Em 17 de agosto de 2018, o Comitê de Direitos Humanos da ONU divulgou nota à imprensa informando que requereu ao governo brasileiro a adoção de “medidas provisórias”, no âmbito da análise do Comunicado 2841/2016, apresentado pelo ex-Presidente Lula. Segundo a nota, “o Comitê pede que o Brasil tome as medidas necessárias para garantir que Luís Inácio Lula da Silva possa exercer seus direitos políticos enquanto estiver na prisão, como candidato às eleições presidenciais de 2018. Isto inclui ter acesso apropriado à imprensa e a membros de seu partido político. O Comitê também solicitou que o Brasil não o impeça de concorrer às eleições presidenciais de 2018 até que seus recursos na justiça tenham sido julgados por completo, em procedimentos judiciais justos”.
O Comitê de Direitos Humanos é o órgão responsável pelo monitoramento do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que é o principal tratado internacional de direitos humanos. O Comitê é composto por 18 especialistas, com mandatos de quatro anos. O Comitê não deve ser confundido com o Conselho de Direitos Humanos, que é um órgão criado pela Assembleia Geral da ONU, composto por representantes diretos de 47 países. Embora não se trate de um tribunal, o Comitê é um órgão técnico, enquanto o Conselho é um órgão político. Nesse sentido, pode-se dizer que os pareceres do Comitê representam a opinião oficial das Nações Unidas sobre o cumprimento do Pacto pelos Estados-Partes.
A solicitação foi aprovada pelo Relator Especial para Novas Comunicações e Medidas Provisórias, que é o responsável pela análise inicial das petições recebidas. Até a conclusão do processo, todos os documentos produzidos no âmbito da análise de petições individuais perante o Comitê são confidenciais, facultando-se às partes torná-los públicos. No caso em questão, nem Lula nem o governo brasileiro divulgaram qualquer documento do processo, como a petição inicial, a resposta do governo brasileiro ou decisão que fundamenta as medidas solicitadas.
Compatibilidade das medidas requeridas com o direito brasileiro
Caberá ao Poder Judiciário brasileiro avaliar a compatibilidade das medidas solicitadas com o direito brasileiro, por provocação das partes interessadas. O acesso da mídia e de correligionários a Lula deverá ser decidido pela 12ª Vara de Execuções Penais de Curitiba; a candidatura a Presidente da República até o trânsito em julgado na esfera criminal, pelo Tribunal Superior Eleitoral.
O acesso na prisão à imprensa e a integrantes de seu partido não se choca, à primeira vista, com qualquer norma doméstica relevante, mas a garantia de candidatura até o trânsito em julgado da condenação na esfera criminal contraria diretamente a Lei da Ficha Limpa, sancionada em 2010 pelo então Presidente Lula, que tornou inelegíveis os condenados por órgão judicial colegiado por crimes contra a administração pública ou de lavagem de dinheiro (art. 1º, I, e, 1 e 6, da Lei Complementar 60/1990).
Conforme entendimento do STF no RE 466.343, os tratados internacionais apresentam hierarquia intermediária entre a Constituição e as leis, complementares ou ordinárias. O Poder Judiciário brasileiro pode, portanto, afastar a aplicação da Lei da Ficha Limpa for incompatibilidade com o Pacto de Direitos Civis e Políticos. Não consta, entretanto, que a defesa de Lula tenha feito esse pedido ao TSE. Como o processo no Comitê é confidencial, não se sabe se essa questão foi analisada pelo relator ou alegada pelo denunciante.
À primeira vista, no entanto, a Lei da Ficha Limpa é compatível como o Pacto, pois este admite que o direito de candidatura seja restringido, desde que com adequada fundamentação.
“Artigo 25. Todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no artigo 2 e sem restrições infundadas: b) de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores.”
Ausência de promulgação do Protocolo Facultativo que autoriza o recebimento de petições individuais pelo Comitê
A adesão do Brasil a tratados internacionais se dá por ratificação pelo Congresso Nacional, veiculada por decreto legislativo, e subsequente promulgação pelo Presidente de República, por decreto. A ratificação autoriza o país a aderir ao tratado, submetendo-se às suas disposições na esfera internacional. A promulgação determina seu cumprimento pelo próprio país, com o que passa a ser norma obrigatória de direito interno. O Pacto foi ratificado pelo Decreto Legislativo 226/1991 e promulgado pelo Decreto 592/1992.
