerca de qual recurso interpor. Afinal, nessas hipóteses a natureza da decisão recorrida deve obedecer a forma adotada no início do julgamento (unipessoal), ou no final (colegiada)? Esse procedimento, que infelizmente tem se tornado cada vez mais comum nos Tribunais, só tem causado mais dificuldades. O processo sub judice é um exemplo emblemático disto. O tempo que se ganhou levando ao colegiado os declaratórios contra a decisão unipessoal foi facilmente perdido depois. O agravo interno que se pretendia evitar foi interposto da mesma forma. Depois, com a rejeição do agravo, de novo por decisão unipessoal, gerou-se a necessidade de um novo agravo. Rejeitado este, a parte apresentaram ainda recurso especial cujo objetivo é anular todo o procedimento, recolocando a marcha processual em ordem. Isso sem contar a Petição que teve de ser apresentada, diretamente perante o STJ, para destrancar o recurso que fora retido na origem. Todo esse procedimento, todo esse trabalho, unicamente para tentar obter, do Tribunal a quo, uma decisão colegiada sobre o mérito do agravo de instrumento primitivo, que versava sobre a gratuidade de justiça. Essa prática não pode ser levada adiante pelos Tribunais. Julgar no colegiado embargos de declaração interpostos contra decisões unipessoais é medida que não é prevista pela legislação processual e, justamente por isso, cria sérias dúvidas no espírito da parte a respeito de qual recurso interpor. Por ocasião do julgamento do já citado RMS nº 24.965/PR, teci as seguintes considerações sobre o tema, que peço vênia para aqui reproduzir:”
Pontificou, então, quatro problemas que decisões assim suscitam, fazendo referência, nesse momento ao RMS n. 24.965/PR, no qual destacou:
“À primeira vista, conforme se notou nos precedentes supra citados, se a rejeição do recurso se deu por decisão unipessoal, pode-se argumentar que sua impugnação deveria ser promovida mediante agravo interno , nos estritos termos da legislação processual. A circunstância de os embargos de declaração apresentados para esclarecimento da decisão unipessoal terem sido decididos pelo colegiado representariam, assim, apenas uma irregularidade que não modificaria o recurso a ser interposto. A natureza do ato a ser impugnado, portanto, fixar-se-ia no momento em que é proferida a decisão (unipessoal), não no momento em que é promovido seu esclarecimento (colegiado). Os embargos de declaração, que apenas complementam a decisão primitiva, não poderiam determinar-lhe a natureza. (…) Em situações excepcionais é possível que o Tribunal (ou o Relator, caso decida monocraticamente), atribuam aos embargos de declaração efeitos infringentes , modificando no todo ou em parte a decisão embargada. A existência dessa possibilidade (ainda que rara) inevitavelmente nos leva a fazer alguns questionamentos a respeito do modelo de impugnação até aqui adotado pelo STJ. Observem-se os seguintes exemplos, nos quais a impugnação, por agravo interno, da decisão unipessoal integrada por decisão colegiada, entra em colapso: Primeiro exemplo : A decisão unipessoal que julga o recurso nega-lhe provimento e o colegiado, julgando embargos de declaração posteriormente opostos, decide atribuir-lhes efeitos modificativos para reformar em parte tal decisão. Suponhamos que, nesse caso, uma das partes tenha interesse em recorrer apenas contra a parcela da decisão que foi alterada pelo órgão colegiado . Deve-se previamente interpor agravo regimental, para que o colegiado repita a parcela da decisão unipessoal que ele mesmo modificou nos embargos? Prevalece, neste caso, a idéia de que a natureza da decisão é determinada pelo modo como proferida originalmente (unipessoal), em detrimento do esclarecimento (colegiado) que acabou por lhe modificar o conteúdo? Segundo exemplo : Partamos do mesmo panorama demonstrado anteriormente: decisão unipessoal que rejeita o recurso, e acórdão que, ao julgar os declaratórios, modifica‑a parcialmente. Se o interesse da parte, neste caso, resumir-se à reforma da parte que permaneceu intacta, o recurso a ser interposto se modifica? Aqui, sim, caberia agravo interno? Terceiro exemplo : Novamente, tomemos o mesmo pressusposto, ou seja, decisão unipessoal parcialmente modificada pelo colegiado em embargos. Desta vez, porém, imaginemos que uma das partes quer impugnar a parte unânime e a outra, a parte colegiada. Ambas devem se servir do agravo interno ou uma pode interpor o recurso especial e a outra, o agravo? É necessário, conforme o resultado do agravo, que se reitere o interesse no julgamento do recurso especial anteriormente interposto? Quarto exemplo: Imaginemos uma decisão unipessoal inteiramente modificada no momento do julgamento, pelo colegiado, de embargos de declaração. Deve, aqui, haver interposição de agravo interno ou é possível a impugnação, pelas partes, diretamente por recurso especial (ou, como na hipótese dos autos, por recurso em mandado de segurança)? Todas essas hipóteses geram perplexidade, e o que todas elas evidenciam, é que o equívoco, no processo sub judice, não está necessariamente no recurso interposto pela parte, mas sim, antes dele, na condução do julgamento, pelo Tribunal ‘a quo’. Em hipótese alguma poderia, o Tribunal, submeter ao colegiado os embargos de declaração