O método de monitoramento nele previsto é o de elaboração de relatórios pelos países signatários (art. 40). Com base nestes, o Comitê elabora seus próprios relatórios ou comenta os recebidos de cada país. O Pacto também admite que denúncias de violação contra um país sejam apresentadas por outro perante o Comitê (art. 41). O Brasil elaborou relatórios em 1994 e 2004. Após cada relatório, o Comitê apresentou observações, com recomendações cujo cumprimento foi posteriormente monitorado por um relator especial. Um novo relatório deveria ter sido elaborado pelo Brasil em 2009, durante o mandato do Presidente Lula, mas isso não foi feito até o momento, como aponta o último Informe apresentado pelo Comitê à Assembleia Geral da ONU (p. 21).
O recebimento de petições individuais (denominadas “comunicações”) pelo Comitê foi previsto em um Protocolo Facultativo ao Pacto, que também é um tratado internacional. Ao contrário do Pacto, no entanto, o Protocolo não foi promulgado até hoje; apenas ratificado pelo Decreto Legislativo 311/2009. Ironicamente, tanto Lula quanto Dilma Rousseff poderiam ter editado o decreto de promulgação, mas não o fizeram, por razões desconhecidas.
A inexistência de decreto de promulgação do Protocolo não passou despercebida pela defesa de Lula, que divulgou duas versões de nota sobre a recomendação do Comitê. Na primeira, indicou o Decreto 6.949/2009, que promulgou o Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, como fundamento para a incorporação do Protocolo ao direito interno. Na segunda, o já citado Decreto Legislativo 311/2009.
Natureza jurídica das decisões do Comitê
As decisões do Comitê são pronunciamentos quanto à procedência ou não da denúncia, acompanhados de recomendações dirigidas ao Estado-Parte. Diversos exemplos desse tipo de decisão podem ser encontradas no documentação relativa à última sessão do Comitê. A análise de cada caso conclui com um parecer quanto à violação ou não de determinados artigos do Pacto e, em caso positivo, requer indenização à vítima e a adoção de medidas destinadas a evitar que violações semelhantes se repitam no futuro.
A natureza jurídica das decisões do Comitê é esclarecida pelo Folheto Informativo N. 7, elaborado pelo Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU para orientar a apresentação de denúncias individuais (p. 11):
Las decisiones de los comités constituyen una interpretación autorizada de los tratados respectivos. Contienen recomendaciones al Estado parte en cuestión, pero no son jurídicamente vinculantes.
Ao contrário das decisões definitivas, as “medidas provisórias” requeridas pelo Relator Especial ao país denunciado não estão previstas nem no Pacto nem no Protocolo, mas no Regulamento do Comitê, que não é um tratado internacional, mas uma norma interna do órgão.
“Artículo 92. El Comité podrá, antes de transmitir su dictamen sobre la comunicación al Estado parte interesado, comunicar a ese Estado su opinión sobre la conveniencia de adoptar medidas provisionales para evitar un daño irreparable a la víctima de la violación denunciada.”
Distinção entre as decisões do Comitê e as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Embora o Comitê seja um órgão técnico, posto que composto por especialistas com mandato, não se trata de um órgão jurisdicional, como são a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Europeia de Direitos Humanos e o Tribunal Penal Internacional. Daí porque não se aplica ao Comitê o argumento desenvolvido pela Procuradoria Geral da República em sua manifestação no âmbito da ADPF 320, mencionado pela defesa de Lula em artigo relativo ao caso, que afirma o caráter vinculante das sentenças da Corte Interamericana no direito interno brasileiro.
A incorporação das sentenças da Corte ao direito brasileiro decorre de dispositivos específicos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que não encontram paralelo no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos ou em seu Protocolo Facultativo:
“Artigo 62. Todo Estado-Parte pode declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção”
“Artigo 68. Os Estados-partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes.”
A Convenção Americana foi promulgada pelo Decreto 678/1992, e a Declaração de Reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, pelo Decreto 4.463/2002.
Conclusão
Em conclusão, verifica-se que, como indica a nota do Ministério das Relações Exteriores e contrariamente ao afirmado pela defesa de Lula em entrevista coletiva, as recomendações do Comitê de Direitos Humanos da ONU não têm efeito vinculante no direito interno brasileiro, seja porque o Comitê não é um órgão jurisdicional, seja porque o Protocolo Facultativo, que autoriza o recebimento de petições individuais, não foi promulgado até o momento. Tampouco no âmbito do direito internacional há obrigação de atender as medidas provisórias requeridas pelo relator, posto que esse instituto não consta nem do Pacto nem do Protocolo, que são os tratados internacionais vinculantes dos países, mas apenas do regulamento interno do próprio Comitê.
Victor Carvalho Pinto
Doutor em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da USP, Consultor Legislativo do Senado
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