interpostos contra uma decisão unipessoal. Na pior das hipóteses, poderia o Relator ter convertido os embargos de declaração em agravo interno e ter levado o agravo, e não os embargos, a julgamento pela Turma. Proceder da forma escolhida pelo Tribunal ‘a quo’ não encontra respaldo na legislação processual e só faz gerar confusão para o advogado da parte que, sem poder se apoiar nas disposições do CPC. O Processo Civil tem de ser, na medida do possível e desde que respeitadas as garantias constitucionais conferidas às partes, o mais descomplicado possível. A idéia é a de que o processo amplie, e não restrinja o acesso ao Judiciário. O procedimento não pode ser um labirinto cheio de becos sem saída. É necessário que o procedimento dê segurança às partes e a seus advogados. Reconheço que os exemplos que selecionei, acima, são raros e não se verificaram na hipótese dos autos. Entretanto, raros ou não, tais exemplos poderiam ocorrer na prática , e tal possibilidade já basta para que esta Corte questione a forma como tem solucionado a questão. É de todo inconveniente que este Tribunal aceite que, dependendo do conteúdo de uma decisão (e não de seu aspecto formal), seja possível impugná-la por uma, ou por outra modalidade de recurso — mesmo porque, como se demonstrou acima, haverá situações em que rigorosamente será impossível decidir que recurso interpor. Disso decorre que, no processo sub judice, é desnecessário analisar se é crasso, ou se é escusável, o erro cometido pelo advogado ao impugnar a decisão sub judice, diretamente, pela via do recurso em mandado de segurança, em vez de fazê-lo por agravo interno. Precede o seu suposto erro, um erro maior: Em hipótese alguma esta Corte poderá admitir que se esclareça, via Embargos de Declaração, no colegiado, uma decisão originariamente proferida de maneira unipessoal . Os prejuízos que seriam causados por tal desvio no procedimento, como demonstrado acima, seguramente superariam as respectivas vantagens .”
Em ambos os recursos, a solução foi a mesma: houve a anulação do acórdão recorrido, tendo-se como erro grosseiro a prática do Tribunal “a quo”, ou nos dizeres da relatora:
“A partir dessas considerações, esta Terceira Turma, no precedente supracitado, houve por bem anular, de ofício, o acórdão recorrido, reputando crasso o erro praticado pelo Tribunal, que ao julgar no colegiado os embargos contra decisão unipessoal criou uma figura híbrida que não encontra correspondente do CPC e que, portanto, não comporta, ao menos em princípio, um recurso adequado à respectiva impugnação. A mesma solução proponho para o processo sub judice.”
Nesse desfecho, o Superior Tribunal de Justiça prestigiou o princípio do paralelismo das formas. Por esse princípio, o mesmo modo e órgão competente no momento de nascimento do ato é aquele que pode também deve prosseguir em sua integração ou desconstituição. Nessa toada, comparecem “forma”, “competência”, “juiz natural”.
O princípio do paralelismo das formas vem sendo utilizado com muita frequência para afastar aquelas decisões administrativas do órgão previdenciário que cassam benefícios concedidos judicialmente. O STJ usando dessa vertente, tem anulado essas decisões administrativas.
Há várias províncias em que esse princípio do paralelismo das formas governa o modo e competência, lembrando-se, por exemplo, no processo administrativo fiscal, no qual somente o fisco pode fazer a revisão do lançamento por homologação (artigo 150, § 4º, do Código Tributário Nacional).
O princípio do paralelismo das formas tem dupla leitura:
1) a forma de constituição e desconstituição do ato: de um lado, o aspecto da formação do ato firma o modo como pode ser desconstituído, isto é, se o direito foi constituído judicialmente, só por essa via pode ser desconstituído, se o ordenamento jurídico consagra que a formação do ato administrativo é por tal modo, só por este também pode ser infirmado;
2) por outro prisma, há destaque à figura da competência para constituição e desconstituição do ato, ou seja, a indagação de quem pode constituir e desconstituir o ato.
No caso de lançamento tributário, só a autoridade tributária pode rever o ato de lançamento por homologação. E o modo é a revisão do lançamento. Não atuando no tempo devido, o lançamento considera-se definitivo.
Mas volvendo aos julgamentos invocados neste artigo, é preciso atentar para uma indagação substancial da Ministra Nancy Andrighi:
“Colocava-se, então, a questão de saber se houve esgotamento de instância.”
Vale lembrar que isso é requisito de admissibilidade do recurso especial e extraordinário (esgotamento de instância), sem o que as vias recursais ficam inviabilizadas. E a própria Ministra acena para a resposta:
“No julgamento desse recurso, ressaltei que os embargos de declaração não geram uma nova decisão sobre a causa, mas meramente uma complementação da decisão anterior. Há, portanto, grave equívoco do Tribunal ao proferir a primeira decisão, sobre o mérito, unipessoalmente, e a segunda, que meramente a esclarece, no colegiado.”
Fica, assim, o alerta de que não se considera esgotada a instância se o julgamento primitivo é singular e os embargos declaratórios são enfrentados por órgão colegiado.
[1] Bacharel em Direito e Servidor do Tribunal de Justiça de São Paulo